quinta-feira, 30 de junho de 2016

A diferença de tempo que o tempo faz


Disse Heráclito que ninguém se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio. E se assim o é, uma oportunidade perdida poderá estar perdida para todo o sempre. Dizem, contudo, que o tempo faz concessões: à amizade sincera, ao gosto pela existência, ao amor... Não sabemos, não sabemos, talvez nunca efetivamente saibamos. Poulantzas, já escrevi, foi tido como o pensador do 'tempo fora dos eixos'. As idades cronológicas e mentais não coincidem – está convencionado. Portanto, idades (cronológicas) diferentes podem ser iguais mentalmente, mas é bem possível que isso deva ser remetido ao caso das exceções. Contudo, se elas existem, é porque o fato existe. A diferença que o tempo faz pode se localizar numa foto para o primeiro passaporte.  Para vaguear pela América Latina. Para cruzar o Atlântico. Para ir a uma universidade estadunidense. Para deambular pelo francês Quartier Latin, em torno da Sorbonne. Para pousar no Oriente Médio, ao abrigo do Chipre Grego. Para as dúvidas: parece que ‘o tempo passa numa velocidade inversamente proporcional a conhecer’.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Une belle émotion: passos do surrealismo, o novo romantismo

Na senda do que Breton proclamou sobre o surrealismo como o último vislumbre da esquina romântica do mundo, andam, os surrealistas, convictos de que a cauda do cometa ainda brilha. No seu modo contido, entendem que a perspectiva surrealista-romântica é um jeito de estar na vida. La satisfaction et l'amour de la vie ne sont pas publiques, mais un plaisir personel. Breton, Breton. Leont Eitel, Leont Etiel. Prossegue o surrealismo-romantismo. É o que diz o texto aí abaixo. 

Os cariocas Rafael Sperling (esq.) e Augusto Guimaraens Cavalcanti em livraria no Rio
 Os cariocas Rafael Sperling (esq.) e Augusto Guimaraens Cavalcanti em
 livraria no Rio
 Adicionar (Foto: Luciana Whitaker/Folhapress) 


Por Ciro Pessoa 

Desde que o poeta e escritor francês André Breton (1896-1966) escreveu o Primeiro Manifesto Surrealista, há quase noventa anos, muitos relógios derretidos passaram pelo microgargalo da ampulheta de areia venusiana.
O próprio significado de surrealismo, que, a princípio, era "automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir, quer verbalmente, que por escrito, quer de outra maneira qualquer, o funcionamento real do pensamento (...)" foi ganhando conotações diferentes e hoje em dia designa algo diferente, absurdo, exótico ou pitoresco.


No Brasil, até os anos 1960, o surrealismo jamais chegou a se configurar como um movimento, seja na literatura ou nas artes em geral. "Antes disto, o que tivemos, foram casos isolados, como a poesia de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Manoel de Barros e, principalmente, a prosa de Campos de Carvalho", diz o escritor, poeta e ensaísta Claudio Willer.
De lá para cá, contudo, autores como Roberto Piva, Sergio Lima, Afonso Henriques Neto e Willer começaram a formar a primeira teia de escritores surrealistas do país.
E é nela que se enredam três novíssimos autores brasileiros, de maneiras distintas, dando continuidade ao sopro lançado por Breton.
São eles os cariocas Rafael Sperling ("Festa na Usina Nuclear", Oito e Meio, 2011), Augusto Guimaraens Cavalcanti ("Fui à Bulgária Procurar por Campos de Carvalho", 7Letras, 2012) e o poeta piauiense Demetrios Galvão ("Insólito", Corsário, 2011).


Em comum, os três têm a faixa de idade (entre 28 e 33 anos), a aversão pelo hiper-realismo sociológico que domina as artes brasileiras, a intenção de criar uma linguagem solta com vista para o inusitado, livros publicados de dois anos para cá e um entendimento dos preceitos surrealistas.
"Acho que o que escrevo é surreal mais no sentido popular ou coloquial da palavra --que tem mais a ver com o nonsense, o grotesco e o absurdo--, do que por se relacionar diretamente com os surrealistas franceses do início do século 20", responde Rafael Sperling àqueles que querem classificá-lo como um autor surrealista "fundamentalista".
Para Augusto Guimaraens Cavalcanti, estamos numa época propícia para o surrealismo, "não porque o mundo tenha virado surrealista --ele sempre o foi--; no entanto, atualmente buscamos novos modelos de apreensão da realidade".


Autor de um romance baseado na novela "O Púcaro Búlgaro" do escritor uberabense Campos de Carvalho --"o mais insólito e contestador dos escritores brasileiros"--, Cavalcanti baseia-se em dois métodos surrealistas para deflagrar sua prosa iconoclasta e viajante: a colagem e "a busca de um estranhamento no cotidiano mais familiar".

O poeta Demetrios Galvão, começou a se embrenhar na estética surrealista quando um amigo lhe deu o telefone de Roberto Piva numa feira literária em Fortaleza, em 2002.
"Comecei a ligar para ele aos domingos e a conversar sobre poesia, vivências, autores, leituras etc. Esse contato me esclareceu muita coisa e me ajudou a compreender melhor o surrealismo", revela Galvão.
Nascido, criado e morando em Teresina ("é uma cidade árida e sufocante, é preciso ser tático para se dar a volta nela"), Galvão vê na poesia surrealista uma tecnologia que "estica o mundo e fabrica outras possibilidades para experiência sensorial e social". 

