quinta-feira, 31 de março de 2016

Universidade, debates e o fundo do poço


Na escuridão da cegueira, Jorge Luís Borges recorreu ao alemão alles nahe werde fern (‘tudo que é próximo se afasta’), de Goethe, para dizer que, ao entardecer, as coisas que nos são mais próximas já se afastam dos nossos olhos. Vão-nos deixando. Por certo, soava paradoxal e melancólico que o mundo visível se afastasse dos olhos de Borges quando da manifestação crepuscular de uma existência que, pela sua produção espiritual, negava o perecer e o sagrava pela consagração da sua obra. Na vista que desaparecia, Borges conseguia, contudo, manter o equilíbrio de comportamento. Prova de que, mesmo diante das intempéries da cegueira, o exercício da racionalidade pode assegurar a permanência da razoabilidade. Pois bem, difícil mesmo é testemunhar a cegueira da irracionalidade nos não cegos dos olhos, e num local em que, de per si, é a casa da racionalidade, isto é, a universidade.  Imagine o que é um padrão de campanha de eleição reitoral ter como marca o modus operandi das torcidas de futebol, onde, além dos gritos, resolver as “diferenças” no braço não é uma opção descartada. Imagine o que é se programar um debate para o Campus de uma universidade, e a comunidade local desse Campus (professores, estudantes e servidores técnicos) ver-se constrangida por presenças exógenas. Imagine o que é o debate ser suspenso porque a atmosfera que prevalece é a da truculência, e não a do diálogo.  Dessas situações, a dedução logo se apresenta: chegou-se ao fundo do poço pelo exercício da irracionalidade numa instituição que deve ser guardiã da razão e exemplo de civilidade para a sociedade. Lamentável.


quarta-feira, 30 de março de 2016

Para uma universidade nova

Seja nos debates em que tenho participado, seja em trabalhos escritos, seja na linha de pesquisa da pós-graduação sobre política e gestão da educação, seja nas discussões do Fórum Universitário do Mercosul, tenho vindo a assinalar o significativo contributo que o ex-Reitor da UFBA Naomar  de Almeida Filho tem aportado - com base base prática - a respeito do futuro da universidade. O livro aí acima de sua autoria, em parceria com Boaventura de Sousa Santos, condensa importantes reflexões acerca da vida universitária e, de modo geral, da sua gestão. Leitura recomendada. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

Águas turvas: aviso aos navegantes

Por Laura Carvalho
(Profa. do Departamento de Economia da FEA – USP)

Em meio à tempestade, parece ter sido construído um consenso entre alguns setores do empresariado, do mercado financeiro e do Congresso de que a queda da presidente Dilma Rousseff é o melhor caminho para chegarmos a águas mais calmas. Com Michel Temer na Presidência, a tão desejada estabilidade criaria as bases para a resolução das atuais crises política e econômica nos próximos anos.
As condições econômicas favoráveis que caracterizaram a segunda metade dos anos 2000 permitiram ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva compatibilizar a manutenção da alta parcela da renda destinada ao 1% mais rico da população com a elevação do nível de emprego formal e dos salários e a redução da disparidade entre o salário mínimo e o salário médio da economia.
O ganha-ganha garantiu ao ex-presidente a sua base de sustentação política, abrindo espaço para que uma parte maior do Orçamento público fosse destinada a programas sociais, aos gastos com saúde e educação e aos investimentos em infraestrutura.
Desde 2011, a desaceleração econômica trouxe de volta um acirramento dos conflitos distributivos sobre a renda e o Orçamento público. A inflação de serviços, que crescia com os salários de trabalha- dores menos qualificados, deixou de ser compensada pelo menor custo dos produtos e insumos importados –que era fruto da valorização cambial– e passou a causar maior descontentamento.
As sucessivas tentativas de resolver tais conflitos priorizando o lado mais influente da barganha, ora pela via da concessão cada vez mais ampla de desonerações fiscais aos empresários entre 2012 e 2014, ora pela via da elevação do desemprego, redução de salários e ameaça aos direitos constitucionais, desde 2015, mostraram-se fracassadas na estabilização da economia e na construção de uma base de sustentação política para o governo Dilma.
Ignorando tais evidências, Temer apresentou no fim de outubro um esboço de seu programa de governo no documento intitulado "Uma Ponte para o Futuro", que foi elaborado por uma fundação do PMDB com a colaboração do ex-ministro Delfim Netto. O texto, entre outros itens, afasta a hipótese da elevação de impostos como caminho para o ajuste das contas públicas, sugerindo, ao contrário, acabar com vinculações constitucionais para os gastos com saúde e educação e com a indexação de benefícios previdenciários ao salário mínimo.
"Nossa crise é grave e tem muitas causas. Para superá-la, será necessário um amplo esforço legislativo, que remova distorções acumuladas e propicie as bases para um funcionamento virtuoso do Estado. Isso significará enfrentar interesses organizados e fortes, quase sempre bem representados na arena política", propõe.
Pelo teor do programa, os interesses organizados e fortes que serão enfrentados em um eventual governo Temer não são os dos financiadores de campanhas eleitorais, que já capitaneiam seu barco, mas sim os dos trabalhadores e movimentos sociais –apoiadores ou críticos ao governo– que foram às ruas na sexta-feira (18).
Não há registro histórico de um governo que, mesmo contando com a legitimidade conferida pelo voto, tenha conseguido, em meio a condições econômicas tão desfavoráveis e agravadas por essas escolhas, garantir a estabilidade e a paz social por essa via sem o uso de repressão crescente. Esses navegantes parecem, entretanto, decididos a pescar em águas turvas.


domingo, 27 de março de 2016

Eleições universitárias: rebaixamento do nível e debate acadêmico em risco



Por Ivonaldo Leite

Vamos ao básico procurando elevar o nível da discussão, pois, em determinados momentos, as circunstâncias requerem que (re)lembremos o elementar. Entendamo-nos.
Derivado do latim universitas, por sua vez resultante do latim clássico universus, o substantivo universidade designa a instituição que tem as funções educativas mais abrangentes, isto é, em conformidade com a sua raiz etimológica,  mais universais. Funções educativas em dupla perspectiva: por um lado, formar cognitiva e socialmente as pessoas que a frequentam; e por outro lado, como espaço do ‘conhecimento esclarecido’ (científico), ser um exemplo de conduta ética e cívica para o universo do lugar onde ela está situada.
Por isso, as eleições que ocorrem no interior da universidade revestem-se de uma relevância decorrente de, pelo menos, três razões.  
A primeira razão refere-se ao fato de que, nas contendas eleitorais universitárias, estão em causa disputas em torno de projetos político-administrativos que refletem concepções de universidade. Assim sendo, está em questão tanto a escolha da melhor forma de conduzir a instituição como também, em última instância, o modo de se conceber a sua relação com a esfera social e política mais geral.
A segunda razão concerne ao significado que a realização de eleições universitárias tem para a construção da cultura democrática. Para servidores docentes e técnicos, é um momento ímpar para exercitar o diálogo e a convivência com a diversidade, expressa entre posições contrárias (é uma ocasião, assim, inclusive, no caso docente, para que seja praticado o que geralmente é difundido de maneira teórica).  Para os estudantes, além do exercício da convivência com a diversidade, as eleições universitárias são também um momento de aprendizagem que, pelo processo de formação em que eles se encontram, transcende o ambiente acadêmico momentâneo (da disputa) e tem incidência sobre a sua compreensão de vida cidadã.  
Last but not least, a terceira razão. Ela diz respeito ao potencial exemplo, para a sociedade, que as eleições na universidade podem representar. Isto é, os pleitos universitários constituem uma oportunidade para que seja evidenciado um padrão político-educativo alternativo ao modus operandi da política partidária tradicional, na qual geralmente as eleições são marcadas pela disputa entre obscuras superestruturas financeiras, pela troca de favores, pela alienação de consciências mediante a compra de votos, pela propaganda enganosa através de propostas que não passam de peças de ficção, pelos discursos rasteiros que resvalam para o terreno pessoal, pelo grito da intolerância para abafar a fala do outro, pelas brigas entre eleitores a cabos eleitorais, pelo desrespeito puro e simples, etc. Em hipótese alguma, parâmetros como esses devem balizar as disputas das eleições na universidade, afinal esta ocupa o lugar de instância máxima da educação formal na sociedade.
Contudo, infelizmente, nos últimos tempos, temos presenciado o rebaixamento do nível nas eleições universitárias, degradando a qualidade da interlocução entre candidatos e colocando em risco o próprio mister da Educação Superior: o debate acadêmico. A título de ilustração empírica, tomemos como amostra o presente processo eleitoral na Universidade Federal da Paraíba, devendo ser assinalado, no entanto, que o caso não é apanágio da UFPB.
Não é razoável que os debates, onde concepções e propostas sobre a universidade devem ser apresentadas (e se tenha ambiente para discuti-las), sejam transformados num palco de enfrentamento entre torcidas, onde os gritos e os insultos inviabilizam a argumentação e o exercício da racionalidade (isso numa universidade!). Não é de bom tom que professores apoiadores de uma chapa, aos olhos dos alunos,  virem as costas em bloco para a mesa do debate  porque um candidato adversário vai falar - quanta descortesia, desrespeito à diversidade e dificuldade de conviver com um aspecto básico da democracia que é a divergência (isso numa universidade!). Não é condizente com o contexto universitário praticamente não se poder concluir um debate entre candidatos a reitor, com o último postulante a falar tendo a sua intervenção prejudicada pelo tumulto formado no auditório. Ser ouvido e não querer ouvir é uma expressão da rejeição ao diálogo e do autoritarismo (isso numa universidade!).
E assim vai sendo perdida a oportunidade de se discutir o futuro de uma instituição com a dimensão da UFPB e a sua relevância para o estado da Paraíba: um orçamento de cerca de um bilhão e trezentos milhões de reais (R$ 1.268.179.016,00); possuidora de 16 Centros de Ensino; ofertando 138 cursos de graduação; registrando 44 mil alunos matriculados, distribuídos na graduação presencial, a distância e na pós-graduação.  
Temas urgentes passam ao largo da discussão. Alguns deles: 1) A internacionalização e a busca da equalização entre o global e o local, mediante os programas de intercâmbio/de mobilidade e os protocolos de cooperação; 2) a relação universidade, sociedade e mercado, efetivada através do ensino, da pesquisa e da extensão. De modo geral, nesse tema, é possível vislumbrar posições como: a) defesa da completa subordinação da vida universitária à ‘lógica input-output’ do mercado; b) defesa de uma regulação mitigada da relação entre universidade e mercado; c) defesa de uma regulação que conserve a autonomia da instituição. A depender da forma como se enfrente essa questão, temos consequências diferentes, como, por exemplo, as que recaem sobre a área de ciências humanas, ou soft sciences, podendo estas serem ‘esvaziadas’, em função da ideia de utilidade valorizada pela herança positivista das hard sciences. 3) O acesso e a permanência discente na universidade, o que implica em discutir as modalidades e a gestão da assistência estudantil; 4) os problemas de infraestrutura, sendo necessário que se tenha uma posição concreta e sem tergiversações sobre as obras paralisadas.  
Essa diminuta amostra bem oferece uma visão dos desafios que a UFPB tem diante de si. Não será balançando chocalho, batendo bumbo, recorrendo às práticas da politicagem tradicional, utilizando um linguajar incompatível com a instituição universitária e tumultuando os debates à eleição reitoral, etc., que chegaremos aos procedimentos adequados para enfrentar os referidos desafios. No máximo, apequenar-se-á o seu valor perante a sociedade através da difusão da estupidez.

