Reflexão que venho fazendo já há algum tempo e que, aí abaixo, foi arrumada em texto para uma conferência recentemente proferida. As implicações do quadro realçado para as instituições de ensino superior são grandes, principalmente para os cursos de formação de professores.
Por Ivonaldo Leite
Introdução
Contemporaneamente, temos assistido a um intenso
processo de reconfiguração dos sistemas educativos, com consequências diretas
sobre a prática docente no cotidiano escolar, as quais se manifestam de
diversas formas, a exemplo da delegação de novas atribuições ao
professorado.
Todavia, diferente da posição (explícita e
implícita) de alguns discursos oficiais, entender o referido fenômeno requer
uma reflexão analítica que vá além da aparência dos fatos. Nesse sentido, um
postulado fundamental a ter em conta é que a reconfiguração contemporânea dos
sistemas educativos não será inteiramente compreendida se não for considerado o
significado das novas tecnologias[1],
e, como decorrência, o entendimento do que representa o processo de mutação
cognitiva que elas desencadeiam.
Está em marcha, desde a década de 1950, um evento
histórico da mesma importância da Revolução Industrial dos séculos XVII/XVII,
induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da
sociedade e da cultura. Trata-se da Revolução da Tecnologia da Informação.
Diferente das revoluções anteriores – da Primeira e da Segunda –, a atual
refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação.
Ou seja, a tecnologia da informação é para a mesma
o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais
anteriores, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até
mesmo à energia nuclear. Contudo, o que a caracteriza não é a centralidade de
conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa
informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento
da comunicação, gerando um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e
seu uso.
Pode-se dizer que os usos das novas tecnologias de
telecomunicações nas últimas décadas passaram por três fases diferentes[2]:
a automação de tarefas, as experiências de usos e a reconfiguração das
aplicações. Nas duas primeiras, o progresso da inovação tecnológica baseou-se
no aprender usando. Na terceira fase, os usuários aprenderam a tecnologia fazendo,
o que acabou resultando na reformatação das redes e na descoberta de novas
aplicações.
O ciclo de realimentação entre a introdução de uma
nova tecnologia, dos seus usos e dos seus desenvolvimentos em novos domínios
torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a
difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que os
usuários se apropriam dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação
não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem
desenvolvidos. Desta forma, os usuários podem assumir a gestão da tecnologia,
como acontece no caso da internet.
Novas tecnologias, escola e socialização: redefinições
No contexto educacional, os efeitos das novas tecnologias, de modo mais
direto, traduzem-se de duas formas: 1) por
via da reestruturação produtiva, de onde decorre um conjunto de demandas do
mercado de trabalho pleiteando que as escolas formem mão-de-obra apta à
referida realidade, com isto significando dizer que a força laboral deve ser
portadora de habilidades flexíveis, para, assim, ser propensa ao desempenho das
mais diversas tarefas, onde o trabalho em equipe é uma dimensão central;
2) através da introdução de novas modalidades de ação educativa, onde a educação
a distância, os programas offline de aprendizagem por
computador, os cursos online, as ferramentas em rede de pesquisa e
os ambientes online de partilha de experiências são exemplos
paradigmáticos.
Daí emerge um processo de mutação cognitiva que, se
não for devidamente apreendido, pode trazer consideráveis percalços para o
contexto educacional.
Por exemplo, parece, hoje, cada vez mais desprovido
de sentido conceber a educação formal como a única instância gestora de
conhecimento e ministrante de aprendizagem. Tendo em perspectiva que a relação
entre os alunos (principalmente os dos meios populares) e o saber não é algo
unilateral (monopólio do sistema escolar sobre os estudantes, centrado apenas
no ensinar), é pertinente, portanto, admitir que há que se prestar uma atenção
acrescida aos contextos educativos informais e não-formais, pois aí são criados
e re-significados diversos saberes que circulam envolvendo a escola, agindo
sobre ela, mas não interagindo com os seus propósitos. Este processo de mutação
cognitiva encontra-se intimamente vinculado às noções de socialização primária
e de socialização secundária, tendo implicações diretas sobre elas e sobre a
escola.
O âmbito da socialização primária, como sabemos, é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores, normas de conduta e de coesão social. Entretanto, várias evidências empíricas, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões econômicas e também não-econômicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
O âmbito da socialização primária, como sabemos, é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores, normas de conduta e de coesão social. Entretanto, várias evidências empíricas, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões econômicas e também não-econômicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
Como decorrência disso, ou seja, com a redução da
dimensão afetiva na transmissão de conhecimentos e de valores, assim como a
perda de identificação com o mundo apresentado pelos adultos, configura-se um
gravedéficit de socialização primária das crianças e dos jovens,
com a consequente perda de referências, relativismo de valores, ameaça à coesão
e solidariedade socais.
No vácuo deixado pela socialização primária,
tem entrado em cena agentes da socialização secundária[3],
oriundos das “velhas” e das novas tecnologias, como os meios de comunicação de
massa e, agora, as redes sociais, substituindo os dispositivos e os contextos
próprios daquela. Desse modo, ocorre aqui um fenômeno singular: por um lado,
crianças e jovens antecipam o seu desenvolvimento cognitivo, obtendo
conhecimentos que supostamente seriam alcançados mais tarde, na socialização
secundária, na educação formal; por outro lado, são carentes de relações
sócio-afetivas, da valoração típica da socialização primária.
