Por Carlos Russo
O Surgimento da Tragédia Grega
É uma tarefa ingrata qualquer tentativa de hierarquizarem-se as
invenções do espírito grego. Afinal, um povo que criou a filosofia, as bases
para a análise científica da natureza, o raciocínio abstrato, a matemática e o
cálculo, o conhecimento aguçado do comportamento psíquico do homem, qual destas
contribuições terá sido a mais importante? Mas se identificarmos em toda a
cultura helênica qual criação foi não necessariamente a mais decisiva, mas,
sim, a mais ousada, tal qual Bonnard, não teremos dúvida de que tenha sido a
Tragédia Grega.
Desde seu nascimento, que data do princípio do século V a.C. até o
seu declínio, nos anos 20 do século IV a.C., a Tragédia se desenvolveu dentro
de condições históricas importantes de serem compreendidas para o entendimento desta
“nova arte”. A tragédia dita primitiva – “o diritambo”
trazia o mundo dos deuses até o mundo dos homens, tornando o divino mais
humano. A Tragédia Grega ampliará isto, primeiramente exigindo que os deuses
sejam justos e imponham a justiça – a dique – ao mundo, e, em segundo lugar, que a
partir do exemplo divino estabeleça-se uma ordenação na comunidade dos homens.
Historicamente a Tragédia surge no declínio dos aristocratas,
durante a tirania de Pisístrato, que foi levado ao poder à força, pelos camponeses
mais pobres. Promoveu reformas sociais importantes, dentre elas uma melhor
distribuição de terras e instituiu as festas Dionísicas, como concurso de
produções artísticas para o deleite dos cidadãos. Pisístrato é uma ponte de
passagem para Péricles e a Democracia Grega, assim como do diritambo à Tragédia.
O ditirambo constitui um canto religioso
dionisíaco, entoado por cantores que, em coro, utilizavam personas – máscaras de animais. Já continha
elementos dramáticos e transmitiam à plateia participante, um acontecimento
mítico. De conformidade com Heródoto, foi Arion de Corinto quem introduziu o
elemento satírico, complemento necessário ao diritambo,
ou seja um recital de versos, entremeado aos elementos corais. Os “sátiros”,
utilizando suas máscaras características, permitiram uma nova dinâmica no canto
dionísico, prenunciando o surgimento dos atores e da própria tragédia.
Quando o deus Dionísio surge na Grécia, com toda a sua sintonia e
integração com a natureza, a ele se unem todos os sátiros que com seu poderoso falo serão
companheiros para todo o sempre.
Aristóteles afirmou que “o historiador narra o que aconteceu e o
poeta o que poderia ter acontecido”. Ao mesmo tempo ele afirma ser a poesia
“mais filosófica que a história”, dado que esta última tende ao específico e a
poesia, ao “universal”. Os mitos formavam o conteúdo dessa poesia, assumindo um
valor de realidade. Logo, a poesia épica ao narrar o mito constrói dois
patamares: um que é o divino e o outro, o humano, de tal modo que o desenrolar
dos acontecimentos na esfera do divino determinará o desenrolar dos
acontecimentos terrenos.
A máscara da Tragédia, deixa de ser aquela máscara figurativa de
demônios ou animais, mas surge como um elemento cênico importante, elemento
esteticamente definido. Representa um sujeito “psicológico”, integrando a
personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida: a dos
Heróis.
Em contraponto com os atores estará o coro trágico, um ser anônimo
e coletivo, cujo papel, de conformidade com Vernant, consiste em “exprimir seus
temores, suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos expectadores que
compõem a comunidade cívica”.
Desta forma, na Tragédia, a narrativa é realizada no presente e
todo lirismo do século V a.C. tende a dar valor à realidade terrena; o presente
é apenas “iluminado” pelos mitos, pelo passado e pelos lugares em que os
“fatos” teriam ocorrido. A construção dos modelos, os Heróis, constitui os
paradigmas éticos, que é o reconhecimento de comportamentos referenciados pela
melhor tradição cívica.
Para o espectador grego, o que se representa é verdade? Não.
Então, é pura mentira? Também não, pois o critério da verdade e da mentira que
se poderia utilizar na poesia épica perdera toda a serventia. A arte imita e
interpreta a realidade, representando-a somente, tornando-se com isto uma nova
e particular realidade.
Precisamente na Tragédia é onde o mito perde toda e qualquer
conexão com situações determinadas, concretas. Já não serve para representação
de fatos da vida humana fixados no tempo e no lugar, como vitórias, conquistas,
cultos religiosos, mas para a representação de fatos universais.