sábado, 26 de março de 2016

Os mortos que não acabam de morrer

Madres de Plaza de Mayo - Buenos Aires 

Por Nildo Ouriques
(Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade 
Federal de Santa Catarina) 

Não sou leitor disciplinado do Mário Benedetti ainda que sempre cultivei pelo escritor uruguaio gratuita e precoce simpatia. No entanto, gosto de seu ensaio, especialmente aqueles voltados para entender a rebelde realidade da América Latina. Benedetti, quem foi alfabetizado em alemão e conhece profundamente a cultura européia, carrega magistralmente imensa originalidade latino-americana em tudo o que escreveu. Ademais, nunca cultivou as convenientes ambiguidades de Jorge Luis Borges, para ficar apenas no exemplo mais exuberante.
Foi no escrito Dos muertos que no acaban de morir, título tomado da canção de Viglietti inspirado no poema do peruano César Vallejo, onde Benedetti elucidou para a eternidade a relação entre política e verdade quando nós, latino-americanos, nos defrontamos com os presidentes estadunidenses e a política imperialista.
O texto foi lido em 1978 numa homenagem a dois parlamentares uruguaios (Zulmar Michelini e Héctor Gutierrez Ruiz) sequestrados e assassinados em Buenos Aires dois anos antes e apareceu num livro quase esquecido, intitulado El recurso del supremo patriarca
O genial escritor uruguaio elucida os "ciclos da CIA", especialmente útil para todos aqueles que defendem a democracia e rechaçam, ainda que de maneira cosmética, a violência na política. É também muito importante para verificar como, de fato, funciona o sistema democrático estadunidense e especialmente válido para entender o terrorismo de estado, a modalidade terrorista mais letal que a Humanidade já conheceu.
Nesta semana o presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, visitou Cuba e Argentina. Aqui no país vizinho, Obama confessou o "apoio dos Estados Unidos" à sangrenta ditadura (1976-1983), período onde desapareceram e foram assassinados milhares de argentinos (talvez mais de 30 mil). A assessora de segurança e política externa do presidente estadunidense, Susan Rice, disse ao jornal espanhol El País que, "para expressar nosso comprometimento com os direitos humanos, o presidente visitará o Parque da Memória, a fim de homenagear a memória das vítimas da guerra suja da Argentina. Além dos 4.000 documentos sobre esse período obscuro que os EUA já liberaram, o presidente Obama, a pedido do Governo argentino, anunciará um esforço para abrir documentos adicionais, incluindo, pela primeira vez, documentos militares e de inteligência. Acreditamos - disse a funcionária gringa - que essa viagem será uma demonstração histórica da aproximação entre nação e a América Latina".
A "generosidade" de Obama me recordou Benedetti e os "ciclos da CIA". 
Abaixo, sem talento literário, traduzo o trecho de Benedetti que dispensa comentário adicional.
"A história contemporânea ensina que os porta-vozes oficiais norte-americanos nunca reconhecem de imediato os excessos da CIA. Ainda mais: negam enfaticamente sua própria intervenção, como se quisessem dar a entender que a CIA atua por sua própria conta, sem consultar sequer a Casa Branca. Com frequência, transcorrem vários anos antes que algum sagaz jornalista do Washington Post ou do New York Times publique a previsível e sensacional série de artigos, denunciando a participação da Agencia Central de Inteligência em tal ou qual atentado (exitoso ou falido) ou em tal ou qual golpe de estado (geralmente exitoso). Somente então aparecem os menos previsíveis senadores da oposição (democratas, se o governo  é republicano; republicanos, se o governo é democrata) que, ecoando as denuncias jornalísticas, promovem exaustiva investigação que, obviamente, vai demonstrar com pelos e sinais, e também com gravações e fotografias, a culpabilidade da famosa Agencia. Uma vez alcançado esse ponto de ebulição, é fácil concluir no horóscopo o capítulo seguinte: aparecerão como por encanto comentaristas internacionais, jornalistas de nota, locutores de radio e televisão, prêmios Nobel, escritores com bolsa, ex-presidentes, ex-secretários da OEA, todos os quais lançaram sua voz para elogiar até as lágrimas a vigência do direito no sistema democrático dos Estados Unidos, capaz de detectar suas próprias transgressões, suas arapucas, suas mentiras e crimes, e, como se fosse pouco, nomeando os culpados por seus nomes e apelidos. Com semelhante toque final, e ainda que nenhuma dessas esplendorosas virtudes sirva para que os assassinados ressuscitem, o terreno fica pronto para começar a preparar a próxima eliminação de dirigentes de esquerda, a próxima queda de um avião de passageiros, o próximo atentado às embaixadas do Terceiro Mundo, e, assim sucessivamente. Como é lógico, quando algum destes planificados novos golpes da CIA se produza, aparecerá o porta-voz de sempre, ou seu substituto, para negar enfaticamente a participação de seu governo, e somente três anos depois um jornalista hábil descobrirá finalmente que foi a CIA a inspiradora do crime, e aparecerão senadores da oposição, etc., etc. O ciclo se cumpre e feliz páscoa."  


