Aos 84 anos, o físico e Professor Emérito da UNICAMP Rogério Cerqueira Leite é um homem de profunda erudição e intensa atividade intelectual. Pesquisador atuante, é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. O texto aí abaixo é da lavra dele. Mesmo que caibam eventuais considerações a alguns dos seus aspectos, de modo geral, Cerqueira Leite é, digamos, 'cirúrgico' na abordagem, dosando-a com senso de ironia, ao mesmo tempo que coloca em realce a dimensão da consciência histórica, ao referir o papel de Joana d'Arc. Vale a leitura.
Por Rogério Cerqueira Leite
Uma das cenas
mais aterradoras da Guerra dos Cem Anos ocorreu em 1431, quando uma donzela de
19 anos foi colocada em uma pilha de toras de madeira e queimada viva.
Aquela
foi a segunda vez em que esteve presa. O interrogatório foi longo, quase um
ano, e a principal queixa de heresia foi a de se vestir como homem. Ela era
guerreira, usava em batalhas armadura de metal, em vez de saia e babados.
Nos
quartéis, seria atacada sexualmente se usasse decotes, pois os relatos da época
dizem que esse era o comportamento usual de soldados. Demorou quase cinco
séculos para que a história reconhecesse Joana d'Arc como sua maior heroína. À
época não havia internet.
O
pecado da presidente afastada Dilma Rousseff foi aprovar umas pedaladas, ou
seja, deixar de pagar os bancos oficiais, o que governos anteriores faziam
regularmente, inclusive o de Fernando Henrique Cardoso.
E
agora o governo dos inquisidores anuncia uma superpedalada no BNDES, R$ 100
bilhões. Só há uma diferença: ao invés de atrasar o repasse, exige pagamentos
adiantados de parte da dívida do banco com o Tesouro. Imagine a situação:
alguém compra uma geladeira, por exemplo, e o vendedor exige pagamento
adiantado de mensalidades.
É
bom que se diga que sangrar o BNDES, ferramenta essencial para a retomada do
desenvolvimento econômico e social do país, é a medida mais contraditória que
se poderia imaginar, principalmente no estado recessivo no qual o Brasil se
encontra, o que até economistas são capazes de perceber.
Pois
é, Dilma não usava roupas masculinas, mas atrasou pagamentos aos bancos do
próprio governo. A desculpa para jogar Dilma na fogueira é tão estapafúrdia
quanto aquela heresia usada contra Joana d'Arc, e tão medieval quanto.
A
donzela de Orléans pegou em armas para livrar seu país do jugo dos ingleses e
do entreguismo dos dirigentes da província de Borgonha, aliados na luta contra
o legítimo herdeiro do trono da França. Foi um episódio nacionalista pela
recuperação da soberania da conflagrada nação.
Vai
ser difícil apagar a história também aqui no Brasil. Já está escrito o que foi
feito pela educação: 23 novas universidades federais, 173 novos campi
universitários, 422 novas escolas técnicas, o ProUni, o Fies, a capacitação de
200 mil professores da educação básica, entre outras ações.
O
rompimento dos compromissos com a educação e a saúde, a desvinculação de
percentuais do orçamento, propostas do governo interino, não eliminarão o que
foi feito. O Bolsa Família é o mais bem-sucedido programa de combate à pobreza
e ao analfabetismo do mundo, e é assim reconhecido universalmente.
O
aumento do salário mínimo e a quase eliminação da pobreza, com 30 milhões
escapando da miséria, são resultados que não serão esquecidos pela posteridade,
apesar da eficiente propaganda da Globo.
Podem
caçar o Lula, podem caçar a Dilma, podem desbaratar o PT, mas o futuro lhes
fará justiça. Não será necessário esperar 500 anos. O futuro não mais
pertencerá às oligarquias. O futuro pertence ao homem do povo, ao cidadão
comum.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 17/06/2016.
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