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/05/1272961-jovens-autores-se-enredam-por-um-novo-surrealismo.shtml






terça-feira, 28 de junho de 2016

Viajante do tempo


"Yes, it’s mine. The Diary of a traveler, a  lost and secret  Diary of a hypothetical traveler of roads and mountains. It was a long time ago, when I became disappointed on the human misunderstanding and violence of words. My place is nowhere, I belong to everywhere and nowhere. I am around the world. As ‘a man from Glasbow, as Maugham has said, I have travelling many years all over the world. A lone tree that disappears, but it relives again. A tree among trees and sky. A time traveler. Only the traveler time to see what many people fail to see and understand."
(Leont Etiel) 

domingo, 26 de junho de 2016

Ironias da História: a 'questão inglesa' e as mentes acadêmicas colonizadas

Ironias da História. A Inglaterra fincou colônias nos quatro cantos do mundo, recorrendo inclusive à pirataria, e agora a maioria da sua população reclama da presença de imigrantes. Daí, em plebiscito, aprovou a saída do país da União Europeia. Por cá, as análises a respeito do fato são risíveis. Por quê? Quais ilações podem ser retiradas do episódio em relação ao Brasil e à América Latina em geral? Respostas sintéticas (mas consistentes)  no vídeo aí abaixo, do economista Nildo Ouriques. 


Os "dilemas" da pesquisa educacional e os novos condicionamentos do processo de ensino-aprendizagem

O debate educacional brasileiro tem tropeçado em seus limites e em suas próprias incongruências. Poderíamos desfiar um rosário de vicissitudes a esse respeito. Por exemplo, chega a ser um nonsense o ato de meramente repisar formulações dos anos 1960/1970 como se a conjuntura desses idos fosse a de hoje. De outra parte, há os "especialistas" em citar traduções de obras de autores estrangeiros - sem a menor preocupação em buscar informações sobre a qualidade/confiabilidade dos textos  traduzidos. Em qualquer comunidade de pesquisadores que se preze, essa é uma postura reprovável a quem pretende sustentar a condição de investigador científico. Nesse sentido, no campo da investigação sobre políticas educativas, é, digamos, bastante "peculiar" a forma como tem ocorrido a apropriação da policy cycle approach, do inglês Stephen Ball. É o que temos. Resta uma aposta nas novas gerações a se encaminharem pela pesquisa educacional - desde a graduação à pós stricto sensu. Seja como for, vamos passando ao largo da compreensão dos novos  fenômenos que, requerendo acurada atenção empírica e análise, estão a desafiar a pesquisa e a condicionar o ensino e a aprendizagem. Tratei disso num pequeno texto que está aqui: http://www.telesurtv.net/english/opinion/Globalizations-New-Ideological-Conquest-of-Education-20160622-0032.html

sábado, 25 de junho de 2016

Por trás do não dito


"Nunca a mesma água, sempre o mesmo rio. Nunca as mesmas flores, sempre a primavera" (Confúcio). Ou como sentimento e interação humana fazem a vida. Com a consciência da finitude, e por causa dela. No sound of silence. 




quarta-feira, 22 de junho de 2016

Silêncio romântico: entre o vazio e o ausente

Ou a metafísica do surrealismo de Giorigio de Chirico.


giorgio de chirico surrealismo pintura
L'enigma dell'ora
Por Rejane Borges 

O pintor greco-italiano nasceu em Vólos, Grécia, a 10 de Julho de 1888. Quando jovem estudou Artes em Atenas e Florença. Depois desse período mudou-se para a Alemanha, onde estudou filosofia e, no ano de 1917, fundou um movimento artístico chamado "Pintura Metafísica" com o pintor Carlos Carrà. Profundamente entusiasmado por tal tema, Chirico pinta sua primeira e famosa série, 'Praças de cidades metafísicas'' - "Melancolia Outonal " e "O Enigma do Oráculo".
A sua particular forma de ver e entender o mundo foi fortemente influenciada por filósofos como Nietzsche e Arthur Schopenhauer, os quais impactaram diretamente sua arte metafísica, como se seus quadros fossem a expressão plástica dessas filosofias. Giorgio de Chirico foi tão enigmático quanto suas primeiras obras. Queria decifrar a essência do Homem, do Universo, as relações, os elementos. Seus quadros tentam dar significado ao abstrato e aos objetos dispostos ao silêncio e ao vazio, retirados de seus comuns cenários para relacionarem-se entre si no mundo absurdo do pintor. O estilo metafórico de Nietzsche foi absorvido por Chirico e, conseqüentemente, desafogado em suas obras, as quais parecem translações de seu espírito descomprometido com a realidade, quase livres associações.

giorgio de chirico surrealismo pintura
La nostalgia dell'infinito

Para além da filosofia, Chirico também foi muito inspirado pela poesia de Baudelaire, Rimbaud, Hugo, Apollinaire, Max Jacob, entre outros. Era um romântico, acima de tudo. Suas visões líricas eram tomadas por traços improváveis e anti-realistas, cheios, porém, de simbolismos. Todo este onirismo de seu primeiro período artístico abriu frestas à estética surrealista. Em 1925, participou de sua primeira exposição artística.

Características de sua pintura são os padrões arquitetônicos, elementos simbólicos, manequins, grandes espaços entre um elemento e outro, ou a exploração do vazio. Sua estrutura artística foi inovadora para a época e, como tinha uma linguagem própria, obrigava o observador a buscar informações para compreendê-la. Por isso ele tratou de escrever algumas notas e ensaios sobre sua produção metafísica.
Com forte inclinação ao academicismo, cada vez mais deixou de lado seu primeiro período artístico, dedicando-se com menos intensidade a uma pintura mais tradicional. Foi admirado e respeitado, experimentando êxito com sua arte, e influenciou o surrealismo e o dadaísmo.
De Chirico transportou à tela uma certa inquietude existencial que o marcou pessoalmente. Não aquela perturbação que nos míngua a sanidade, mas sim a perturbação que nos eleva o espírito criativo e curioso a ponto de encontrarmos outra realidade e nela vivermos. O pintor morreu em Roma, a 20 de novembro de 1978.