quinta-feira, 24 de março de 2016

Refletir e evoluir

Por Ana Macarini 

Não há nenhuma facilidade para quem se atreve a questionar o que pensa; o que veste; o que fala; o que omite; o que consome; o que oferece. Refletir é, por si só, um ato de coragem. Ir vivendo e tocando a vida, deixando a correnteza fazer suas escolhas aleatórias é demasiado tentador. Sobretudo porque, o simples ato de pensar tira de nós a anestesia tão bem-vinda nesse mundo turbulento. Pensar é para quem tem coragem de cutucar com vara curta e frágil a sedutora comodidade de não se comprometer.
Compromisso é o nome que se dá ao ato de assumir a responsabilidade pelas escolhas feitas. E, é bom que tenhamos sempre em mente que, mesmo quando não escolhemos (ou, principalmente quando não escolhemos), estamos firmando uma posição. Afinal, o que pode ser mais arriscado que permitir a alguém ou a qualquer circunstância que faça escolhas em nosso nome?
Verdade seja dita, é muito mais fácil e seguro pegar emprestadas ideologias e discursos alheios; passar por sobre eles uma boa maquiagem; remodelar a formatação e sair por aí defendendo ideias prontas que parecem ter algum sentido ou vir ao encontro daquilo que nos parece familiar. Ouvir da boca do outro, palavras que parecem fazer coro com nossas necessidades, fornecem uma ilusão morna e acolhedora que nos faz relaxar por alguns instantes; que nos tira do sobressalto da urgência de tomar uma atitude, qualquer atitude.
Atitude é aquela ação mais agressiva e bem menos protegida que exige de nós que mostremos afinal a nossa cara; que coloquemos em cima da mesa apenas as cartas que temos, mesmo que sejam cartas repetidas, sem valor para virar o jogo. Atitude requer de nós a hombridade de só transformar em verbo o que formos capazes de honrar em ações. Atitude é, também, admitir que não se sabe tudo; que se tem mais perguntas que respostas; que estamos tão perplexos diante do cenário que se apresenta, que será preciso algum tempo, até que nos tornemos capazes de apresentar alguma alternativa, proposta ou sugestão. Ter atitude exige de nós algo muito mais profundo e orgânico do que simplesmente criticar.
O mundo é esse lugar aqui, não é lá fora, nem lá longe. O mundo é antes desenhado dentro de cada um de nós. Parte das nossas mais recolhidas esperanças e desejos é a sua manifestação. O mundo, é esse chão que você pisa. E que muitas vezes, nem é o chão que se projeta sob os seus pés; é o corpo, a alma e a vida de um irmão; que, de tão esquecido e invisível, misturou-se com a poeira que você carrega debaixo do seu sapato. O mundo é esse ar que nos envolve e que nos falta, na hora do medo; na hora da dor e na hora do prazer. O mundo é a minha, a sua, a nossa cara de paisagem diante das inúmeras contradições que nos assolam a cada instante.
O mundo é a montanha que virou buraco e a cidade que virou lama em Minas Gerais. O mundo é a incongruência de ter de admitir que, sem a indústria que explora e destrói, a cidade destruída não consegue se reerguer. Porque a mesma mão que alimenta e sustenta, bate com força na cara daqueles que não têm a moeda do poder. O mundo é essa maravilhosa discrepância graças à qual ainda há milhares de nós que não se conformam, não ficam lambendo os próprios umbigos e arregaçam as mangas para agir segundo um pensamento tão inusitado quanto lógico: assumir que errar é coisa de todo dia; acertar é só para quem se arrisca e o risco só vale à pena se não for apenas uma manobra de vaidade e exposição.
É a nossa insignificante existência e pequenez diante do universo que há de nos colocar de joelhos diante da nossa imensa falta de integridade; e há de nos colocar de pé, diante da audaciosa decisão de romper o ciclo. É a nossa consciência há tanto adormecida que há de nos despertar e de nos fazer gritar, mais com paixão do que com barulho um sonoro “BASTA”! Basta de fazer de conta que não somos sustentados por um modelo ultrapassado de consumo predatório. Basta de fechar os olhos às “pequenas irregularidades” que nos favorecem porque “não é isso que vai mudar o mundo”. Basta de clamar pelo fim da impunidade e parar o carro na fila dupla, torcendo para não ser pego pelo agente de trânsito. Basta de aceitar como fatalidade as consequências de modelos administrativos historicamente corruptos. Basta de assumir a simples e patética postura de se embrulhar numa bandeira e achar que isso vai resolver alguma coisa. O mundo é como é e está como está porque nós estamos muito mal-acostumados a abrir os olhos apenas para aquilo que nos interessa, nos dá notoriedade ou afeta diretamente. O fato é que corremos o risco de uma hora dessas abrirmos os olhos e não termos mais absolutamente nada para ver.
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Fonte: http://www.contioutra.com/. Título original: 'É impossível evoluir com os olhos vendados'. 

segunda-feira, 21 de março de 2016

Brasil à beira do caos e os perigos da desordem jurídica


Por Boaventura de Sousa Santos
(Universidade de Coimbra - Portugal) 