É deste modo que o interesse da Tragédia se desloca para a
Filosofia e já estará próximo o momento em que a problemática da condição
humana de que trata a Tragédia se transformará em um problema do conhecimento,
do logos. Este será o
exato momento em que a realidade passa a ser concebida em sentido totalmente
abstrato e ocorre o surgimento de Sócrates tentando equacionar a condição
humana através do bem. Eurípides, o último dos grandes trágicos, ainda está
longe disto, pois é poeta e não filósofo, apesar de influenciado pelos sofistas
e por Sócrates. Talvez por isso mesmo ainda vê a realidade através de
figuras vivas, não através de conceitos. Entretanto, é analisando suas poesias
que entenderemos Aristóteles quando diz que “a poesia é mais filosofia que
história”.
O Momento histórico da Tragédia
Louis Gernet demonstrou que, buscando suas referências num passado
distante, no momento da cosmogonia, das epopeias e dos feitos Heróicos, a
verdadeira matéria que constitui a Tragédia é o pensamento social em
efervescência nas cidades gregas, especialmente o pensamento jurídico em pleno
trabalho de construção.
Todo um vocabulário que é técnico e que perfaz os dramas, assim
como a condução de diversos Heróis à presença de Tribunais, recentemente
introduzidos, possuíam a novidade dos valores que regulavam sua fundamentação.
No dizer de Vernant: “os poetas trágicos utilizam este vocabulário
deliberadamente com as incertezas, com suas flutuações, com sua falta de
acabamento, traduzindo igualmente seu conflito com uma tradição religiosa, com
uma reflexão moral de que o direito já se distinguira, mas cujos domínios não
estão claramente delimitados.” “O direito não é uma construção lógica:
constituiu-se historicamente a partir de procedimentos “pré-jurídicos” de que
se libertou e aos quais se opõe, embora em parte permaneça solidário com eles”.
Os gregos não têm a ideia de um direito absoluto, fundado sobre
princípios, organizado num sistema coerente. Para eles há como que graus de
direito. Num polo o direito apoia-se na autoridade de fato; no outro, coloca em
jogo potências sagradas, assim como problemas éticos e morais que dizem
respeito ao homem.
A Tragédia questiona essa realidade que é nova, coincidente com a
formação dos cidadãos-livres, o sentido da cidade como Pátria, a
responsabilidade coletiva vivenciada na democracia. Por isso, a tragédia é
questionadora da realidade vivida e de seus valores, ao invés de, simplesmente
ser um “espelho” do real que assume os palcos. Ela foi mais do que tudo uma
instituição social, ao lado dos órgãos públicos políticos e de justiça. É a
própria cidade que se faz teatro no momento das celebrações dionisíacas. E o
teatro é tão importante que a presença do cidadão é subsidiada pelo poder
público, sendo que o próprio Arconte responsabiliza-se por toda a sua
realização.
A problemática e os elementos trágicos
Katarsis
A primeira concepção globalizante da Tragédia Grega está na
“Poética” de Aristóteles, e nela encontramos a “katarsis” nos três atores no
palco, nos coreutas participantes, e, principalmente, no público que a
assistia. “Tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa
extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de
suas formas, segundo as partes: ação representada não com a ajuda de uma
narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por
efeito obter a purgação das aflições.”
Harmatia e a hibris
Quando Aristóteles desenvolve sua teoria da mudança-
“metabolismo”, do destino como o “umbigo” do mito trágico, ele torna claro que
nenhuma queda no infortúnio deve advir de um defeito moral do herói, mas sim de
uma falha, no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto
e de agir seguro. O famoso dístico apolíneo “conhece a ti mesmo”, não possui
nenhuma conotação de autoconhecimento ou introspecção, pois o homem grego
enxergava-se através de seu reflexo na consciência do outro. O homem grego
deveria buscar conhecer seus limites, exatamente para evitar exceder as medidas
e incorrer numa hybis, a
desmedida, numa falha, a harmatia.
A harmatia,
desencadeará uma espécie de ate,
a cegueira da razão, que, momentaneamente obscurece o vivente. É quando se
desencadeia a relação agônica com a divindade. Estas reagem à desmedida porque
a mesma aproximou um mortal de um ser imortal e a nemesis – que pode ser traduzida por ciúmes,
mas que também representa uma divindade vingativa, filha de Nix, a noite e irmã das Eríneas, é desencadeada.
Decorrente da Nemesis, as Moiras, que nem mesmo da
vontade dos deuses dependem, ativam o desfecho trágico e o destino se cumpre.