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Fonte: http://obviousmag.org/

segunda-feira, 20 de junho de 2016

As ilusões da conjuntura e o silêncio das esquerdas

O atual quadro político brasileiro de crise reflete mesmo a polarização Esquerda x Direita, ou pelo menos até que ponto, de fato, reflete? Insatisfeito com as asneiras ditas por supostos discípulos seus, que deformavam a sua obra, certa feita Marx afirmou: "Tudo o que sei é que não sou marxista." A assertiva foi dirigida, por exemplo, a marxistas franceses que, conforme Engels (companheiro de escrita de Marx e seu amigo de todas as horas), utilizavam a concepção marxiana de história como pretexto para, por preguiça, não estudarem história. Pois bem, cabe refletir sobre a referida indagação. Ter-se-á mesmo noção do que significam Esquerda e Direita no debate da atual crise brasileira? Como disse Shakespeare, "há mais coisa entre o céu e a terra do que pode imaginar a vã filosofia." Diria mais - principalmente se não se deseja fazer papel de "cabeça de vento", e preza-se pelo uso da racionalidade na análise da realidade. Com Brecht, diria: "Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual (...). Não aceites o que é de hábito como coisa natural." A devida leitura do texto aí abaixo, da lavra do Prof. Aldo Fornazieri, traz elementos para as perspectivas desse debate. Talvez seja pertinente pensar mais em termos de implosão do sistema político brasileiro, que apanha todos os principais partidos tradicionais. A conferir. 




Por Aldo Fornazieri 
(Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo)

A gravidade da delação premiada de Sérgio Machado deveria ter produzido o efeito de uma bomba termobárica sobre o governo e sobre o sistema político brasileiro. Não teve. Em qualquer país sério, os dirigentes dos principais postos políticos do país teriam sido obrigados a se afastar de seus cargos e estariam presos, inclusive o presidente ilegítimo Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, vários ministros e as cúpulas dos principais partidos. Não estão. Se a delação tivesse ocorrido durante o governo Dilma, a mídia teria feito uma enorme escandalização, mas agora não fez. A oposição teria saído a campo para exigir explicações, demissões, afastamentos, renúncias. A oposição de agora mal se pronunciou. Como entender essa situação anômala?
Ocorre que a vitória do golpe foi também a vitória da hipocrisia e do cinismo. Nos ambientes cínicos impera a desfaçatez, não há mais mesuras com a moral e os bons costumes e nem sequer os políticos se importam com as aparências. Nem mesmo os colunistas e analistas políticos de plantão e a grande mídia em geral: todos foram tragados pelo cinismo ao ponto da grande mídia brasileira ver-se desmoralizada junto à mídia europeia e norte-americana.
No ambiente cínico, as denúncias já não importam. Tanto faz ser considerado honesto ou corrupto. Os políticos, com Temer à frente, se dão uma qualquer missão autoatribuída e agem em nome dela ignorando as denúncias que os atingem. A grande mídia e boa parte da opinião pública, ambas desmoralizadas pelo monstro que ajudaram a produzir, procuram envernizar a aquilo que não comporta nenhuma aderência a qualquer produto lustroso. Mas tanto faz. Afinal de contas, a Dilma foi afastada e tenta-se dar a esse golpe desastroso para a democracia brasileira a aparência de normalidade.
A aparente inviabilidade do governo Temer produz todo tipo de ilusão na presente conjuntura. A primeira ilusão é a ideia da volta de Dilma. Nem mesmo o PT quer que ela volte. Basta conversar com dirigentes do partido ou mesmo ler as entrelinhas da reportagem da Folha de S. Paulo do final de semana que traz análises dos petistas indicando que não acreditam que as delações de Machado possam ajudar Dilma. As análises estão corretas. Ocorre que Dilma não oferece uma saída para a crise e para a governabilidade e o PT não a quer de volta. Mesmo que mais delações firam de morte o governo ilegítimo, o afastamento de Dilma parece ser um ponto de não-retorno.
Se o governo Temer se inviabilizar, a tendência é a de que o golpe se aprofunde, com a superveniência de um presidente escolhido pelo Congresso no início de 2017. Os golpes não retrocedem. Aprofundam-se. Lembremos que as promessas de eleições feitas por Castelo Branco em 1964 não se concretizaram. Ademais, se o impeachment for aprovado em definitivo, tendência mais provável, Temer tentará virar o jogo com uma reforma ministerial afastando os ministros mais incômodos visando preservar-se.
A possível inviabilidade de Temer vem gerando a segunda grande ilusão: a ilusão do pacto. É preciso perceber que o pacto já foi feito: o pacto conservador das elites através do afastamento de Dilma. A área econômica do ministério Temer, com Meirelles à frente, é o rosto visível do pacto. Temer é um instrumento desse pacto. Se ele se tornar um estorvo, será removido.
Por outro lado, se o governo Temer é produto de um golpe, como de fato o é, o PT ou qualquer força democrática, progressista e de esquerda não pode pactuar com esse governo ou com as forças que apoiaram o golpe. O lugar dos progressistas, dos democratas e das esquerdas é na oposição ao governo ilegítimo ou qualquer subproduto que ele produza para continuar. Pactuar com essas forças representará uma traição aos movimentos sociais e aos progressistas que protestaram e protestam nas ruas contra o golpe. Será uma traição aos trabalhadores e aos mais pobres que terão direitos decepados e o desemprego crescente. O pacto conservador do golpe visa superar a crise com um brutal corte do delgado colchão de proteção social que se construiu desde a Constituição de 1988, garantindo os altos ganhos do rentismo e dos bancos. Não é outro objetivo da proposta de PEC de Meirelles, que limitará os gastos com o social, mas não o limitará com o pagamento de juros.
Os pactos nunca formam bons para os trabalhadores e para as forças populares e progressistas. Sempre representaram a continuidade da dominação das elites conservadoras. Foram “transições transadas”, na definição de Raimundo Faoro, para manter as mesmas elites no poder sob a aparência de uma falsa mudança. Os pactos expressam a velha e ludibriosa fórmula de produzir uma aparência de mudança para manter tudo como está.
Não passou despercebida a reação quase protocolar dos partidos de esquerda – PC do B, PSol e PT – em face das estarrecedoras revelações da delação de Sérgio Machado. Temer foi citado e os partidos de esquerda não exigiram a sua renúncia imediata. Sequer foram ao Supremo Tribunal Federal exigir uma investigação formal de Temer, como fazia a antiga oposição com Dilma. A antiga oposição pediu que se investigasse até os gastos com cabeleireiro. Na verdade, agora, trata-se de um silêncio cheio de alaridos reveladores.
No jogo de acomodações, os partidos citados já encontraram o seu lugar: fazer oposição ao governo e tentar salvar, ao máximo, postos avançados de poder nas eleições municipais deste ano. Para alcançar este último objetivo, no cálculo desses partidos, chegou-se à conclusão de que é mais vantajoso estar em oposição a Temer do que ter a volta de Dilma. Mal ou bem é uma estratégia. Se vai dar certo ou não, o tempo dirá. Mas é preciso prestar atenção ao movimento de aprofundamento do golpe. O preço de sua viabilidade é muito alto para ser suportado apenas por cálculos eleitorais.
Outro solene silêncio das esquerdas diz respeito às iniciativas cada vez mais abertas para por um fim à Lava Jato. Iniciativas que vêm do PMDB, do PSDB, do chamado centrão e de analistas e comentaristas da grande mídia. Estes últimos começam a sugerir, de forma enviesada,  a tese de que a Lava Jato precisa chegar a um fim. Estão até mesmo definindo um prazo: dezembro de 2016. Não é um jogo simples: precisaria a conivência da Procuradoria Geral da República e do STF. É preciso perceber que o eixo principal da Lava Jato se deslocou de Curitiba para Brasília, de Sérgio Moro para Rodrigo Janot.
O caso da investigação de Lula agora está com Sérgio Moro, que tem se mostrado célere proferindo mais de 100 condenações  contra nenhuma do STF. As cúpulas do PMDB e do PSDB estão em Brasília, com Janot e o STF. Bastará Moro decidir alguma condenação contra Lula e a pressão para paralisar a Lava Jato aumentará. O jogo do abafa crescerá. Desta forma, é incompreensível o silencio das esquerdas ante as manobras e pressões contra a Lava Jato. Esse silêncio, que é omissão, tende a se tornar conivência. Poderá colocar no mesmo lado o PMDB, o PSDB, o PT e a rede Globo. Estariam os dirigentes do PT tomados pela Síndrome de Estocolmo?