Quando, há quase trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema judicial em vários países, a administração da justiça era a dimensão institucional do Estado com menos visibilidade pública. A grande exceção eram os EUA devido ao papel fulcral do Tribunal Supremo na definição das mais decisivas políticas públicas. Sendo o único órgão de soberania não eleito, tendo um carácter reativo (não podendo, em geral, mobilizar-se por iniciativa própria) e dependendo de outras instituições do Estado para fazer aplicar as suas decisões (serviços prisionais, administração pública), os tribunais tinham uma função relativamente modesta na vida orgânica da separação de poderes instaurada pelo liberalismo político moderno, e tanto assim que a função judicial era considerada apolítica. Contribuía também para isso o facto de os tribunais só se ocuparem de conflitos individuais e não coletivos e estarem desenhados para não interferir com as elites e classes dirigentes, já que estas estavam protegidas por imunidades e outros privilégios. Pouco se sabia como funcionava o sistema judicial, as características dos cidadãos que a ele recorriam e para que objetivos o faziam. Tudo mudou desde então até aos nossos dias. Contribuíram para isso, entre outros fatores, a crise da representação política que atingiu os órgãos de soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns impasses políticos em temas controversos, terem começado a ver o recurso seletivo aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político de certas decisões. Foi ainda importante o facto de o neoconstitucionalismo emergente da segunda guerra mundial ter dado um peso muito forte ao controlo da constitucionalidade por parte dos tribunais constitucionais. Esta inovação teve duas leituras opostas. Segundo uma das leituras, tratava-se de submeter a legislação ordinária a um controlo que impedisse a sua fácil instrumentalização por forças políticas interessadas em fazer tábua rasa dos preceitos constitucionais, como acontecera, de maneira extrema, nos regimes ditatoriais nazis e fascistas. Segundo a outra leitura, o controlo da constitucionalidade era o instrumento de que se serviam as classes políticas dominantes para se defenderem de possíveis ameaças aos seus interesses decorrentes das vicissitudes da política democrática e da “tirania das maiorias”. Como quer que seja, por todas estas razões surgiu um novo tipo de ativismo judiciário que ficou conhecido por judicialização da política e que inevitavelmente conduziu à politização da justiça.
A grande visibilidade pública dos tribunais nas últimas décadas resultou, em boa medida, dos casos judiciais que envolveram membros das elites políticas e económicas. O grande divisor de águas foi o conjunto de processos criminais que atingiu quase toda a classe política e boa parte da elite económica da Itália conhecido por Operação Mãos Limpas. Iniciado em Milão em abril de 1992, consistiu em investigações e prisões de ministros, dirigentes partidários, membros do parlamento (em certo momento estavam a ser investigados cerca de um terço dos deputados), empresários, funcionários públicos, jornalistas, membros dos serviços secretos acusados de crimes de suborno, corrupção, abuso de poder, fraude, falência fraudulenta, contabilidade falsa, financiamento político ilícito. Dois anos mais tarde tinham sido presas 633 pessoas em Nápoles, 623 em Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe política com responsabilidades de governação no passado recente, o processo Mãos Limpas abalou os fundamentos do regime político italiano e esteve na origem da emergência, anos mais tarde, do “fenómeno” Berlusconi. Ao longo dos anos, por estas e por outras razões, os tribunais têm adquirido grande notoriedade pública em muitos países. O caso mais recente e talvez o mais dramático de todos os que conheço é a Operação Lava Jato no Brasil.
Iniciada em março de 2014, esta operação judicial e policial de combate à corrupção, em que estão envolvidos mais de uma centena de políticos, empresários e gestores, tem-se vindo a transformar a pouco e pouco no centro da vida política brasileira. Ao entrar na sua 24ª fase, com a implicação do ex-presidente Lula da Silva e com o modo como foi executada, está a provocar uma crise política de proporções semelhantes à que antecedeu o golpe de Estado que em 1964 instaurou a uma odiosa ditadura militar que duraria até 1985. O sistema judicial, que tem a seu cargo a defesa e garantia da ordem jurídica, está transformado num perigoso fator de desordem jurídica. Medidas judiciais flagrantemente ilegais e inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, a promiscuidade aberrante com a mídia ao serviço das elites políticas conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico, traduzido, por exemplo, em 27 liminares visando o mesmo ato político, tudo isto conforma uma situação de caos judicial que acentua a insegurança jurídica, aprofunda a polarização social e política e põe a própria democracia brasileira à beira do caos. Com a ordem jurídica transformada em desordem jurídica, com a democracia sequestrada pelo órgão de soberania que não é eleito, a vida política e social transforma-se num potencial campo de despojos à mercê de aventureiros e abutres políticos. Chegados aqui, várias perguntas se impõem. Como se chegou a este ponto? A quem aproveita esta situação? O que deve ser feito para salvar a democracia brasileira e as instituições que a sustentam, nomeadamente os tribunais? Como atacar esta hidra de muitas cabeças de modo a que de cada cabeça cortada não cresçam mais cabeças? Procuro identificar neste texto algumas pistas de resposta.
Como chegámos a este ponto?
Por que razão a Operação Lava Jato está a ultrapassar todos os limites da polémica que normalmente suscita qualquer caso mais saliente de ativismo judicial? Note-se que a semelhança com os processos Mãos Limpas na Itália tem sido frequentemente invocada para justificar a notoriedade e o desassossego públicos causado pelo ativismo judicial. Mas as semelhanças são mais aparentes do que reais. Há, pelo contrário, duas diferenças decisivas entre as duas operações. Por um lado, os magistrados italianos mantiveram um escrupuloso respeito pelo processo penal e, quando muito, limitaram-se a aplicar normas que tinham sido estrategicamente esquecidas por um sistema judicial conformista e conivente com os privilégios das elites políticas dominantes na vida política italiana do pós-guerra. Por outro lado, procuraram investigar com igual zelo os crimes de dirigentes políticos de diferentes partidos políticos com responsabilidades governativas. Assumiram uma posição politicamente neutra precisamente para defender o sistema judicial dos ataques que certamente lhe seriam desferidos pelos visados das suas investigações e acusações. Tudo isto está nos antípodas do triste espetáculo que um setor do sistema judicial brasileiro está a dar ao mundo. O impacto do ativismo dos magistrados italianos chegou a ser designado por República dos Juízes. No caso do ativismo do setor judicial lava-jatista, podemos falar, quando muito, de República judicial das bananas.
Porquê?
Pelo impulso externo que com toda a evidência está por detrás desta específica instância de ativismo judicial brasileiro e que esteve em grande medida ausente no caso italiano. Esse impulso dita a escancarada seletividade do zelo investigativo e acusatório. Embora estejam envolvidos dirigentes de vários partidos, a Operação Lava Jato, com a conivência da mídia, tem-se esmerado na implicação de líderes do PT com o objetivo, hoje indisfarçável, de suscitar o assassinato político da Presidente Dilma Roussef e do ex-Presidente Lula da Silva.
Pela importância do impulso externo e pela seletividade da ação judicial que ele tende a provocar, a Operação Lava Jato tem mais semelhanças com uma outra operação judicial ocorrida na Alemanha, na República de Weimar, depois do fracasso da revolução alemã de 1918. A partir desse ano e num contexto de violência política provinda, tanto da extrema esquerda como da extrema direita, os tribunais alemães revelaram um dualidade chocante de critérios, punindo severamente a violência da extrema esquerda e tratando com grande benevolência a violência da extrema direita, a mesma que anos mais tarde iria a levar Hitler ao poder.
No caso brasileiro, o impulso externo são as elites económicas e as forças políticas ao seu serviço que não se conformaram com a perda das eleições em 2014 e que, num contexto global de crise da acumulação do capital, se sentiram fortemente ameaçadas por mais quatro anos sem controlar a parte dos recursos do país diretamente vinculada ao Estado em que sempre assentou o seu poder. Essa ameaça atingiu o paroxismo com a perspectiva de Lula da Silva, considerado o melhor Presidente do Brasil desde 1988 e que saiu do governo com uma taxa de aprovação de 80%, vir a postular-se como candidato presidencial em 2018. A partir desse momento, a democracia brasileira deixou de ser funcional para este bloco político conservador e a desestabilização política começou. O sinal mais evidente da pulsão anti-democrática foi o movimento pelo impeachment da Presidente Dilma poucos meses depois da sua tomada de posse, algo, senão inédito, pelo menos muito invulgar na história democrática das três últimas décadas. Bloqueados na sua luta pelo poder por via da regra democrática das maiorias (a “tirania das maiorias”), procuraram pôr ao seu serviço o órgão de soberania menos dependente do jogo democrático e especificamente desenhado para proteger as minorias, isto é, os tribunais. A Operação Lava Jato, em si mesma uma operação extremamente meritória, foi o instrumento utilizado. Contando com a cultura jurídica conservadora dominante no sistema judicial, nas Faculdades de Direito e no país em geral, e com uma arma mediática de alta potência e precisão, o bloco conservador tudo fez para desvirtuar a Operação Lava Jata, desviando-a dos seus objetivos judiciais, em si mesmos fundamentais para o aprofundamento democrático, e convertendo-a numa operação de extermínio político. O desvirtuamento consistiu em manter a fachada institucional da Operação Lava Jato mas alterando profundamente a estrutura funcional que a animava por via da sobreposição da lógica política à lógica judicial. Enquanto a lógica judicial assenta na coerência entre meios e fins ditada pelas regras processuais e as garantias constitucionais, a lógica política, quando animada pela pulsão antidemocrática, subordina os fins aos meios, e é pelo grau dessa subordinação que define a sua eficácia.
Em todo este processo, três grandes fatores jogam a favor dos desígnios do bloco conservador. O primeiro resultou da dramática descaracterização do PT enquanto partido democrático de esquerda. Uma vez no poder, o PT decidiu governar à moda antiga (isto é, oligárquica) para fins novos e inovadores. Ignorante da lição da República de Weimar, acreditou que as “irregularidades” que cometesse seriam tratadas com a mesma benevolência com que eram tradicionalmente tratadas as irregularidades das elites e classes políticas conservadoras que tinham dominado o país desde a independência. Ignorante da lição marxista que dizia ter incorporado, não foi capaz de ver que o capital só confia nos seus para o governar e que nunca é grato a quem, não sendo seu, lhes faz  favores. Aproveitando um contexto internacional de excecional valorização dos produtos primários, provocado pelo desenvolvimento da China,

incentivou os ricos a enriquecerem como condição para dispor dos recursos necessários para levar a cabo as extraordinárias políticas de redistribuição social que fizeram do Brasil um país substancialmente menos injusto ao libertarem mais de 45 milhões de brasileiros da jugo endémico da pobreza. Findo o contexto internacional favorável, só uma política “à moda nova” poderia dar sustentação à redistribuição social, ou seja, uma política que, entre muitas outras vertentes, assentasse na reforma política para neutralizar a promiscuidade entre o poder político e o poder económico, na reforma fiscal para poder tributar os ricos de modo a financiar a
redistribuição social depois do fim do boom das commodities, e na reforma da mídia, não para censurar, mas para garantir a diversidade da opinião publicada. Era, no entanto, demasiado tarde para tanta coisa que só poderia ter sido feita em seu tempo e fora do contexto de crise.
O segundo fator, relacionado com este, é a crise económica global e o férreo controlo que tem sobre ela quem a causa, o capital financeiro, entregue à sua voragem autodestrutiva, destruindo riqueza sob o pretexto de criar riqueza, transformando o dinheiro, de meio de troca, em mercadoria por excelência do negócio da especulação. A hipertrofia dos mercados financeiros não permite crescimento económico e, pelo contrário, exige políticas de austeridade por via dos quais os pobres são investidos do dever de ajudar os ricos a manterem a sua riqueza e, se possível, a serem mais ricos. Nestas condições, as precárias classes médias criadas no período anterior ficam à beira do abismo de pobreza abrupta. Intoxicadas pela mídia conservadora, facilmente convertem os governos responsáveis pelo que são hoje em responsáveis pelo que lhes pode acontecer amanhã. E isto é tanto mais provável quanto a sua viagem da senzala para os pátios exteriores da Casa Grande foi realizada com o bilhete do consumo e não com o bilhete da cidadania.

O terceiro fator a favor do bloco conservador é o fato de o imperialismo norte-americano estar de volta ao continente depois das suas aventuras pelo Médio Oriente. Há cinquenta anos, os interesses imperialistas não conheciam outro meio senão as ditaduras militares para fazer alinhar os países do continente pelos seus interesses. Hoje, dispõem de outros meios que consistem basicamente em financiar projetos de desenvolvimento local, organizações não governamentais em que a defesa da democracia é a fachada para atacar de forma agressiva e provocadora os governos progressistas (“fora o comunismo”, “fora o marxismo”, “fora Paulo Freire”, “não somos a Venezuela”, etc, etc.). Em tempos em que a ditadura pode ser dispensada se a democracia servir os interesses económicos dominantes, e em que os militares, ainda traumatizados pelas experiências anteriores, parecem indisponíveis para novas aventuras autoritárias, estas formas de desestabilização são consideradas mais eficazes porque permitem substituir governos progressistas por governos conservadores mantendo a fachada democrática. Os financiamentos que hoje circulam abundantemente no Brasil provêm de uma multiplicidade de fundos (a nova natureza de um imperialismo mais difuso), desde as tradicionais organizações vinculadas à CIA até aos irmãos Koch, que nos

EUA financiam a política mais conservadora e que têm interesses sobretudo no sector do petróleo, e às organizações evangélicas norteamericanas.

