O atual quadro político brasileiro de crise reflete mesmo a polarização Esquerda x Direita, ou pelo menos até que ponto, de fato, reflete? Insatisfeito com as asneiras ditas por supostos discípulos seus, que deformavam a sua obra, certa feita Marx afirmou: "Tudo o que sei é que não sou marxista." A assertiva foi dirigida, por exemplo, a marxistas franceses que, conforme Engels (companheiro de escrita de Marx e seu amigo de todas as horas), utilizavam a concepção marxiana de história como pretexto para, por preguiça, não estudarem história. Pois bem, cabe refletir sobre a referida indagação. Ter-se-á mesmo noção do que significam Esquerda e Direita no debate da atual crise brasileira? Como disse Shakespeare, "há mais coisa entre o céu e a terra do que pode imaginar a vã filosofia." Diria mais - principalmente se não se deseja fazer papel de "cabeça de vento", e preza-se pelo uso da racionalidade na análise da realidade. Com Brecht, diria: "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual (...). Não aceites o que é de hábito como coisa natural." A devida leitura do texto aí abaixo, da lavra do Prof. Aldo Fornazieri, traz elementos para as perspectivas desse debate. Talvez seja pertinente pensar mais em termos de implosão do sistema político brasileiro, que apanha todos os principais partidos tradicionais. A conferir.
Por Aldo Fornazieri
(Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo)
A gravidade da delação
premiada de Sérgio Machado deveria ter produzido o efeito de uma bomba
termobárica sobre o governo e sobre o sistema político brasileiro. Não teve. Em
qualquer país sério, os dirigentes dos principais postos políticos do país
teriam sido obrigados a se afastar de seus cargos e estariam presos, inclusive
o presidente ilegítimo Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, vários
ministros e as cúpulas dos principais partidos. Não estão. Se a delação tivesse
ocorrido durante o governo Dilma, a mídia teria feito uma enorme
escandalização, mas agora não fez. A oposição teria saído a campo para exigir
explicações, demissões, afastamentos, renúncias. A oposição de agora mal se
pronunciou. Como entender essa situação anômala?
Ocorre
que a vitória do golpe foi também a vitória da hipocrisia e do cinismo. Nos
ambientes cínicos impera a desfaçatez, não há mais mesuras com a moral e os
bons costumes e nem sequer os políticos se importam com as aparências. Nem
mesmo os colunistas e analistas políticos de plantão e a grande mídia em geral:
todos foram tragados pelo cinismo ao ponto da grande mídia brasileira ver-se
desmoralizada junto à mídia europeia e norte-americana.
No
ambiente cínico, as denúncias já não importam. Tanto faz ser considerado
honesto ou corrupto. Os políticos, com Temer à frente, se dão uma qualquer
missão autoatribuída e agem em nome dela ignorando as denúncias que os atingem.
A grande mídia e boa parte da opinião pública, ambas desmoralizadas pelo
monstro que ajudaram a produzir, procuram envernizar a aquilo que não comporta
nenhuma aderência a qualquer produto lustroso. Mas tanto faz. Afinal de contas,
a Dilma foi afastada e tenta-se dar a esse golpe desastroso para a democracia
brasileira a aparência de normalidade.
A
aparente inviabilidade do governo Temer produz todo tipo de ilusão na presente
conjuntura. A primeira ilusão é a ideia da volta de Dilma. Nem mesmo o PT quer
que ela volte. Basta conversar com dirigentes do partido ou mesmo ler as
entrelinhas da reportagem da Folha de S. Paulo do final de semana que traz análises
dos petistas indicando que não acreditam que as delações de Machado possam
ajudar Dilma. As análises estão corretas. Ocorre que Dilma não oferece uma
saída para a crise e para a governabilidade e o PT não a quer de volta. Mesmo
que mais delações firam de morte o governo ilegítimo, o afastamento de Dilma
parece ser um ponto de não-retorno.
Se o
governo Temer se inviabilizar, a tendência é a de que o golpe se aprofunde, com
a superveniência de um presidente escolhido pelo Congresso no início de 2017.
Os golpes não retrocedem. Aprofundam-se. Lembremos que as promessas de eleições
feitas por Castelo Branco em 1964 não se concretizaram. Ademais, se o
impeachment for aprovado em definitivo, tendência mais provável, Temer tentará
virar o jogo com uma reforma ministerial afastando os ministros mais incômodos
visando preservar-se.