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Texto socializado pelo autor 


sábado, 18 de junho de 2016

Quando 'o sol se levanta': manhãs em Cabo Branco


Nas caminhadas matinais pela orla do Cabo Branco, surge a poesia escrita de forma alternativa no que de cimento ainda não foi levado pelo mar. João Pessoa e as suas curvas oceânicas. O beijo do Atlântico ao nascer do dia. Hemingway presente: 'o sol também se levanta'. Amar o mar, e além do mar; ao mar, e além do mar, a saudade. Poeta anônimo; imagina-se então que aprecie a 'tertúlia' de Neruda com o carteiro: "a poesia não é de quem a faz, é de quem dela precisa." Ou tenha o gosto de tantos outros, como o Pessoa, preferindo o batismo dos heterônimos. Estará assim com Leont Etiel. O poeta anônimo que escreveu no que ainda resta da zanga do mar no Cabo Branco: "Xau mar/Amanhã volto/Para te buscar". Talvez para procurar inspiração ao baile do batel da vida. O mar bramindo, a busca da luz sem par. Olhar o mar, sob as ondas sonoras da voz de Dulce Pontes. 




sexta-feira, 17 de junho de 2016

A donzela de Orléans e as pedaladas

Aos 84 anos, o físico e Professor Emérito da UNICAMP Rogério Cerqueira Leite é um homem de profunda erudição e intensa atividade intelectual. Pesquisador atuante, é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. O texto aí abaixo é da lavra dele. Mesmo que caibam eventuais considerações a alguns dos seus aspectos, de modo geral, Cerqueira Leite é, digamos, 'cirúrgico' na abordagem, dosando-a com senso de ironia, ao mesmo tempo que coloca em realce a dimensão da consciência histórica, ao referir o papel de Joana d'Arc. Vale a leitura. 