Como salvar a democracia brasileira?
A primeira e mais urgente tarefa é salvar o judiciário brasileiro do  abismo em que está a entrar. Para isso, o sector íntegro do sistema judicial, que certamente é maioritário, deve assumir a tarefa de repor a ordem, a serenidade e a contenção no interior do sistema. O princípio orientador é simples de formular: a independência dos tribunais no Estado de direito visa permitir aos tribunais cumprir a sua quota parte de responsabilidade na consolidação da ordem e convivência democráticas. Para isso, não podem pôr a sua independência, nem ao serviço de interesses corporativos, nem de interesses políticos setoriais, por mais poderosos que sejam. O princípio é fácil de formular mas muito difícil de aplicar. A responsabilidade maior na sua aplicação reside agora em duas instâncias. O STF (Supremo Tribunal Federal) deve assumir o seu papel de máximo garante da ordem jurídica e pôr termo à anarquia jurídica que se está a instaurar. Muitas decisões importantes recairão sobre o STF nos próximos tempos e elas devem ser acatadas por todos qualquer que seja o seu teor. O STF é neste momento a única instituição que pode travar a dinâmica de estado de exceção que está instalada. Por sua vez, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a quem compete o poder de disciplinar sobre os magistrados, deve instaurar de imediato processos disciplinares por reiterada prevaricação e abuso processual, não só ao juiz Sérgio Moro como a todos os outros que têm seguido o mesmo tipo de atuação. Sem medidas disciplinares exemplares, o judiciário brasileiro corre o risco de perder todo o peso institucional que granjeou nas últimas décadas, um peso que, como sabemos, não foi sequer usado para favorecer forças ou políticas de esquerda. Apenas foi conquistado mantendo a coerência e a isonomia entre meios e fins.
Se esta primeira tarefa for realizada com êxito, a separação de poderes será garantida e o processo político democrático seguirá o seu curso. O governo Dilma decidiu acolher Lula da Silva entre os seus ministros. Está no seu direito de o fazer e não compete a nenhuma instituição, e muito menos ao judiciário, impedi-lo. Não se trata de fuga à justiça por parte de um político que nunca fugiu à luta, dado que será julgado (se esse for o caso) por quem sempre o julgaria em última instância, o STF. Seria uma aberração jurídica aplicar neste caso a teoria do “juiz natural da causa”. Pode, isso sim, discordar-se do acerto da decisão política tomada. Lula da Silva e Dilma Rousseff sabem que fazem uma jogada arriscada. Tanto mais arriscada se a presença de Lula não significar uma mudança de rumo que tire às forças conservadoras o controle sobre o grau e o ritmo de desgaste que exercem sobre o governo. No fundo, só eleições presidenciais antecipadas permitiriam repor a normalidade. Se a decisão de Lula-Dilma correr mal, a carreira de ambos terá chegado ao fim, e a um fim indigno, e particularmente indigno para um político que tanta dignidade devolveu a tantos milhões de brasileiros. Além disso, o PT levará muitos anos até voltar a ganhar credibilidade entre a maioria da população brasileira, e para isso terá de passar por um processo de profunda transformação. Se correr bem, o novo governo terá de mudar urgentemente de política para não frustrar a confianças dos milhões de brasileiros que estão a vir para a rua contra os golpistas. Se o governo brasileiro quer ser ajudado por tantos manifestantes, tem que os ajudar a terem razões para o ajudar. Ou seja, quer na oposição, quer no governo, o PT está condenado a reinventar-se. E sabemos que no governo esta tarefa será muito mais difícil.
A  terceira tarefa é ainda mais complexa, porque, nos próximos tempos, a democracia brasileira vai ter de ser defendida tanto nas instituições como nas ruas. Como nas ruas não se faz formulação política, as instituições terão a prioridade devida mesmo em tempos de pulsão autoritária e de exceção antidemocrática As manobras de desestabilização vão continuar e serão tanto mais agressivas quanto mais visível for a fraqueza do governo e das forças que o apoiam. Haverá infiltrações de provocadores tanto nas organizações e movimentos populares como nos protestos pacíficos que realizarem. A vigilância terá de ser total já que este tipo de provocação está hoje a ser utilizado em muitos contextos para criminalizar o protesto social, fortalecer a repressão estatal e criar estados de exceção, mesmo se com fachada de normalidade democrática. De algum modo, como tem defendido Tarso Genro, o estado de exceção está já instalado, de modo que a bandeira “Não vai ter golpe” tem de ser entendida como denunciando o golpe político-judicial que já está em curso, um golpe de tipo novo que é necessário neutralizar.
Finalmente, a democracia brasileira pode beneficiar da experiência recente de alguns países vizinhos.O modo como as políticas progressistas foram realizadas no continente não permitiram deslocar para esquerda o centro político a partir do qual se definem as posições de esquerda e de direita. Por isso, quando os governos progressistas são derrotados, a direita chega ao poder possuída por uma virulência inaudita apostada em destruir em pouco tempo tudo o que foi construído a favor das classes populares no período anterior. A direita vem então com um ânimo revanchista destinado a cortar pela raiz a possibilidade de voltar a surgir um governo progressista no futuro. E consegue a cumplicidade do capital financeiro internacional para inculcar nas classes populares e nos excluídos a ideia de que a austeridade não é uma política com que se possam defrontar; é um destino a que têm de se acomodar. O governo de Macri na Argentina é um caso exemplar a este respeito.

A guerra não está perdida, mas não será ganha se apenas se acumularem batalhas perdidas, o que sucederá se se insistir nos erros do passado.

domingo, 20 de março de 2016

Avistar árvores, mas não enxergar a floresta

Chega a ser um equívoco primário dissociar a atual crise brasileira de dois aspectos fundamentais: a questão geopolítica na América Latina e o debate econômico. No primeiro caso, já tivemos oportunidade aqui, mais de uma vez, de tratar do assunto. No segundo caso, trata-se de perceber que a sofrível versão de 'novo desenvolvimentismo' tentada pelos governos petistas foi 'emparedada' pela ortodoxia econômica neoclássica, servindo isso, como decorrência, de combustível para se empreender a liquidação do governo. Costumam repisar alguns historiadores econômicos, tendo em referência Hegel, que um dos problemas da ortodoxia neoclássica é 'avistar as árvores sem, contudo, enxergar a floresta'. Pois bem, entender a natureza do debate econômico, em conjunto com outras variáveis, é uma condição sine qua non  para se compreender dimensões não explicitadas da atual crise brasileira. Nesse sentido, Gonzaga Belluzzo e Zahluth Bastos oferecem, aí abaixo, um pertinente contributo. O artigo é uma resposta a um texto dos economistas neoclássicos Carlos Eduardo Gonçalves e Marcos de Barros Lisboa. 


Por Luiz Gonzaga Belluzzo e
Pedro Paulo Zahluth Bastos
(Instituto de Economia da Unicamp)  

Em novembro de 2008, a rainha Elizabeth 2ª ousou fazer a pergunta que os sábios da London School of Economics não queriam ouvir: por que nenhum previu a crise financeira de 2008? A pergunta perturbava a ortodoxia neoclássica, e a comissão formada ofereceu à rainha uma resposta singela: houve uma falha coletiva de "imaginação" de economistas que viam árvores, mas não a floresta.
Mais singela foi a resposta do presidente do Banco Central dos EUA entre 1987 e 2006, Alan Greenspan. Em depoimento à comissão do Senado para investigar a crise, Greenspan admitiu que havia uma falha na "ideologia" e no "modelo" que usava para interpretar o mundo. Nada mal para quem se dedicara por anos à desmontagem dos controles à livre movimentação financeira alegando que os "agentes racionais" do mercado usavam os modelos econômicos corretos e asseguravam o melhor equilíbrio possível na determinação dos preços e na alocação dos recursos.
Não faltou imaginação à resposta do patrono da revolução neoclássica desde os anos 1970, Robert Lucas. Embora há anos defendesse que, se os agentes fossem racionais, usariam as teorias dele (Lucas) para entender a estrutura da economia e prever o futuro da melhor maneira possível, o patrono das "expectativas racionais" escreveu em artigo na revista "The Economist" em 2009: "A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos". Ou seja, por axioma (ou ideologia), os indivíduos são racionais, suas interações nos mercados são eficientes e, portanto, a crise que aconteceu não poderia ser prevista.
O argumento que a probabilidade do que ocorreu, como calculou o Goldman Sachs, era igual a de ganhar 22 vezes seguidas na loteria cobria de retórica cientificista o fracasso em prever, ao menos, o movimento do sistema no sentido da instabilidade e da crise. Não era por falta de experiência histórica: desde 1980, a desregulamentação financeira avançou e, com ela, a frequência e a intensidade de crises que supostamente ocorreriam apenas três vezes na vida do universo.
A cada crise, os economistas neoclássicos não jogaram fora modelos teóricos sobre os quais construíram tanto reputação acadêmica quanto laços rentáveis, bem documentados, com instituições financeiras e "think tanks" neoliberais. Eles simplesmente culparam alguns "desvios" da realidade em relação ao modelo (desvios esses, aliás, "descobertos" ex-post). O inferno é a realidade, não o modelo simplório.
Pior para os economistas neoclássicos é que, além das personagens simpáticas do filme "A Grande Aposta", não foram poucos os economistas heterodoxos que previram a crise financeira, embora nenhum super-homem o tenha feito com o nível de exatidão do agente representativo que povoa os modelos neoclássicos de equilíbrio geral. O que explica o fracasso da ortodoxia em ver a floresta?