A possível inviabilidade de
Temer vem gerando a segunda grande ilusão: a ilusão do pacto. É preciso
perceber que o pacto já foi feito: o pacto conservador das elites através do
afastamento de Dilma. A área econômica do ministério Temer, com Meirelles à
frente, é o rosto visível do pacto. Temer é um instrumento desse pacto. Se ele
se tornar um estorvo, será removido.
Por
outro lado, se o governo Temer é produto de um golpe, como de fato o é, o PT ou
qualquer força democrática, progressista e de esquerda não pode pactuar com
esse governo ou com as forças que apoiaram o golpe. O lugar dos progressistas,
dos democratas e das esquerdas é na oposição ao governo ilegítimo ou qualquer
subproduto que ele produza para continuar. Pactuar com essas forças
representará uma traição aos movimentos sociais e aos progressistas que
protestaram e protestam nas ruas contra o golpe. Será uma traição aos
trabalhadores e aos mais pobres que terão direitos decepados e o desemprego
crescente. O pacto conservador do golpe visa superar a crise com um brutal
corte do delgado colchão de proteção social que se construiu desde a
Constituição de 1988, garantindo os altos ganhos do rentismo e dos bancos. Não
é outro objetivo da proposta de PEC de Meirelles, que limitará os gastos com o
social, mas não o limitará com o pagamento de juros.
Os
pactos nunca formam bons para os trabalhadores e para as forças populares e
progressistas. Sempre representaram a continuidade da dominação das elites
conservadoras. Foram “transições transadas”, na definição de Raimundo Faoro,
para manter as mesmas elites no poder sob a aparência de uma falsa mudança. Os
pactos expressam a velha e ludibriosa fórmula de produzir uma aparência de
mudança para manter tudo como está.
Não
passou despercebida a reação quase protocolar dos partidos de esquerda – PC do
B, PSol e PT – em face das estarrecedoras revelações da delação de Sérgio
Machado. Temer foi citado e os partidos de esquerda não exigiram a sua renúncia
imediata. Sequer foram ao Supremo Tribunal Federal exigir uma investigação
formal de Temer, como fazia a antiga oposição com Dilma. A antiga oposição
pediu que se investigasse até os gastos com cabeleireiro. Na verdade, agora,
trata-se de um silêncio cheio de alaridos reveladores.
No
jogo de acomodações, os partidos citados já encontraram o seu lugar: fazer
oposição ao governo e tentar salvar, ao máximo, postos avançados de poder nas
eleições municipais deste ano. Para alcançar este último objetivo, no cálculo
desses partidos, chegou-se à conclusão de que é mais vantajoso estar em
oposição a Temer do que ter a volta de Dilma. Mal ou bem é uma estratégia. Se
vai dar certo ou não, o tempo dirá. Mas é preciso prestar atenção ao movimento
de aprofundamento do golpe. O preço de sua viabilidade é muito alto para ser
suportado apenas por cálculos eleitorais.
Outro
solene silêncio das esquerdas diz respeito às iniciativas cada vez mais abertas
para por um fim à Lava Jato. Iniciativas que vêm do PMDB, do PSDB, do chamado
centrão e de analistas e comentaristas da grande mídia. Estes últimos começam a
sugerir, de forma enviesada, a tese de que a Lava Jato precisa chegar a
um fim. Estão até mesmo definindo um prazo: dezembro de 2016. Não é um jogo
simples: precisaria a conivência da Procuradoria Geral da República e do STF. É
preciso perceber que o eixo principal da Lava Jato se deslocou de Curitiba para
Brasília, de Sérgio Moro para Rodrigo Janot.
O
caso da investigação de Lula agora está com Sérgio Moro, que tem se mostrado
célere proferindo mais de 100 condenações contra nenhuma do STF. As
cúpulas do PMDB e do PSDB estão em Brasília, com Janot e o STF. Bastará Moro
decidir alguma condenação contra Lula e a pressão para paralisar a Lava Jato
aumentará. O jogo do abafa crescerá. Desta forma, é incompreensível o silencio
das esquerdas ante as manobras e pressões contra a Lava Jato. Esse silêncio,
que é omissão, tende a se tornar conivência. Poderá colocar no mesmo lado o
PMDB, o PSDB, o PT e a rede Globo. Estariam os dirigentes do PT tomados pela
Síndrome de Estocolmo?
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