sábado, 26 de março de 2016

Os mortos que não acabam de morrer

Madres de Plaza de Mayo - Buenos Aires 

Por Nildo Ouriques
(Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade 
Federal de Santa Catarina) 

Não sou leitor disciplinado do Mário Benedetti ainda que sempre cultivei pelo escritor uruguaio gratuita e precoce simpatia. No entanto, gosto de seu ensaio, especialmente aqueles voltados para entender a rebelde realidade da América Latina. Benedetti, quem foi alfabetizado em alemão e conhece profundamente a cultura européia, carrega magistralmente imensa originalidade latino-americana em tudo o que escreveu. Ademais, nunca cultivou as convenientes ambiguidades de Jorge Luis Borges, para ficar apenas no exemplo mais exuberante.
Foi no escrito Dos muertos que no acaban de morir, título tomado da canção de Viglietti inspirado no poema do peruano César Vallejo, onde Benedetti elucidou para a eternidade a relação entre política e verdade quando nós, latino-americanos, nos defrontamos com os presidentes estadunidenses e a política imperialista.
O texto foi lido em 1978 numa homenagem a dois parlamentares uruguaios (Zulmar Michelini e Héctor Gutierrez Ruiz) sequestrados e assassinados em Buenos Aires dois anos antes e apareceu num livro quase esquecido, intitulado El recurso del supremo patriarca
O genial escritor uruguaio elucida os "ciclos da CIA", especialmente útil para todos aqueles que defendem a democracia e rechaçam, ainda que de maneira cosmética, a violência na política. É também muito importante para verificar como, de fato, funciona o sistema democrático estadunidense e especialmente válido para entender o terrorismo de estado, a modalidade terrorista mais letal que a Humanidade já conheceu.
Nesta semana o presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, visitou Cuba e Argentina. Aqui no país vizinho, Obama confessou o "apoio dos Estados Unidos" à sangrenta ditadura (1976-1983), período onde desapareceram e foram assassinados milhares de argentinos (talvez mais de 30 mil). A assessora de segurança e política externa do presidente estadunidense, Susan Rice, disse ao jornal espanhol El País que, "para expressar nosso comprometimento com os direitos humanos, o presidente visitará o Parque da Memória, a fim de homenagear a memória das vítimas da guerra suja da Argentina. Além dos 4.000 documentos sobre esse período obscuro que os EUA já liberaram, o presidente Obama, a pedido do Governo argentino, anunciará um esforço para abrir documentos adicionais, incluindo, pela primeira vez, documentos militares e de inteligência. Acreditamos - disse a funcionária gringa - que essa viagem será uma demonstração histórica da aproximação entre nação e a América Latina".
A "generosidade" de Obama me recordou Benedetti e os "ciclos da CIA". 
Abaixo, sem talento literário, traduzo o trecho de Benedetti que dispensa comentário adicional.
"A história contemporânea ensina que os porta-vozes oficiais norte-americanos nunca reconhecem de imediato os excessos da CIA. Ainda mais: negam enfaticamente sua própria intervenção, como se quisessem dar a entender que a CIA atua por sua própria conta, sem consultar sequer a Casa Branca. Com frequência, transcorrem vários anos antes que algum sagaz jornalista do Washington Post ou do New York Times publique a previsível e sensacional série de artigos, denunciando a participação da Agencia Central de Inteligência em tal ou qual atentado (exitoso ou falido) ou em tal ou qual golpe de estado (geralmente exitoso). Somente então aparecem os menos previsíveis senadores da oposição (democratas, se o governo  é republicano; republicanos, se o governo é democrata) que, ecoando as denuncias jornalísticas, promovem exaustiva investigação que, obviamente, vai demonstrar com pelos e sinais, e também com gravações e fotografias, a culpabilidade da famosa Agencia. Uma vez alcançado esse ponto de ebulição, é fácil concluir no horóscopo o capítulo seguinte: aparecerão como por encanto comentaristas internacionais, jornalistas de nota, locutores de radio e televisão, prêmios Nobel, escritores com bolsa, ex-presidentes, ex-secretários da OEA, todos os quais lançaram sua voz para elogiar até as lágrimas a vigência do direito no sistema democrático dos Estados Unidos, capaz de detectar suas próprias transgressões, suas arapucas, suas mentiras e crimes, e, como se fosse pouco, nomeando os culpados por seus nomes e apelidos. Com semelhante toque final, e ainda que nenhuma dessas esplendorosas virtudes sirva para que os assassinados ressuscitem, o terreno fica pronto para começar a preparar a próxima eliminação de dirigentes de esquerda, a próxima queda de um avião de passageiros, o próximo atentado às embaixadas do Terceiro Mundo, e, assim sucessivamente. Como é lógico, quando algum destes planificados novos golpes da CIA se produza, aparecerá o porta-voz de sempre, ou seu substituto, para negar enfaticamente a participação de seu governo, e somente três anos depois um jornalista hábil descobrirá finalmente que foi a CIA a inspiradora do crime, e aparecerão senadores da oposição, etc., etc. O ciclo se cumpre e feliz páscoa."  


Nenhum comentário:

Postar um comentário