AXIOMA
O principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade, que interagem em livre concorrência para alcançar um equilíbrio estável na circulação de bens e serviços. Embora este indivíduo seja um axioma teórico não observado na realidade, é com base na suposição de sua existência que os "desvios" observados na realidade podem atrasar o equilíbrio geral ou gerar equilíbrios sub-ótimos: não há imperfeição na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo teórico.
A metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da "economia de mercado". Para este paradigma, a "sociedade" onde se desenvolve a ação econômica é constituída pela mera agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários ou estruturados pela sociedade.
Essa visão se inspirou no paradigma da física clássica. Explicamos melhor este ponto com a ajuda de Roy Bhaskar: se a concepção é atomística, então todas as causas devem ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca (isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem), toda ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos "atomizados" não são afetados pela ação e, portanto, ela deve se resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.
Assim, os indivíduos maximizadores são partículas que jamais alteram suas propriedades na interação com as outras partículas carregadas de "racionalidade". Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais eficiente possível a circulação da informação relevante.
Essa ontologia tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo, ou seja, com a emergência que caracteriza a dinâmica dos sistemas complexos.
Na versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos, que se expressa sob a forma de leis naturais, depois de processada pelo sujeito do conhecimento capaz, então, de prever efeitos no futuro.
Curioso é que, inspirada na física clássica, a ortodoxia neoclássica parou no tempo e não acompanhou a teoria dos sistemas complexos (ou do caos). A teoria da complexidade foi anunciada no final do século 19 por Henri Poincaré ao estudar a formação das órbitas dos planetas no Sistema Solar, mas foi redescoberta pelo meteorologista e matemático Edward Lorenz em 1960.
Lorenz descobriu que, com variações mínimas das condições iniciais (nunca capturadas precisamente pelos modelos), o tempo evoluiria de modo a tornar qualquer previsão inicial de pouco valor. Os erros e incertezas interagem, se multiplicam e formam processos cumulativos. A complexidade do sistema exigiria, mais do que uma previsão exata a partir de supostos iniciais irreais, que se proceda com base em um escrutínio profundo das condições iniciais e do modo como a estrutura do sistema vai se modificando, chegando por aproximações sucessivas aos cenários possíveis da evolução a partir de um arco inicial de trajetórias potenciais.
A irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à sua trajetória são elementos centrais da física do século 20. Em "Entre le Temps et l'Eternité" (entre o tempo e a eternidade), Ilya Prigogine e Isabelle Stengers mostram que as fenomenologias descritas pela termodinâmica, pela física das partículas e pela teoria da relatividade "não só afirmam a seta do tempo, mas também nos conduzem a compreender um mundo em evolução, um mundo onde a 'emergência do novo' reveste um significado irreversível (...) O ideal da razão suficiente supunha a possibilidade de definir a causa e o efeito, entre os quais uma lei de evolução estabeleceria uma equivalência reversível".
Ao manter o paradigma atomista, a ortodoxia neoclássica perde capacidade de explicar e, portanto, prever comportamentos emergentes de um sistema complexo como a economia capitalista. Em "Decoding Complexity" (decodificando a complexidade), James Glattfelder escreve com rigor: "A característica dos sistemas complexos é que o todo exibe propriedades que não podem ser deduzidas das partes individuais. Em suma, a teoria da complexidade trata de investigar como o comportamento macro decorre da interação entre os elementos do sistema".
Ao encontrar problemas de agregação insolúveis na tentativa de reduzir propriedades do sistema a propriedades dos indivíduos, a macroeconomia neoclássica reage não para incorporar a complexidade da realidade, mas para simplificar axiomas fundamentais ainda mais. Quando se demonstrou matematicamente que, dada a heterogeneidade dos indivíduos, não é possível prever o formato da função de demanda agregada e, muito menos, gerar uma função de demanda agregada com o formato propício para o equilíbrio maximizador, os neoclássicos preferiram a simplificação absurda: que o sistema pode ser modelado como se tivesse um único agente representativo que compra, vende, trabalha, contrata, consome e poupa, empresta e toma emprestado, que tem um único modelo sobre como a realidade funciona e que conhece a distribuição de probabilidade de todas as contingências futuras.
Inconsistências de agregação semelhantes para a teoria do capital ou para a curva de oferta agregada foram simplesmente desconsideradas. O método não trata da abstração da complexidade para reter seus aspectos essenciais, mas da eliminação da complexidade para manter a ficção reducionista e simplória do equilíbrio entre indivíduos maximizadores.
JUÍZOS DE VALOR
Tamanho apego da teoria neoclássica ao reducionismo da física clássica e ao axioma do indivíduo atomizado é impregnado por juízos de valor. Herda a previsão feita por Adam Smith e radicalizada pelo modelo de equilíbrio geral que, mantidos livres em sua interação, os indivíduos alcançariam um equilíbrio estável e maximizador, orientados pelo sistema de preços para alocar recursos escassos.
O indivíduo maximizador é tomado como um elemento natural e eterno cujas preferências mudam exogenamente ao sistema de interações. As interações têm sempre o mesmo modelo e não são afetadas pela irreversibilidade da história e por mudanças estruturais que caracterizam a complexidade social.
Tal complexidade é o principal elemento unificador das heterodoxias econômicas. Ao invés de reduzir a ação a um indivíduo representativo, os indivíduos são classificados e posicionados em uma estrutura que os divide como sujeitos sociais cuja harmonia não pode ser pressuposta: trabalhadores e capitalistas, empresários, banqueiros e rentistas. A estrutura é assimétrica pois certos indivíduos controlam a riqueza, mas é mutável e interage com estratégias de organizações empresariais, classes e grupos sociais, Estados e sistemas econômicos nacionais que têm poder desigual e que não podem ser previstas.
Instituições e convenções sociais podem conferir uma estabilidade transitória ao sistema, mas processos de causação cumulativa (feedbacks positivos) o afastam do equilíbrio e geram uma dinâmica instável, sujeita à irreversibilidade histórica. Assim, problemas de coordenação em condições de incerteza impedem a maximização no uso dos recursos ociosos e podem até mesmo provocar crises duradouras.
Concordamos com Marc Lavoie de que são pelo menos sete as falácias de composição que, como propriedades emergentes do sistema capitalista, a ortodoxia não é capaz de compreender e prever. O paradoxo da poupança é o mais conhecido: se todos os agentes buscarem poupar ao mesmo tempo, a queda de suas receitas frustra seus objetivos e pode provocar falências e até crises financeiras.
A recente adesão neoclássica à doutrina da austeridade expansionista mostra que pouco se aprendeu com a complexidade da crise financeira. No Brasil, a ideia de que o aumento da poupança pública animaria o gasto privado e geraria crescimento da arrecadação tributária estava na base da expectativa de mercado que a economia cresceria 0,8% em 2015, depois que Joaquim Levy anunciou seu programa. Já Levy previu que seu programa geraria uma "recessão de um trimestre", antes de persistir em um esforço fiscal que foi o dobro do que propusera, com resultados desastrosos.
Não há receita simples para o economista do século 21, mas Keynes propunha combinar os talentos complexos do "matemático, historiador, estadista e filósofo (na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e tocar o abstrato e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um político".
Talvez seja uma receita para o economista do século 21, avessa aos que insistem em imitar os cientistas naturais dos séculos 17 a 19.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 20/03/2016. 


quinta-feira, 17 de março de 2016

'Tudo que é solido desmancha no ar'

O texto aí abaixo foi publicado como parte de um trabalho que apresentei na Universidade de Paris X - Sorbonne. Incursiona pela dialética das venturas e desventuras do ser social, tendo no horizonte a ontologia do trabalho e a busca por um cotidiano cheio de sentido.  Talvez, para muitos que hoje, no Brasil, estão estupefatos com a dimensão que a crise política atingiu, tenha faltado compreender exatamente essa perspectiva da dialética histórica: o movimento é uma dimensão central da história, as suas águas são agitadas, e não perceber isso significa expor-se à ação das suas quilhas. 





