sexta-feira, 3 de junho de 2016

Do disparate de cada dia à patologia do poder


Para vergonha do bom senso de quem o tem, os disparates brasileiros destes “tempos estranhos” continuam a correr o mundo. A esse respeito, a última notícia divulgada pela mídia estrangeira refere-se à posição de alguns grupelhos que se espalham pelo Brasil afora pregando, entre outras coisas, a queima de livros, dizendo que são “livros viciados” – aí incluídos livros de Paulo Freire. No index medieval, a Inquisição pelo menos fazia algum esforço mental para justificar a queima de livros. Por aqui, a toada é outra. Os grupelhos seguem a linha da turma de Alexandre Frota et caterva – a rigor, não leem sequer dois livros completos por ano e seriam reprovados numa avaliação de conhecimentos gerais de nível elementar, mas, agora, após serem prestigiados pelo senhor Ministro da Educação, se colocam na insolente posição de censores bibliográficos e querem dar lições aos professores do ensino fundamental e médio, cuja lida profissional requer enfrentar ‘uma guerra por dia’ em escolas que não lhes oferecem condições dignas de trabalho. “A burrice, no Brasil, tem um passado glorioso e um futuro promissor”, disse certa feita o economista e diplomata Roberto Campos, talvez, ele, um dos últimos teóricos brasileiros (junto com José Guilherme Merquior) que se poderia levar a sério como formulador de um pensamento de direita no país. Dele, poder-se-ia discordar, mas o encadeamento lógico-argumentativo das suas teses era um convite ao debate. O mesmo podemos dizer de José Guilherme Merquior, com quem, aliás, um intelectual como Carlos Nelson Coutinho manteve interlocução. Pois bem, Campos e Merquior, homens de direita no sentido clássico, se vivos fossem, estariam, no mínimo, intrigados com o protagonismo educacional de figuras que ora estimulam a cultura do estupro, ora são recebidos pelo Ministro da Educação para dizer como crianças, adolescentes e jovens devem ser educados. Involuntária e ironicamente, a frase de Campos predisse o futuro de supostos atores do seu campo político.  Na verdade, a organicidade de um campo conservador no Brasil conforme este se encontra definido no pensamento moderno, e que faz surgir no ocidente a ideia de direita, sempre foi trôpega. E isto bem ressaltou Sérgio Buarque , autor do fundamental  Raízes do Brasil. Conservadores, direita no Brasil? “Que nada”, respondeu ele, “aqui temos atrasados, desinformados. Não sabem o que é isso’. Essa posição de Sérgio Buarque, por vezes, é (re)lembrada por Fernando Henrique Cardoso, ou ao menos quando lhe convém. O juízo emitido por ele não é gratuito: contraditoriamente, ao longo da história brasileira, os segmentos ditos conservadores/de direita não vivem sem as asas do Estado. Isto é, sem benefícios fiscais, subsídios, apoios financeiros estatais de toda natureza, etc.  Uma autêntica contradição, na medida em que a perspectiva de direita defende como princípio básico que o Estado não seja uma espécie de “papai” ou “pai protetor”, mas que o indivíduo resolva as suas dificuldades por conta própria na esfera do mercado – não importando as questões decorrentes da desigualdade social.  De alguma forma, essa incongruência do conservadorismo nacional faz lembrar ‘o caso neoco’, ou seja, o caso dos neonazistas colombianos que viajaram para Alemanha com o propósito apoiar um protesto dos neonazistas alemães contra os imigrantes, mas lá  (pelo perfil deles) foram tidos como imigrantes, sendo então atacados fisicamente pelos neonazistas alemães. Mesmo que se considere que erros cometidos por segmentos ditos de esquerda desgastaram esta, e eles (os segmentos) têm parcela de responsabilidade no atual quadro de crise, a verdade é que a situação que o país vive é a de um sistema político, como um todo, doente, em decomposição. A este respeito, reproduzo aí abaixo um texto do cientista político Carlos Melo, sugestivamente intitulado ‘doença’, a propósito da conjuntura brasileira. Embora a analogia entre sociedade e corpo humano deva ser vista com ponderação, posto que, levada à última instância, reabilita uma perspectiva positivista que nivela ciências humanas e ciências físico-naturais no tocante ao modo de proceder diante do objeto de estudo, há de se ter em conta que dispositivos da sociologia funcionalista são apropriados à microanálise social. Além disso, é imperativo considerar que, na sociedade, a questão não é de 'interação biológica',  mas da disputa entre forças no pesado jogo do poder. Da minha perspectiva, feitas estas ressalvas, a leitura a seguir é pertinente ao momento atual.




Por Carlos Melo
(Cientista político - INSPER) 

