quarta-feira, 2 de março de 2016

Mutações da escola, do ensino e da aprendizagem: novas sociabilidades

Reflexão que venho fazendo já há algum tempo e que, aí abaixo, foi arrumada em texto para uma conferência recentemente proferida. As implicações do quadro realçado para as instituições de ensino superior são grandes, principalmente para os cursos de formação de professores. 




Por Ivonaldo Leite

Introdução
Contemporaneamente, temos assistido a um intenso processo de reconfiguração dos sistemas educativos, com consequências diretas sobre a prática docente no cotidiano escolar, as quais se manifestam de diversas formas, a exemplo da  delegação de novas atribuições ao professorado.
Todavia, diferente da posição (explícita e implícita) de alguns discursos oficiais, entender o referido fenômeno requer uma reflexão analítica que vá além da aparência dos fatos. Nesse sentido, um postulado fundamental a ter em conta é que a reconfiguração contemporânea dos sistemas educativos não será inteiramente compreendida se não for considerado o significado das novas tecnologias[1], e, como decorrência, o entendimento do que representa o processo de mutação cognitiva que elas desencadeiam.
Está em marcha, desde a década de 1950, um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial dos séculos XVII/XVII, induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. Trata-se da Revolução da Tecnologia da Informação. Diferente das revoluções anteriores – da Primeira e da Segunda –, a atual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação.
Ou seja, a tecnologia da informação é para a mesma o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais anteriores, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear. Contudo, o que a caracteriza não é a centralidade de conhecimento e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento da comunicação, gerando um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso.
Pode-se dizer que os usos das novas tecnologias de telecomunicações nas últimas décadas passaram por três fases diferentes[2]: a automação de tarefas, as experiências de usos e a reconfiguração das aplicações. Nas duas primeiras, o progresso da inovação tecnológica baseou-se no aprender usando. Na terceira fase, os usuários aprenderam a tecnologia fazendo, o que acabou resultando na reformatação das redes e na descoberta de novas aplicações.
O ciclo de realimentação entre a introdução de uma nova tecnologia, dos seus usos e dos seus desenvolvimentos em novos domínios torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que os usuários se apropriam dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Desta forma, os usuários podem assumir a gestão da tecnologia, como acontece no caso da internet.
  
Novas tecnologias, escola e socialização: redefinições
No contexto educacional, os efeitos das novas tecnologias, de modo mais direto, traduzem-se de duas formas: 1) por via da reestruturação produtiva, de onde decorre um conjunto de demandas do mercado de trabalho pleiteando que as escolas formem mão-de-obra apta à referida realidade, com isto significando dizer que a força laboral deve ser portadora de habilidades flexíveis, para, assim, ser propensa ao desempenho das mais diversas tarefas, onde o trabalho em equipe é uma dimensão central;  2) através da introdução de novas modalidades de ação educativa, onde a educação a distância, os programas offline de aprendizagem por computador, os cursos online, as ferramentas em rede de pesquisa e os ambientes online de partilha de experiências são exemplos paradigmáticos.
Daí emerge um processo de mutação cognitiva que, se não for devidamente apreendido, pode trazer consideráveis percalços para o contexto educacional.
Por exemplo, parece, hoje, cada vez mais desprovido de sentido conceber  a educação formal como a única instância gestora de conhecimento e ministrante de aprendizagem. Tendo em perspectiva que a relação entre os alunos (principalmente os dos meios populares) e o saber não é algo unilateral (monopólio do sistema escolar sobre os estudantes, centrado apenas no ensinar), é pertinente, portanto, admitir que há que se prestar uma atenção acrescida aos contextos educativos informais e não-formais, pois aí são criados e re-significados diversos saberes que circulam envolvendo a escola, agindo sobre ela, mas não interagindo com os seus propósitos. Este processo de mutação cognitiva encontra-se intimamente vinculado às noções de socialização primária e de socialização secundária, tendo implicações diretas sobre elas e sobre a escola.
                        O âmbito da socialização primária, como sabemos, é o âmbito familiar, onde supostamente são transmitidos valores, normas de conduta e de coesão social. Entretanto, várias evidências empíricas, tanto nos países centrais como nos não-centrais, têm posto em causa o desempenho de tais atributos da socialização primária, por exemplo: a desestruturação familiar (por razões econômicas e também não-econômicas), a monoparentalidade, a escassez do tempo de relação doméstica e de convivialidades densas no lar.
Como decorrência disso, ou seja, com a redução da dimensão afetiva na transmissão de conhecimentos e de valores, assim como a perda de identificação com o mundo apresentado pelos adultos, configura-se um gravedéficit de socialização primária das crianças e dos jovens, com a consequente perda de referências, relativismo de valores, ameaça à coesão e solidariedade socais.
 No vácuo deixado pela socialização primária, tem entrado em cena agentes da socialização secundária[3], oriundos das “velhas” e das novas tecnologias, como os meios de comunicação de massa e, agora, as redes sociais, substituindo os dispositivos e os contextos próprios daquela. Desse modo, ocorre aqui um fenômeno singular: por um lado, crianças e jovens antecipam o seu desenvolvimento cognitivo, obtendo conhecimentos que supostamente seriam alcançados mais tarde, na socialização secundária, na educação formal; por outro lado, são carentes de relações sócio-afetivas, da valoração típica da socialização primária.
Com efeito, dada a relativa falência da socialização primária, os seus atributos têm sido delegados à escola. É assim que se têm multiplicado os apelos para que, ao fim e ao cabo, ela assuma os afetos e as funções maternais e parentais, produza a interiorização das normas básicas do viver em sociedade e promova a aceitação dos dispositivos de legitimação e de adoção dos valores essenciais à vida social, para além de, claro, desempenhar o seu papel específico, isto é, as funções de instrução, ensino e socialização secundária.
Se formos mais adiante por essa via analítica, chegaremos aos principais problemas do cotidiano escolar contemporâneo: os jovens vão para a escola receber lições que deveriam ter recebido em casa (socialização primária); a escola exerce atributos cognitivos e de socialização secundária que não lhes são novidades, pois já tiveram acesso aos mesmos através, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias. Como resultado, jovens e escola se encontram para um “diálogo” em linguagens diferentes.
Dessa forma, não é incomum que a escola e os alunos tenham momentos juntos,  mas, durante estes, convivam com mundos diferentes: a primeira procurando mecanismos para desempenhar o seu papel, por vezes depositando uma confiança ilimitada em dispositivos gestionários e burocráticos; os segundos, dentro e fora da escola, construindo um universo à parte do mundo escolar, erigindo relações de sociabilidade que estruturam uma cultural juvenil com padrões cognitivos distintos dos padrões escolares.
Possivelmente, portanto, só considerando devidamente o aludido processo de mutação cognitiva, associado com os fatores que lhe são correlatos, poder-se-á entender e enfrentar as questões, como a indisciplina, que têm marcado o cotidiano escolar nos dias atuais.