Ivonaldo Leite

La notion de rapport salarial est une composante de la base théorique elaborée par les auteurs de la théorie de la régulation. Le rapport salarial est une des formes institutionnelles qui peuvent induire un mode de régulation.
C’est-à-dire, les formes institutionnelles sont un ensemble de principes qui permettent surmonter, par quelque période, le conflit entre l’expansion des capacités de production et l’obstruction de l’expansion de la consommation causée par la pression concorrencielle sur les salaires. Donc elles sont dans la base des régularités qui assurent la reproduction d’un régime d’ acumulation.
Par exemple, aprés la Seconde Guerre, celles-ci ont rendu possible établir un mode de régulation, sous le fordisme, qui serait responsable par un régime avec accumulation intensive et consommation de masse. Donc une situation différente quand comparée avec celle antérieur aux anées dix-neuf-cent quarante, où la transformation des conditions de production étais en contradiction avec la faible progression du revenu salarial et la réduite intégration des travailleurs dans la reproduction de l’ensemble du système économique. Alors on avait une situation caractérisée par un régime d’accumulation intensive sans consommation de masse, et donc on avait aussi des problèmes de réalisation du capital. C’est l’origine de la crise des anées dix-neuf-cent trente, qu’a été outrepassée par l’invention de nouvelles formes institutionelles responsables surtout par une correspondance entre la croissance de la production et l’expansion de la consommation. Celle-ci la base général des trente glorieuses  anées fordistes. Les formes institutionnelles sont cinq: les formes de la concurrence; les formes de la contrainte monétaire;les formes de l’État; les modalités d’adhésion au régime international; le rapport salarial.     
Comme notre intérêt, ici, est le concept du rapport salarial, c’est important dire qu’il désigne le processus de socialisation de l’activité de production, à savoir le salariat. Une forme du rapport salarial se défine par l´ensemble des conditions juridiques et institutionnelles qui régissent l´usage du travail salarié comme le monde d´existence des traveilleurs. D’autre part, la notion de relation salariale correspond à la projection de ce concept au niveau et dans les catégories spécifiques. Donc cet approche s’oppose au psychologisme individualiste. Elle ouvre un vaste champ d’étude, celui de la construction historique et économique du social, de ses institutions et de ses acteurs collectifs
Analytiquement, on peut décrire, par exemple, les composantes suivantes du rapport salarial :  L’organisation du procès de travail; les modalités de mobilisation et de liaison des salariés au lieu de travail; la formation du revenu salarial (direct et indirect); le type de moyens de production ; le mode de vie salarié (mode de consommation).
Alors, pour avoir succès, un rapport salarial demande une double validation. C’est une validation qui croise reproduction économique et reproduction social, car il ne peut pas être réduit à un rapport contractuel entre l’employeur et le salarié, ni à un simple rapport de domination hiérarchique. 

quarta-feira, 16 de março de 2016

A crise, os generais, os exércitos e os cenários

 


Por Alo Fornaziere
(Escola de Sociologia e Política de São Paulo) 

Preâmbulo
Para usar uma analogia militar para entender a crise atual,  pode-se dizer que o ex-presidente Lula é um general com parte do exército desorganizada e parte em franca deserção. O principal problema dele é que não tem um Estado Maior. Nenhum general vence guerras sem Estado Maior. No governo não há Estado Maior. Há mais de um ano em crise, o governo nunca organizou um comitê de crise. Os ministros da casa não contam. Podem dizer uma coisa ou outra e Dilma faz o que quer. A desorganização é total. O PT não comanda mais nada. A militância não acredita na direção. Também não há um comando estratégico no partido para enfrentar a crise. Não há definições táticas, estratégicas, defesas, forças de ataque, nada.
A oposição é constituída por um grupo de generais e oficiais sem exércitos. Diante desta monumental  crise, a oposição nunca foi capaz de convocar um ato. Sempre foi a reboque de forças alheias. Generais da oposição não são bem vistos pelas tropas que se mobilizam nas ruas. No domingo expulsaram Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Marta Suplicy da Avenida Paulista. Já os manifestantes nas ruas se comportam como tropas anárquicas que não querem saber do comando de generais. Parecem querer um ditador. De preferência, Sérgio Fernando Moro, um juiz de primeira instância alçado à condição de juiz universal e salvador da pátria. Agora, acreditar que de grupos como o MBL e assemelhados possa surgir líderes significativos significa acreditar na inviabilidade eterna do Brasil.
O PMDB, por sua vez, se comporta como uma frente de caudilhos mercenários desunidos, mas que só é capaz de se unir para dar o bote final. Se une para o assalto da cidadela do Planalto. Feito o assalto, os caudilhos voltarão às suas divisões tradicionais. O que interessa são cargos, recursos, negociatas, poder. É a política como meio puro, sem causas e sem fins.
As manifestações de domingo complicaram uma saída para a crise. Se não serve Aécio, Temer serve menos ainda. Se vier a assumir, sua cabeça será pedida, assim como a de Renan Calheiros, de Cunha e de outros caciques. Se a Lava Jato parar ante a possibilidade de um novo governo, será sua desmoralização, o fim do juiz herói. A fúria devastadora das massas desordenadas quer uma limpeza completa. Se vier uma eleição para presidente, a chance de um aventureiro ou de um outiser triunfar é muito grande. Essa crise tem sinais de que será prolongada.

Os Cenários Insatisfatórios
Todos os cenários de solução da crise parecem insatisfatórios. Se Dilma continuar, seu governo continuará se arrastando até 2018. Aniquilaria qualquer chance do PT e de Lula. A entrada de Lula, neste momento, no governo confere-lhe o risco de naufragar em definitivo junto com o próprio governo. Um abraço de afogados. Para o PT, a única tábua de salvação consiste em tentar salvar Lula para 2018. Mas como? Com a renúncia de Dilma? Talvez. Dilma poderia construir uma boa peça política que justificasse a renúncia. Para os prefeitos do PT que concorrem à reeleição e para os futuros candidatos a prefeitos, a renúncia rápida seria a melhor saída. Dar-lhes-ia tempo para se recomporem, o PT passaria à oposição enfrentando um governo marcado pela ilegitimidade e com grave crise econômica e social para enfrentar.
As perspectivas do PT são difíceis e ambíguas. Do ponto de vista das eleições de 2016, a solução mais plausível é a renúncia de Dilma. Do ponto de vista da recomposição das forças sociais, o melhor é enfrentar o processo de impeachment. Haveria lutas, aglutinação de forças, munição para o combate. Mas o encavalamento de processo de impeachment com eleições municipais pode ser devastador para os candidatos petistas.
A oposição não está em situação melhor. Se Temer assumir, terá a marca da ilegitimidade, terá o PT e os movimentos sociais como oposição e as massas pró-impeachement ser-lhes-ão hostis. Terá que adotar medidas duríssimas, circunstância que desencadeará protestos de todo tipo. Temer não é Itamar. Itamar tinha a complacência de todos. Temer não terá a complacência de ninguém. Collor não tinha forças sociais. O PT ainda exerce influência sobre as forças sociais mais organizadas do país. A crise continuará.
Se vierem novas eleições, Aécio Neves deverá ser o candidato do PSDB. Tem várias citações na Lava Jato. Foi chamado de “oportunista” e corrupto na Avenida Paulista. O risco de vencer uma Marina Silva, um Ciro Gomes ou um aventureiro qualquer é grande.
O semipresidencialismo de Renan Calheiros é uma não solução. Que legitimidade teria um Congresso corrupto, com Eduardo Cunha e Renan afundados até o pescoço nas denúncias, de indicar um primeiro-ministro? Um Congresso que tem dezenas de deputados denunciados e 12 senadores investigados. Poderia ser implantado o semipresidencialismo ou semiparlamentarismo sem um referendo popular? Sem um referendo seria visto como um golpe, como uma remissão a 1961.