Por Rogério Cerqueira Leite 

Uma das cenas mais aterradoras da Guerra dos Cem Anos ocorreu em 1431, quando uma donzela de 19 anos foi colocada em uma pilha de toras de madeira e queimada viva.
Aquela foi a segunda vez em que esteve presa. O interrogatório foi longo, quase um ano, e a principal queixa de heresia foi a de se vestir como homem. Ela era guerreira, usava em batalhas armadura de metal, em vez de saia e babados.
Nos quartéis, seria atacada sexualmente se usasse decotes, pois os relatos da época dizem que esse era o comportamento usual de soldados. Demorou quase cinco séculos para que a história reconhecesse Joana d'Arc como sua maior heroína. À época não havia internet.
O pecado da presidente afastada Dilma Rousseff foi aprovar umas pedaladas, ou seja, deixar de pagar os bancos oficiais, o que governos anteriores faziam regularmente, inclusive o de Fernando Henrique Cardoso.
E agora o governo dos inquisidores anuncia uma superpedalada no BNDES, R$ 100 bilhões. Só há uma diferença: ao invés de atrasar o repasse, exige pagamentos adiantados de parte da dívida do banco com o Tesouro. Imagine a situação: alguém compra uma geladeira, por exemplo, e o vendedor exige pagamento adiantado de mensalidades.
É bom que se diga que sangrar o BNDES, ferramenta essencial para a retomada do desenvolvimento econômico e social do país, é a medida mais contraditória que se poderia imaginar, principalmente no estado recessivo no qual o Brasil se encontra, o que até economistas são capazes de perceber.
Pois é, Dilma não usava roupas masculinas, mas atrasou pagamentos aos bancos do próprio governo. A desculpa para jogar Dilma na fogueira é tão estapafúrdia quanto aquela heresia usada contra Joana d'Arc, e tão medieval quanto.
A donzela de Orléans pegou em armas para livrar seu país do jugo dos ingleses e do entreguismo dos dirigentes da província de Borgonha, aliados na luta contra o legítimo herdeiro do trono da França. Foi um episódio nacionalista pela recuperação da soberania da conflagrada nação.
Vai ser difícil apagar a história também aqui no Brasil. Já está escrito o que foi feito pela educação: 23 novas universidades federais, 173 novos campi universitários, 422 novas escolas técnicas, o ProUni, o Fies, a capacitação de 200 mil professores da educação básica, entre outras ações.
O rompimento dos compromissos com a educação e a saúde, a desvinculação de percentuais do orçamento, propostas do governo interino, não eliminarão o que foi feito. O Bolsa Família é o mais bem-sucedido programa de combate à pobreza e ao analfabetismo do mundo, e é assim reconhecido universalmente.
O aumento do salário mínimo e a quase eliminação da pobreza, com 30 milhões escapando da miséria, são resultados que não serão esquecidos pela posteridade, apesar da eficiente propaganda da Globo.
Podem caçar o Lula, podem caçar a Dilma, podem desbaratar o PT, mas o futuro lhes fará justiça. Não será necessário esperar 500 anos. O futuro não mais pertencerá às oligarquias. O futuro pertence ao homem do povo, ao cidadão comum.

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 17/06/2016. 


quinta-feira, 16 de junho de 2016

'Sindicato de Ladrões'


Todas as vezes que vejo determinadas figuras falando em nome de sindicatos e, de um modo geral, de movimentos sociais, lembro do filme On the Waterfront e de um pequeno texto que escrevi, há doze anos,  com o amigo Carlos Machado (FURG/RS). Entre as referidas figuras, está, por exemplo (dentre outros), o sindicalista Paulo Pereira da Silva (da Força Sindical). O filme, no Brasil, ganhou a sugestiva tradução de 'Sindicato de Ladrões', e mostra como uma 'oligarquia', em função de interesses pessoais, usa e abusa da estrutura sindical, promovendo gangsterismo e causando estrago no que deveria ser uma boa causa. O texto vem-me à mente exatamente por tratar desse tema do ponto de vista da análise social, a partir das formulações de Robert Michel sobre a sociologia dos partidos políticos, com ele pondo em evidência o que chamou de 'lei de ferro da oligarquia'. De resto, longe de querermos ser profetas, mas já ali, quando da publicação do texto, em 2004, eu e Machado colocávamos em realce (en passant) a natureza de alguns dos equívocos que viriam a impactar o petismo. Está disponível aqui:  http://www.rebelion.org/hemeroteca/izquierda/040224ms.htm

quarta-feira, 15 de junho de 2016

'O céu estrelado': amor e felicidade em Kant


Immaneul Kant (1724-1804) desperta os mais diversos pontos de vista. Seja como for, há teses dele que, sobretudo na área das ciências humanas e no Brasil de hoje, merecem reflexão. Uma delas: "Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas - somente a partir da sua união pode surgir cognição." Mas ele também enveredou pelas formulações em torno do amor. É o que encontramos em Metafísica dos Costumes, Introdução à Doutrina da Virtude, inciso XII, parte C: Do Amor dos Seres Humanos. Aí podemos ler o seguinte: 

"O amor é uma matéria do sentir, não do querer e não posso amar porque o quero e, ainda menos, porque o devo (não posso ser constrangido a amar); por conseguinte, um dever de amar é um absurdo. Mas a benevolência (amor benevolentiae), como conduta, pode estar sujeita a uma lei do dever. Entretanto, a benevolência altruísta para com os seres humanos é com frequência (embora com muita impropriedade) também chamada de amor.As pessoas chegam mesmo a falar de amor que é também um dever para nós quando não se trata da felicidade do outro, mas da plena e livre capitulação de todos os nossos fins a favor dos fins de um outro ser (mesmo um ser sobrenatural). 
Mas todo dever é uma coação, um constrangimento, mesmo se este é para ser auto-constrangimento de acordo com a lei. 
O que é feito a partir do constrangimento, contudo, não é feito a partir do amor."

A hermenêutica é um tanto 'complexa', mas, ao que parece, o fio que perpassa o texto é o de que o amor conecta-se à ideia de liberdade. É provável que isso tenha relação com outra tese de Kant, onde a noção de valor não se associa a uma doutrina moral "que nos ensina como sermos felizes, mas como nos tornarmos aptos à felicidade." Ou, poder-se-á dizer, aptos a momentos de felicidade. 

terça-feira, 14 de junho de 2016

Entre conhecimento e incandescência

Na escalada de ataques gratuitos às instâncias da ciência social latino-americana, em decorrência de manifestações dos seus membros em favor da consciência democrática no continente, não nos cabe senão afirmar o valor de fóruns como o ALAS - Associação Latino-americana de Sociologia. Aqui o faço lembrando o valor dos seus congressos para o avanço do conhecimento em nossa América Latina. E também lembrando daquele homem da aldeia de Négua, na Colômbia, referido por Eduardo Galeano. Há fogueiras e fogos impossíveis de serem apagados. 


"Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo."

(Eduardo Galeano) 


sábado, 11 de junho de 2016

O colapso das ciências sociais/humanas

Arte de Daniel Araújo 

Publiquei, há cerca de oito anos, um pequeno texto no periódico português A Página da Educação, onde, entre outras questões, realçava alguns equívocos e ambiguidades que têm perpassado o campo das ciências sociais/humanas. Na época, entre colegas lusitanos, o texto rendeu alguma discussão, sobretudo porque foi escrito tendo em conta o contexto brasileiro. Seja como for, de 2008 para cá, as ambiguidades na esfera das ciências sociais/humanas brasileiras só fizeram se agravar. A esse respeito, podem ser citados, dentre outros, fatos como: 

1) A histérica reação de alguns acadêmicos brasileiros diante de protestos contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no recente encontro da Latin American Studies Association (LASA), realizado em Nova Iorque. O ex-presidente, propositadamente, vive um dilema de identidade: quando lhe convém, fala como político, liderando um partido; quando não, apresenta-se como cientista social, condição que efetivamente teve no passado, sendo que há muito deixou de produzir conforme os requisitos da pesquisa.  Cientistas sociais de toda a América Latina protestaram contra o fato de ele ser convidado a falar,  no encontro da LASA, a respeito da democracia no continente, quando, na verdade, direta ou indiretamente, ultimamente, o seu comportamento não tem sido em nada apaziguador para a estabilidade da democracia brasileira e de outros países da região. Foi motivo suficiente para acadêmicos brasileiros atirarem pedras na LASA, posicionando-se como  porta-vozes do ex-presidente, e não como analistas sociais. 

2) O faz de conta que tem marcado alguns eventos na área, com os seus propósitos tendo a ver com tudo, menos com a discussão séria  e com o caráter analítico que deve marcar os debates acadêmicos. 

3) Na presente crise política brasileira, abundam as demonstrações de colapso das ciências sociais/humanas brasileiras. Ora prevalece a omissão, na recusa de tratar da mesma; ora destacam-se as manifestações de mero senso comum, apresentadas como juízo científico por professores universitários na imprensa - mas não só na imprensa. Dicotomias e percepções dogmáticas vão sendo repisadas incessantemente, com abordagens não só cegas à realidade, mas intolerantes e desrespeitosas à diferença de pontos de vista e de análises. 

Em volta da segunda metade da década de 1980, a chamada Comissão Gulbenkian, sob a coordenação de Immanuel Wallerstein, produziu o Relatório denominado 'Para Abrir as Ciências Sociais'. Há aí consistentes indicações a serem tidas em conta por todas as ciências do social. A julgar pelo que temos visto no Brasil, elas estão fechadas e estilhaças num labirinto. Contudo, conforme a consagrada expressão, "a coruja de minerva só levanta voo ao cair do crepúsculo." Depositemos esperança nas novas gerações. E que a criatividade analítica, a imaginação, como disse Sartre, continue a ser como um braço extra, com o qual se pode agarrar coisas que, de outra forma, não estariam ao nosso alcance. O meu texto, no início referido, está aqui: http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=179&doc=12813&mid=2


sexta-feira, 10 de junho de 2016

Sentir como quem olha, pensar como quem anda

A 'roda viva' cotidiana ou Pessoa. O ordinário e as surpresas de cada dia. A serenidade a mirar o horizonte. Com calma caminhar. Para onde tiver que ser. 



Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) 

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
-Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Tragédia grega