A natureza de qualquer sistema vivo consiste em lutar pela própria vida; tanto quanto possível, perpetuar a si mesmo. Doente, o corpo produz anticorpos e combate os males que o abalam; viver é sua razão. A tendência é purgar impurezas, livrar-se do que o corrompe. Mas, há disputa: bactérias, carcinomas e vírus possuem lá suas manhas; reagem, se reorganizam, transmutam-se. O corpo vive de batalhas. Médicos, curandeiros e xamãs são chamados; é impossível vencer a guerra sozinho.
A sociedade é um corpo, seus órgãos são a economia, a segurança, o convívio, a paz da comunidade. A política é como o sangue: circula pela veias, rega os órgãos, oxigena o sistema cerebral, a democracia. O Brasil vive sua guerra particular com a enfermidade. Não se trata de uma guerra civil e nem deve ser; a luta é menos explícita, mais canhestra e intestina. O sangue, repleto de impurezas, precisa purgar o mal. Mas, o sistema não é mais capaz de fazê-lo sozinho.
Médicos, curandeiros e xamãs são, na democracia, as lideranças políticas que o corpo – com maior ou menor sabedoria e qualidade — produz. Buscam em seus receituários os remédios mais eficazes e propõem terapias contra os males, a favor do bem-estar do corpo. A inteligência é seu principal instrumento; o consenso, a cirurgia bem sucedida.
Mas, como dar conta deste desafio quando a doença localiza-se justamente na própria política, o mais elementar componente, o sangue, da liderança?
Difícil dizer. Necessário pensar, colher elementos, juntar fragmentos, reunir informações; recorrer as metáforas — como se faz aqui — para melhor entender o distúrbio que se instalou. Certamente, não é razoável fazer desde já um balanço definitivo do governo interino de Michel Temer; é cedo. Tampouco cabe o julgamento moral a respeito do processo, se, ao final, o propósito é salvar o doente. Na crise aguda, pouco valem vereditos e juízos valor, que, a seu tempo, a história fará.
O fato é que, em nome da purificação, Dilma Rousseff e seu partido foram praticamente extirpados do corpo. Mas, mesmo assim, o mal não cessa: a febre continua e até recrudesce. O corpo sofre de espasmos, síncopes, solavancos que comprometem seu funcionamento geral. Em vista disto, o mais provável é que Dilma e o PT não fossem a origem dos males, mas apenas efeitos – parte putrefata do tecido. Mesmo o PMDB e seus vírus oportunistas aliados não passam de sintomas de necrose maior e mais profunda.
O mal está no sangue: na forma como se processou a política ao longo do desenvolvimento do corpo. As drogas, os hábitos, os vícios afetaram seu funcionamento. Elementos menores: o cargo, a emenda, o curral alienaram as vitaminas que surgiam — poderiam surgir — dos projetos de país, da representação ampla, busca de uma sociedade melhor e justa para todos. Nisto, atrofiou-se o nervo ético, rompendo os ligamentos entre a realidade, a esperança e a utopia.
Mesóclise de tantos verbos mal declinados de nossa tradição patrimonialista, Michel Temer creu que a economia fosse a solução pela qual não necessitar-se-ia atacar o problema central; que tudo o mais — o sangue envenenado da política — pudesse ser obliterado. Não pode.
Interino de permanentes expectativas, formou uma junta médica, sua equipe econômica;  há, sim, remédios amargos, mas a terapia é conhecida e foi mundialmente testada. Mesmo aqui no Brasil já exibiu sua qualidade comprovada. Formalmente, é simples: basta que o corpo acredite na recuperação e se submeta a choques e dietas. A base é a credibilidade dos médicos.
Mas, o problema não está aí, nesse órgão econômico, mas naquilo que o rodeia: o sangue que o rega, a política que o infecta. Os rins – o Congresso Nacional – que teriam a tarefa de purificar esse sangue já não funcionam a contento; não filtram impurezas e estão repletos de cálculos que os debilitam. Incapazes de drenar e renovar o sistema, a democracia, o mau funcionamento dos rins eleva a pressão arterial, anunciando o risco de uma isquemia cerebral.
Pelo menos um desses rins, a Câmara dos Deputados, parece definitivamente comprometido; um tumor em forma de cunha surgiu de suas disfunções e desvirtuou completamente o processo — verdade, desde sempre torto. Hoje, não há comando, não há controle. Ressentido do membro que já perdeu, esse rim  age por reflexos caducos. Incapaz de promover o novo, requer mesmo um transplante urgente que, no entanto, parece impossível.
No outro rim, o Senado, há uma fissura, o hilo – de onde entram em saem os vasos, nervos e cálices – que também se encontra vulnerável. Esse hilo, acreditava-se, seria o único elemento realmente funcional no conjunto disforme do Senado. Mas, num trocadilho infame, dir-se-ia, com nova temeridade, que os calheiros renais estão prestes a ser obstruídos e assim igualmente afastados como as cunhas e as dilmas dos outros órgãos. Parece se tratar apenas de uma questão de tempo.
A situação geral é de alerta: grossos ou delgados, os intestinos estão cheios; delações são inevitáveis, gravações internas demonstram o borbulhar dos gases. Externamente, um jato de lavagem foi introduzido no doente. Ele expele as impurezas é fato, mas, ao mesmo tempo, rasga, machuca, detona a morfologia dos órgãos. Esse jato vai promovendo sua destruição criativa — ou sua criação destrutiva; não se sabe ao certo. Concretamente, mais delações vêm por ai. Ansiosos, os amigos do corpo se agitam. Ninguém quer seu mal, mas seu fim será evitável? A imprensa especula: que fazer?
Incisiva, a equipe econômica busca respostas: corta, emenda, costura; prescreve remédios, anestesias e vitaminas. Faz sua parte. Mas, diante do colapso mais amplo, queda-se, então, impotente – ou parcialmente impotente: a política não é sua área e não se deve esperar que também aí traga lenitivos, laxantes, paliativos. A enfermidade é resultado de longo período de abusos; de uma vida desregrada, fisiologicamente corrompida. A doença, então, resta agora como a lógica do presente. Mais lentamente o corpo reagirá por si; é sua sina. A dor, contudo, é inevitável.

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Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/carlos-melo





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