Da verve de Ana Macarini, o texto aí baixo bem faz lembrar dois livros centrais de José Saramago: Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez. De fato, como ele escreveu neste último, "há que ter o máximo de cuidado com aquilo que se julga saber, porque por trás se encontra escondida uma cadeia interminável de incógnitas." Vale a leitura do texto Macarini. Bem apropriado para os tempos de agora. É impossível evoluir com os olhos vendados.
Performace internacional de executivos moldados em argila com olhos vendados |
Por Ana Macarini
Não há nenhuma facilidade para quem se atreve
a questionar o que pensa; o que veste; o que fala; o que omite; o que consome;
o que oferece. Refletir é, por si só, um ato de coragem. Ir vivendo e tocando a
vida, deixando a correnteza fazer suas escolhas aleatórias é demasiado
tentador. Sobretudo porque, o simples ato de pensar tira de nós a anestesia tão
bem-vinda nesse mundo turbulento. Pensar é para quem tem coragem de cutucar com
vara curta e frágil a sedutora comodidade de não se comprometer.
Compromisso é o nome que se dá ao ato de
assumir a responsabilidade pelas escolhas feitas. E, é bom que tenhamos sempre
em mente que, mesmo quando não escolhemos (ou, principalmente quando não
escolhemos), estamos firmando uma posição. Afinal, o que pode ser mais
arriscado que permitir a alguém ou a qualquer circunstância que faça escolhas
em nosso nome?
Verdade seja dita, é muito mais fácil e
seguro pegar emprestadas ideologias e discursos alheios; passar por sobre eles
uma boa maquiagem; remodelar a formatação e sair por aí defendendo ideias
prontas que parecem ter algum sentido ou vir ao encontro daquilo que nos parece
familiar. Ouvir da boca do outro, palavras que parecem fazer coro com nossas
necessidades, fornecem uma ilusão morna e acolhedora que nos faz relaxar por
alguns instantes; que nos tira do sobressalto da urgência de tomar uma atitude,
qualquer atitude.
Atitude é aquela ação mais agressiva e bem
menos protegida que exige de nós que mostremos afinal a nossa cara; que
coloquemos em cima da mesa apenas as cartas que temos, mesmo que sejam cartas
repetidas, sem valor para virar o jogo. Atitude requer de nós a hombridade de
só transformar em verbo o que formos capazes de honrar em ações. Atitude é,
também, admitir que não se sabe tudo; que se tem mais perguntas que respostas;
que estamos tão perplexos diante do cenário que se apresenta, que será preciso
algum tempo, até que nos tornemos capazes de apresentar alguma alternativa,
proposta ou sugestão. Ter atitude exige de nós algo muito mais profundo e
orgânico do que simplesmente criticar.
O mundo é esse lugar aqui, não é lá fora, nem
lá longe. O mundo é antes desenhado dentro de cada um de nós. Parte das nossas
mais recolhidas esperanças e desejos é a sua manifestação. O mundo, é esse chão
que você pisa. E que muitas vezes, nem é o chão que se projeta sob os seus pés;
é o corpo, a alma e a vida de um semelhante; que, de tão esquecido e invisível,
misturou-se com a poeira que você carrega debaixo do seu sapato. O mundo é esse
ar que nos envolve e que nos falta, na hora do medo; na hora da dor e na hora
do prazer. O mundo é a minha, a sua, a nossa cara de paisagem diante das
inúmeras contradições que nos assolam a cada instante.
O mundo é a montanha que virou buraco e a
cidade que virou lama em Minas Gerais. O mundo é a incongruência de ter de
admitir que sem a indústria que explora e destrói, a cidade destruída não
consegue se reerguer. Porque a mesma mão que alimenta e sustenta, bate com
força na cara daqueles que não têm a moeda do poder. O mundo é essa maravilhosa
discrepância graças à qual ainda há milhares de nós que não se conformam, não
ficam lambendo os próprios umbigos e arregaçam as mangas para agir segundo um
pensamento tão inusitado quanto lógico: assumir que errar é coisa de todo dia;
acertar é só para quem se arrisca e o risco só vale à pena se não for apenas
uma manobra de vaidade e exposição.
É a nossa insignificante existência e
pequenez diante do universo que há de nos colocar de joelhos diante da nossa
imensa falta de integridade; e há de nos colocar de pé, diante da audaciosa
decisão de romper o ciclo. É a nossa consciência há tanto adormecida que há de
nos despertar e de nos fazer gritar, mais com paixão do que com barulho um
sonoro “BASTA”! Basta de fazer de conta que não somos sustentados por um modelo
ultrapassado de consumo predatório. Basta de fechar os olhos às “pequenas
irregularidades” que nos favorecem porque “não é isso que vai mudar o mundo”.
Basta de clamar pelo fim da impunidade e parar o carro na fila dupla, torcendo
para não ser pego pelo agente de trânsito. Basta de aceitar como fatalidade as
consequências de modelos administrativos historicamente corruptos. Basta de
assumir a simples e patética postura de se embrulhar numa bandeira e achar que
isso vai resolver alguma coisa. O mundo é como é e está como está porque nós
estamos muito mal-acostumados a abrir os olhos apenas para aquilo que nos
interessa, nos dá notoriedade ou afeta diretamente. O fato é que corremos o
risco de uma hora dessas abrirmos os olhos e não termos mais absolutamente nada
para ver.
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Fonte: http://www.contioutra.com/. Título original: 'É impossível evoluir com os olhos vendados'.
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