A escola hoje: um novo perfil de professor
Como inferência analítica do exposto anteriormente, é possível assinalar que, na escola hoje, emerge um novo perfil de professor, em face dos desafios educacionais contemporâneos. Podem ser referidas, dentre outras, três características desse novo perfil.
Uma primeira a ser destacada é a formação multidimensional e reflexiva do professor, ou seja, ele deve ser portador de um conjunto amplo de dispositivos cognitivos, não se fechando, portanto, numa área específica do conhecimento, mas deve, sim, dotar-se de instrumentos teórico-práticos que o capacitem para o diálogo inter/multidisciplinar/transdisciplinar, exercitando, ao mesmo tempo, a crítica e a autocrítica, que, em última instância, vem a ser uma manifestação do pensar reflexivo. 
Uma segunda característica a referir diz respeito à interculturalidade necessária ao agir profissional do professor. Isto é, aqui o que está em causa é a necessidade de se ter em conta uma política da diferença, de respeito a todas as diversidades humanas e de superação dos preconceitos, sejam eles quais forem. Como se sabe, a escola é um microcosmo da sociedade, e portanto um local onde as diferenças étnicas, culturais, de gênero, físicas, etc., se fazem presentes. Cabe, assim, ao docente desenvolver uma ação de inclusão baseada na comunicação, aproveitando a diversidade na sala de aula como fonte pertinente ao processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, pois, de assumir a diversidade como um recurso útil ao processo de ensino-aprendizagem, ao invés de considerá-la um obstáculo, que logo resvala para os preconceitos.  
Last but not least, a terceira característica concerne à atuação do professor como indutor de relações entre a escola e a comunidade. O pressuposto aqui presente é o de que, tendo em conta que o tipo de formato que a ação escolar assume depende dos aspectos da comunidade em que ela se situa (aspectos que se fazem presentes na escola através dos alunos), e considerando que a vida extra-escolar dos estudantes é determinante para os seus percursos escolares, coloca-se como imprescindível que se leve a efeito uma articulação entre a escola e a comunidade, onde o professor, pela proximidade que supostamente tem com os alunos, é uma peça central, cabendo-lhe alimentar um diálogo marcado por momentos de sociabilidade.
Enfim, a escola, conectada com a movimentação comunitária, através do trabalho docente, vem a ser parte do desenvolvimento das próprias comunidades locais, assim como o desenvolvimento das comunidades locais é condição para o êxito da própria escola.


Notas


[1] De modo mais detido, tratei do referido assunto em:  LEITE, Ivonaldo. Novas tecnologias, trabalho e educação: desorganizando o consenso. Lisboa: Dinossauro Edições, 2002.

[2]  Uma das abordagens mais consistentes, analiticamente, a respeito de tal temática pode ser encontrada em:  CASTELLS, Manuel. The information age:Economy, society and culture, vol.I: The rise of the network society. Cambridge MA., Oxford UK: Blackwell Publishers, 1996.

[3] As redefinições contemporâneas em torno da socialização têm forte consequências para o processo de ensino e aprendizagem, mas elas não têm recebido a devida atenção - Cf. LEITE, Ivonaldo. A reconfiguração dos sistemas educativos e a formação docente: demandas e alternativas. In: Ciência Hoje, Porto/Portugal, set/2006. 


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