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Por Carlos Russo 

O Surgimento da Tragédia Grega
É uma tarefa ingrata qualquer tentativa de hierarquizarem-se as invenções do espírito grego. Afinal, um povo que criou a filosofia, as bases para a análise científica da natureza, o raciocínio abstrato, a matemática e o cálculo, o conhecimento aguçado do comportamento psíquico do homem, qual destas contribuições terá sido a mais importante? Mas se identificarmos em toda a cultura helênica qual criação foi não necessariamente a mais decisiva, mas, sim, a mais ousada, tal qual Bonnard, não teremos dúvida de que tenha sido a Tragédia Grega.
Desde seu nascimento, que data do princípio do século V a.C. até o seu declínio, nos anos 20 do século IV a.C., a Tragédia se desenvolveu dentro de condições históricas importantes de serem compreendidas para o entendimento desta “nova arte”. A tragédia dita primitiva – “o diritambo” trazia o mundo dos deuses até o mundo dos homens, tornando o divino mais humano. A Tragédia Grega ampliará isto, primeiramente exigindo que os deuses sejam justos e imponham a justiça – a dique – ao mundo, e, em segundo lugar, que a partir do exemplo divino estabeleça-se uma ordenação na comunidade dos homens.
Historicamente a Tragédia surge no declínio dos aristocratas, durante a tirania de Pisístrato, que foi levado ao poder à força, pelos camponeses mais pobres. Promoveu reformas sociais importantes, dentre elas uma melhor distribuição de terras e instituiu as festas Dionísicas, como concurso de produções artísticas para o deleite dos cidadãos. Pisístrato é uma ponte de passagem para Péricles e a Democracia Grega, assim como do diritambo à Tragédia.
O ditirambo constitui um canto religioso dionisíaco, entoado por cantores que, em coro, utilizavam personas – máscaras de animais. Já continha elementos dramáticos e transmitiam à plateia participante, um acontecimento mítico. De conformidade com Heródoto, foi Arion de Corinto quem introduziu o elemento satírico, complemento necessário ao diritambo, ou seja um recital de versos, entremeado aos elementos corais. Os “sátiros”, utilizando suas máscaras características, permitiram uma nova dinâmica no canto dionísico, prenunciando o surgimento dos atores e da própria tragédia.
Quando o deus Dionísio surge na Grécia, com toda a sua sintonia e integração com a natureza, a ele se unem todos os sátiros que com seu poderoso falo serão companheiros para todo o sempre.
Aristóteles afirmou que “o historiador narra o que aconteceu e o poeta o que poderia ter acontecido”. Ao mesmo tempo ele afirma ser a poesia “mais filosófica que a história”, dado que esta última tende ao específico e a poesia, ao “universal”. Os mitos formavam o conteúdo dessa poesia, assumindo um valor de realidade. Logo, a poesia épica ao narrar o mito constrói dois patamares: um que é o divino e o outro, o humano, de tal modo que o desenrolar dos acontecimentos na esfera do divino determinará o desenrolar dos acontecimentos terrenos.
A máscara da Tragédia, deixa de ser aquela máscara figurativa de demônios ou animais, mas surge como um elemento cênico importante, elemento esteticamente definido. Representa um sujeito “psicológico”, integrando a personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida: a dos Heróis.
Em contraponto com os atores estará o coro trágico, um ser anônimo e coletivo, cujo papel, de conformidade com Vernant, consiste em “exprimir seus temores, suas esperanças e julgamentos, os sentimentos dos expectadores que compõem a comunidade cívica”.
Desta forma, na Tragédia, a narrativa é realizada no presente e todo lirismo do século V a.C. tende a dar valor à realidade terrena; o presente é apenas “iluminado” pelos mitos, pelo passado e pelos lugares em que os “fatos” teriam ocorrido. A construção dos modelos, os Heróis, constitui os paradigmas éticos, que é o reconhecimento de comportamentos referenciados pela melhor tradição cívica.
Para o espectador grego, o que se representa é verdade? Não. Então, é pura mentira? Também não, pois o critério da verdade e da mentira que se poderia utilizar na poesia épica perdera toda a serventia. A arte imita e interpreta a realidade, representando-a somente, tornando-se com isto uma nova e particular realidade.
Precisamente na Tragédia é onde o mito perde toda e qualquer conexão com situações determinadas, concretas. Já não serve para representação de fatos da vida humana fixados no tempo e no lugar, como vitórias, conquistas, cultos religiosos, mas para a representação de fatos universais.
É deste modo que o interesse da Tragédia se desloca para a Filosofia e já estará próximo o momento em que a problemática da condição humana de que trata a Tragédia se transformará em um problema do conhecimento, do logos. Este será o exato momento em que a realidade passa a ser concebida em sentido totalmente abstrato e ocorre o surgimento de Sócrates tentando equacionar a condição humana através do bem. Eurípides, o último dos grandes trágicos, ainda está longe disto, pois é poeta e não filósofo, apesar de influenciado pelos sofistas e por Sócrates. Talvez por isso mesmo ainda vê a realidade através de figuras vivas, não através de conceitos. Entretanto, é analisando suas poesias que entenderemos Aristóteles quando diz que “a poesia é mais filosofia que história”.

O Momento histórico da Tragédia
Louis Gernet demonstrou que, buscando suas referências num passado distante, no momento da cosmogonia, das epopeias e dos feitos Heróicos, a verdadeira matéria que constitui a Tragédia é o pensamento social em efervescência nas cidades gregas, especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de construção.
Todo um vocabulário que é técnico e que perfaz os dramas, assim como a condução de diversos Heróis à presença de Tribunais, recentemente introduzidos, possuíam a novidade dos valores que regulavam sua fundamentação.
No dizer de Vernant: “os poetas trágicos utilizam este vocabulário deliberadamente com as incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento, traduzindo igualmente seu conflito com uma tradição religiosa, com uma reflexão moral de que o direito já se distinguira, mas cujos domínios não estão claramente delimitados.” “O direito não é uma construção lógica: constituiu-se historicamente a partir de procedimentos “pré-jurídicos” de que se libertou e aos quais se opõe, embora em parte permaneça solidário com eles”.
Os gregos não têm a ideia de um direito absoluto, fundado sobre princípios, organizado num sistema coerente. Para eles há como que graus de direito. Num polo o direito apoia-se na autoridade de fato; no outro, coloca em jogo potências sagradas, assim como problemas éticos e morais que dizem respeito ao homem.
A Tragédia questiona essa realidade que é nova, coincidente com a formação dos cidadãos-livres, o sentido da cidade como Pátria, a responsabilidade coletiva vivenciada na democracia. Por isso, a tragédia é questionadora da realidade vivida e de seus valores, ao invés de, simplesmente ser um “espelho” do real que assume os palcos. Ela foi mais do que tudo uma instituição social, ao lado dos órgãos públicos políticos e de justiça. É a própria cidade que se faz teatro no momento das celebrações dionisíacas. E o teatro é tão importante que a presença do cidadão é subsidiada pelo poder público, sendo que o próprio Arconte responsabiliza-se por toda a sua realização.