Com efeito, dada a relativa falência da
socialização primária, os seus atributos têm sido delegados à escola. É assim
que se têm multiplicado os apelos para que, ao fim e ao cabo, ela assuma os
afetos e as funções maternais e parentais, produza a interiorização das normas
básicas do viver em sociedade e promova a aceitação dos dispositivos de
legitimação e de adoção dos valores essenciais à vida social, para além de,
claro, desempenhar o seu papel específico, isto é, as funções de instrução,
ensino e socialização secundária.
Se formos mais adiante por essa via analítica,
chegaremos aos principais problemas do cotidiano escolar contemporâneo: os
jovens vão para a escola receber lições que deveriam ter recebido em casa
(socialização primária); a escola exerce atributos cognitivos e de socialização
secundária que não lhes são novidades, pois já tiveram acesso aos mesmos
através, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias.
Como resultado, jovens e escola se encontram para um “diálogo” em linguagens
diferentes.
Dessa forma, não é incomum que a escola e os alunos
tenham momentos juntos, mas, durante estes, convivam com mundos
diferentes: a primeira procurando mecanismos para desempenhar o seu papel, por
vezes depositando uma confiança ilimitada em dispositivos gestionários e
burocráticos; os segundos, dentro e fora da escola, construindo um universo à
parte do mundo escolar, erigindo relações de sociabilidade que estruturam uma
cultural juvenil com padrões cognitivos distintos dos padrões escolares.
Possivelmente, portanto, só considerando
devidamente o aludido processo de mutação cognitiva, associado com os fatores
que lhe são correlatos, poder-se-á entender e enfrentar as questões, como a
indisciplina, que têm marcado o cotidiano escolar nos dias atuais.
A escola hoje: um novo perfil de professor
Como inferência analítica do exposto anteriormente,
é possível assinalar que, na escola hoje, emerge um novo perfil de professor,
em face dos desafios educacionais contemporâneos. Podem ser referidas, dentre
outras, três características desse novo perfil.
Uma primeira a ser destacada é a formação
multidimensional e reflexiva do professor, ou seja, ele deve ser portador de um
conjunto amplo de dispositivos cognitivos, não se fechando, portanto, numa área
específica do conhecimento, mas deve, sim, dotar-se de instrumentos
teórico-práticos que o capacitem para o diálogo
inter/multidisciplinar/transdisciplinar, exercitando, ao mesmo tempo, a crítica
e a autocrítica, que, em última instância, vem a ser uma manifestação do pensar
reflexivo.
Uma segunda característica a referir diz respeito à
interculturalidade necessária ao agir profissional do professor. Isto é, aqui o
que está em causa é a necessidade de se ter em conta uma política da diferença,
de respeito a todas as diversidades humanas e de superação dos preconceitos,
sejam eles quais forem. Como se sabe, a escola é um microcosmo da sociedade, e
portanto um local onde as diferenças étnicas, culturais, de gênero, físicas,
etc., se fazem presentes. Cabe, assim, ao docente desenvolver uma ação de
inclusão baseada na comunicação, aproveitando a diversidade na sala de aula
como fonte pertinente ao processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, pois, de
assumir a diversidade como um recurso útil ao processo de ensino-aprendizagem,
ao invés de considerá-la um obstáculo, que logo resvala para os
preconceitos.
Last but not least, a terceira característica concerne à atuação do
professor como indutor de relações entre a escola e a comunidade. O pressuposto
aqui presente é o de que, tendo em conta que o tipo de formato que a ação
escolar assume depende dos aspectos da comunidade em que ela se situa (aspectos
que se fazem presentes na escola através dos alunos), e considerando que a vida
extra-escolar dos estudantes é determinante para os seus percursos escolares,
coloca-se como imprescindível que se leve a efeito uma articulação entre a
escola e a comunidade, onde o professor, pela proximidade que supostamente tem
com os alunos, é uma peça central, cabendo-lhe alimentar um diálogo marcado por
momentos de sociabilidade.
Enfim, a escola, conectada com a movimentação
comunitária, através do trabalho docente, vem a ser parte do desenvolvimento
das próprias comunidades locais, assim como o desenvolvimento das comunidades
locais é condição para o êxito da própria escola.
Notas
[1] De modo mais detido, tratei do referido
assunto em: LEITE, Ivonaldo. Novas tecnologias, trabalho e
educação: desorganizando o consenso. Lisboa: Dinossauro Edições, 2002.
[2] Uma das
abordagens mais consistentes, analiticamente, a respeito de tal temática pode
ser encontrada em: CASTELLS, Manuel. The information age:Economy, society and
culture, vol.I: The rise of the network society. Cambridge MA., Oxford UK: Blackwell Publishers,
1996.
[3] As
redefinições contemporâneas em torno da socialização têm forte consequências
para o processo de ensino e aprendizagem, mas elas não têm recebido a devida
atenção - Cf. LEITE, Ivonaldo. A reconfiguração dos sistemas educativos e a
formação docente: demandas e alternativas. In: Ciência Hoje,
Porto/Portugal, set/2006.
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