Uma Crise Complexa
A atual crise é como um jogo de xadrez sendo jogado em quatro tabuleiros. Num dos tabuleiros só jogam o juiz Moro, o Ministério Público, a Polícia Federal e o STF. Este é o jogo do imponderável, do incontrolável. Esses jogadores têm o poder de desorganizar o jogo de todos os outros tabuleiros. É um jogo que atormenta o sono do governo e da oposição, de Lula e de Aécio Neves, de Dilma e de Eduardo Cunha, de Renan Calheiro e de Temer. 
Preâmbulo
Para usar uma analogia militar para entender a crise atual,  pode-se dizer que o ex-presidente Lula é um general com parte do exército desorganizada e parte em franca deserção. O principal problema dele é que não tem um Estado Maior. Nenhum general vence guerras sem Estado Maior. No governo não há Estado Maior. Há mais de um ano em crise, o governo nunca organizou um comitê de crise. Os ministros da casa não contam. Podem dizer uma coisa ou outra e Dilma faz o que quer. A desorganização é total. O PT não comanda mais nada. A militância não acredita na direção. Também não há um comando estratégico no partido para enfrentar a crise. Não há definições táticas, estratégicas, defesas, forças de ataque, nada.
A oposição é constituída por um grupo de generais e oficiais sem exércitos. Diante desta monumental  crise, a oposição nunca foi capaz de convocar um ato. Sempre foi a reboque de forças alheias. Generais da oposição não são bem vistos pelas tropas que se mobilizam nas ruas. No domingo expulsaram Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Marta Suplicy da Avenida Paulista. Já os manifestantes nas ruas se comportam como tropas anárquicas que não querem saber do comando de generais. Parecem querer um ditador. De preferência, Sérgio Fernando Moro, um juiz de primeira instância alçado à condição de juiz universal e salvador da pátria. Agora, acreditar que de grupos como o MBL e assemelhados possa surgir líderes significativos significa acreditar na inviabilidade eterna do Brasil.
O PMDB, por sua vez, se comporta como uma frente de caudilhos mercenários desunidos, mas que só é capaz de se unir para dar o bote final. Se une para o assalto da cidadela do Planalto. Feito o assalto, os caudilhos voltarão às suas divisões tradicionais. O que interessa são cargos, recursos, negociatas, poder. É a política como meio puro, sem causas e sem fins.
As manifestações de domingo complicaram uma saída para a crise. Se não serve Aécio, Temer serve menos ainda. Se vier a assumir, sua cabeça será pedida, assim como a de Renan Calheiros, de Cunha e de outros caciques. Se a Lava Jato parar ante a possibilidade de um novo governo, será sua desmoralização, o fim do juiz herói. A fúria devastadora das massas desordenadas quer uma limpeza completa. Se vier uma eleição para presidente, a chance de um aventureiro ou de um outiser triunfar é muito grande. Essa crise tem sinais de que será prolongada.

Os Cenários Insatisfatórios
Todos os cenários de solução da crise parecem insatisfatórios. Se Dilma continuar, seu governo continuará se arrastando até 2018. Aniquilaria qualquer chance do PT e de Lula. A entrada de Lula, neste momento, no governo confere-lhe o risco de naufragar em definitivo junto com o próprio governo. Um abraço de afogados. Para o PT, a única tábua de salvação consiste em tentar salvar Lula para 2018. Mas como? Com a renúncia de Dilma? Talvez. Dilma poderia construir uma boa peça política que justificasse a renúncia. Para os prefeitos do PT que concorrem à reeleição e para os futuros candidatos a prefeitos, a renúncia rápida seria a melhor saída. Dar-lhes-ia tempo para se recomporem, o PT passaria à oposição enfrentando um governo marcado pela ilegitimidade e com grave crise econômica e social para enfrentar.
As perspectivas do PT são difíceis e ambíguas. Do ponto de vista das eleições de 2016, a solução mais plausível é a renúncia de Dilma. Do ponto de vista da recomposição das forças sociais, o melhor é enfrentar o processo de impeachment. Haveria lutas, aglutinação de forças, munição para o combate. Mas o encavalamento de processo de impeachment com eleições municipais pode ser devastador para os candidatos petistas.
A oposição não está em situação melhor. Se Temer assumir, terá a marca da ilegitimidade, terá o PT e os movimentos sociais como oposição e as massas pró-impeachement ser-lhes-ão hostis. Terá que adotar medidas duríssimas, circunstância que desencadeará protestos de todo tipo. Temer não é Itamar. Itamar tinha a complacência de todos. Temer não terá a complacência de ninguém. Collor não tinha forças sociais. O PT ainda exerce influência sobre as forças sociais mais organizadas do país. A crise continuará.
Se vierem novas eleições, Aécio Neves deverá ser o candidato do PSDB. Tem várias citações na Lava Jato. Foi chamado de “oportunista” e corrupto na Avenida Paulista. O risco de vencer uma Marina Silva, um Ciro Gomes ou um aventureiro qualquer é grande.
O semipresidencialismo de Renan Calheiros é uma não solução. Que legitimidade teria um Congresso corrupto, com Eduardo Cunha e Renan afundados até o pescoço nas denúncias, de indicar um primeiro-ministro? Um Congresso que tem dezenas de deputados denunciados e 12 senadores investigados. Poderia ser implantado o semipresidencialismo ou semiparlamentarismo sem um referendo popular? Sem um referendo seria visto como um golpe, como uma remissão a 1961.

Uma Crise Complexa
A atual crise é como um jogo de xadrez sendo jogado em quatro tabuleiros. Num dos tabuleiros só jogam o juiz Moro, o Ministério Público, a Polícia Federal e o STF. Este é o jogo do imponderável, do incontrolável. Esses jogadores têm o poder de desorganizar o jogo de todos os outros tabuleiros. É um jogo que atormenta o sono do governo e da oposição, de Lula e de Aécio Neves, de Dilma e de Eduardo Cunha, de Renan Calheiro e de Temer.
O outro tabuleiro é o Congresso. Ali se trava a batalha principal do impeachment. Seja qual for o resultado, o desfecho será dramático. Deixará feridas sangrentas. Os ganhadores de hoje podem ser os perdedores de amanhã. O terceiro tabuleiro é o governo. Quase ninguém mais quer jogar nesse tabuleiro. O PMDB quer sair desse jogo. O PT também. A rigor, o PT não apoia mais o governo. Apoiar um governo significa dar-lhe sustentação no Congresso, apoiar suas políticas. O PT já não está fazendo isto. Dilma é uma jogadora cada vez mais solitária.
O quarto tabuleiro está nas ruas, nos ambientes de trabalho, nas redes sociais. O jogo é emocionante. Movido a paixões e ódios. As massas enfurecidas do impeachment e do combate à corrupção contam com o apoio de decisões politicamente orientadas da Lava Jato. As forças de esquerda tendem a se aglutinar muito mais em torno de Lula do que do governo. Olham mais para o futuro do que para o presente.
As massas, como diria o velho Hegel, aqui sim, o filósofo alemão Hegel dos “Princípios da Filosofia do Direito”, as massas são confusas. Nelas está a verdade e o erro infinito. Defendem o essencial do bem comum, mas quando julgam podem produzir desastres. São facilmente enganadas por demagogos. Podem escrever jornadas glorificantes ou soluções cujos efeitos maléficos perdurem décadas.
Os políticos do governo e da oposição, do PT e do PSDB, deveriam negociar uma saída olhando para o Brasil, tendo como referência o que as massas querem. A saída terá que ser política. E a política requer negociação. Produzir vitoriosos e derrotados neste momento prolongará a crise. Há que se encontrar uma solução tampão para que a democracia se depure no tempo, pelos seus mecanismos legítimos. Mas, neste momento, faltam lideranças, falta bom senso e sobra oportunismo de um lado e desespero de outro.
 O outro tabuleiro é o Congresso. Ali se trava a batalha principal do impeachment. Seja qual for o resultado, o desfecho será dramático. Deixará feridas sangrentas. Os ganhadores de hoje podem ser os perdedores de amanhã. O terceiro tabuleiro é o governo. Quase ninguém mais quer jogar nesse tabuleiro. O PMDB quer sair desse jogo. O PT também. A rigor, o PT não apoia mais o governo. Apoiar um governo significa dar-lhe sustentação no Congresso, apoiar suas políticas. O PT já não está fazendo isto. Dilma é uma jogadora cada vez mais solitária.
O quarto tabuleiro está nas ruas, nos ambientes de trabalho, nas redes sociais. O jogo é emocionante. Movido a paixões e ódios. As massas enfurecidas do impeachment e do combate à corrupção contam com o apoio de decisões politicamente orientadas da Lava Jato. As forças de esquerda tendem a se aglutinar muito mais em torno de Lula do que do governo. Olham mais para o futuro do que para o presente.
As massas, como diria o velho Hegel, aqui sim, o filósofo alemão Hegel dos “Princípios da Filosofia do Direito”, as massas são confusas. Nelas está a verdade e o erro infinito. Defendem o essencial do bem comum, mas quando julgam podem produzir desastres. São facilmente enganadas por demagogos. Podem escrever jornadas glorificantes ou soluções cujos efeitos maléficos perdurem décadas.
Os políticos do governo e da oposição, do PT e do PSDB, deveriam negociar uma saída olhando para o Brasil, tendo como referência o que as massas querem. A saída terá que ser política. E a política requer negociação. Produzir vitoriosos e derrotados neste momento prolongará a crise. Há que se encontrar uma solução tampão para que a democracia se depure no tempo, pelos seus mecanismos legítimos. Mas, neste momento, faltam lideranças, falta bom senso e sobra oportunismo de um lado e desespero de outro.
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Fonte: http://jornalggn.com.br/