A problemática e os elementos trágicos

Katarsis
A primeira concepção globalizante da Tragédia Grega está na “Poética” de Aristóteles, e nela encontramos a “katarsis” nos três atores no palco, nos coreutas participantes, e, principalmente, no público que a assistia. “Tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes: ação representada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação das aflições.”
Harmatia e a hibris
Quando Aristóteles desenvolve sua teoria da mudança- “metabolismo”, do destino como o “umbigo” do mito trágico, ele torna claro que nenhuma queda no infortúnio deve advir de um defeito moral do herói, mas sim de uma falha, no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e de agir seguro. O famoso dístico apolíneo “conhece a ti mesmo”, não possui nenhuma conotação de autoconhecimento ou introspecção, pois o homem grego enxergava-se através de seu reflexo na consciência do outro. O homem grego deveria buscar conhecer seus limites, exatamente para evitar exceder as medidas e incorrer numa hybis, a desmedida, numa falha, a harmatia.
A harmatia, desencadeará uma espécie de ate, a cegueira da razão, que, momentaneamente obscurece o vivente. É quando se desencadeia a relação agônica com a divindade. Estas reagem à desmedida porque a mesma aproximou um mortal de um ser imortal e a nemesis – que pode ser traduzida por ciúmes, mas que também representa uma divindade vingativa, filha de Nix, a noite e irmã das Eríneas, é desencadeada. Decorrente da Nemesis, as Moiras, que nem mesmo da vontade dos deuses dependem, ativam o desfecho trágico e o destino se cumpre.

Arete e práxis
Ainda é Aristóteles quem nos diz que “nossa compaixão somente pode existir quando somos testemunhas de uma desgraça imerecida”. Ou seja, a compaixão é uma postura nobre, integra o arete do homem grego educado, mas só se justifica quando em suapraxis o homem não se torna merecedor da desgraça, da queda, sendo parcela do sentimento que invade o público e o coro na tragédia apresentada. Goethe, referindo-se à tragédia, disse que “todo trágico se baseia numa contradição inconciliável, pois tão logo parece possível uma acomodação, desaparece o trágico”.

Do anthropos ao homus aner
A autêntica tragédia está ligada a um decurso de acontecimentos de alto dinamismo. O que sentimos como trágico deve significar a descida de um mundo de segurança e felicidade ilusória para um abismo de desgraças, na maioria das vezes irreversível. A queda é tão grande e brutal que somente heróis poderiam suportá-la. E é ele, o Herói, o sujeito do ato trágico, consciente de sua condição miserável, que tudo suporta num processo de transformação de anthropos– homem comum- em aner– que é o homem consciente de si mesmo.
Os gregos apreenderam o ekstasis dionisíaco e, neste estado de espírito manifestar seu enthusiasmos. O êxtase expressava o “sair de si”, o transpor os limites da condição humana, ultrapassar o metron – a medida de cada um. Já o entusiasmo era a penetração do homem pela divindade, o momento em que o deus falava pela boca de um mortal.
Na Tragédia ambos os processos se aliam na transformação do homem comum em aner hypocrites, aquele que finge e representando o Herói, torna-se consciente de si mesmo. E este transformar, como já o dissemos, permeará o coro como transmissor dos sentimentos, e os atores responsáveis pelo desenvolvimento temático, assim como todos os expectadores.
Todo ser humano possui sua medida e os mortais são perfeitamente capazes de por ela conduzirem todo o seu destino. Apenas alguns desafiam seus limites e estes são os Heróis- marcados por sua origem- seu guenos. Os Heróis, apesar da inexorabilidade do destino, rebelam-se contra as forças da moira – o destino, e nesta rebeldia adquirem um manto de “exemplaridade “perante os homens e os deuses. Fazem-se imortais, quer por beberem da fonte da mnemosis, a memória, quando morrem ou por poder viver em seu lugar exclusivo, na Ilha dos Bem-Aventurados.
O que é próprio de cada herói, marca registrada exclusiva, é o seu ethos – o comportamento, a forma desafiadora de responder ao sofrimento que lhe é imposto. O ethos heroico lhe indicará o caminho a seguir, seu mathos, o caminho necessário a percorrer para akatarsis, a purificação, iniciação e transformação do anthropos em aner.

Atualidade da Tragédia Grega
Podemos afirmar que a tragédia coloca em cena uma montagem que visa, no fundo, esclarecer a existência humana e seu destino. No dizer de Vernant: “À luz da dramaturgia, o homem não parece delineado como uma natureza estável, uma essência que poderia ser delimitada e definida, mas como um problema; ele adquire a forma de uma interrogação, de um questionamento. Criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo e associando o melhor e o pior, o ser humano pode ser qualificado de deimós, nos dois sentidos do termo: maravilhoso e monstruoso”.
Vivemos hoje em um mundo em que os valores herdados da história da civilização estão colocados em cheque. Os bens são objetos de consumo imediato numa sociedade excludente e brutal para com a maioria, superficial, mecanicista, em processo de perda acentuada da intelectualidade em suas elites.
Ao propalado fim das ideologias caminhamos em direção a uma bifurcação na estrada da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos Heróis das tragédias: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, inerente à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo uma espécie arquetípica do subconsciente), ou caminhar para um outro lado, tão complexo quanto novo e inseguro, uma trilha que conduza ao Renascer da humanidade e de seus valores.
Quando deixamos o teatro após uma apresentação de Édipo Tirano, Antígona ou de Medeia, sentimos latejar em nós as questões essenciais da existência, porque ainda carregamos os fumos do terror e da compaixão antigos; questionamos os valores sob os quais as gerações de hoje se formatam e neste sentido ainda somos ambíguos, trágicos; interrogamo-nos sobre o sentido da própria vida, comovemo-nos e então percebemos em nosso íntimo o trágico, o drama e desenvolvemos nossa própria katarsis, aproximando-nos do aner.
Após mais de vinte e cinco séculos ainda apreciamos o melhor da arte grega, pois a ambiguidade de nosso mundo e do homo sapiens demens de Morin, fazem com que a tragédia permaneça atual e cotidiana.

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Fonte: http://proust.net.br/blog/?p=776