Arete e práxis
Ainda é Aristóteles quem nos diz que “nossa compaixão somente pode
existir quando somos testemunhas de uma desgraça imerecida”. Ou seja, a
compaixão é uma postura nobre, integra o arete do homem grego educado, mas só se
justifica quando em suapraxis o
homem não se torna merecedor da desgraça, da queda, sendo parcela do sentimento
que invade o público e o coro na tragédia apresentada. Goethe, referindo-se à
tragédia, disse que “todo trágico se baseia numa contradição inconciliável,
pois tão logo parece possível uma acomodação, desaparece o trágico”.
Do anthropos ao homus
aner
A autêntica tragédia está ligada a um decurso de acontecimentos de
alto dinamismo. O que sentimos como trágico deve significar a descida de um
mundo de segurança e felicidade ilusória para um abismo de desgraças, na
maioria das vezes irreversível. A queda é tão grande e brutal que somente
heróis poderiam suportá-la. E é ele, o Herói, o sujeito do ato trágico,
consciente de sua condição miserável, que tudo suporta num processo de
transformação de anthropos–
homem comum- em aner– que
é o homem consciente de si mesmo.
Os gregos apreenderam o ekstasis dionisíaco e, neste estado de espírito
manifestar seu enthusiasmos.
O êxtase expressava o “sair de si”, o transpor os limites da condição
humana, ultrapassar o metron – a medida de cada um. Já o entusiasmo
era a penetração do homem pela divindade, o momento em que o deus falava pela
boca de um mortal.
Na Tragédia ambos os processos se aliam na transformação do homem
comum em aner hypocrites,
aquele que finge e representando o Herói, torna-se consciente de si mesmo. E
este transformar, como já o dissemos, permeará o coro como transmissor dos
sentimentos, e os atores responsáveis pelo desenvolvimento temático, assim como
todos os expectadores.
Todo ser humano possui sua medida e os mortais são perfeitamente
capazes de por ela conduzirem todo o seu destino. Apenas alguns desafiam seus
limites e estes são os Heróis- marcados por sua origem- seu guenos. Os Heróis, apesar da
inexorabilidade do destino, rebelam-se contra as forças da moira – o destino, e nesta rebeldia adquirem
um manto de “exemplaridade “perante os homens e os deuses. Fazem-se imortais,
quer por beberem da fonte da mnemosis,
a memória, quando morrem ou por poder viver em seu lugar exclusivo, na Ilha dos
Bem-Aventurados.
O que é próprio de cada herói, marca registrada exclusiva, é o seu ethos – o comportamento, a forma desafiadora
de responder ao sofrimento que lhe é imposto. O ethos heroico lhe indicará o caminho a
seguir, seu mathos, o
caminho necessário a percorrer para akatarsis, a purificação, iniciação
e transformação do anthropos em aner.
Atualidade da Tragédia Grega
Podemos afirmar que a tragédia coloca em cena uma montagem que
visa, no fundo, esclarecer a existência humana e seu destino. No dizer de
Vernant: “À luz da dramaturgia, o homem não parece delineado como uma natureza
estável, uma essência que poderia ser delimitada e definida, mas como um
problema; ele adquire a forma de uma interrogação, de um questionamento.
Criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido,
culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o
universo e incapaz de governar a si mesmo e associando o melhor e o pior, o ser
humano pode ser qualificado de deimós,
nos dois sentidos do termo: maravilhoso e monstruoso”.
Vivemos hoje em um mundo em que os valores herdados da história da
civilização estão colocados em cheque. Os bens são objetos de consumo imediato
numa sociedade excludente e brutal para com a maioria, superficial,
mecanicista, em processo de perda acentuada da intelectualidade em suas elites.
Ao propalado fim das ideologias caminhamos em direção a uma
bifurcação na estrada da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos Heróis
das tragédias: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, inerente
à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo
uma espécie arquetípica do subconsciente), ou caminhar para um outro lado, tão
complexo quanto novo e inseguro, uma trilha que conduza ao Renascer da
humanidade e de seus valores.
Quando deixamos o teatro após uma apresentação de Édipo Tirano,
Antígona ou de Medeia, sentimos latejar em nós as questões essenciais da
existência, porque ainda carregamos os fumos do terror e da compaixão antigos;
questionamos os valores sob os quais as gerações de hoje se formatam e neste
sentido ainda somos ambíguos, trágicos; interrogamo-nos sobre o sentido da
própria vida, comovemo-nos e então percebemos em nosso íntimo o trágico, o
drama e desenvolvemos nossa própria katarsis,
aproximando-nos do aner.
Após mais de vinte e cinco séculos ainda apreciamos o melhor da
arte grega, pois a ambiguidade de nosso mundo e do homo sapiens demens de Morin, fazem com que a tragédia
permaneça atual e cotidiana.
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Fonte: http://proust.net.br/blog/?p=776
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