Por Pedro Sprejer
Em 1993 — muito antes de seu sumiço voluntário — Belchior estava praticamente fora do mainstream
da chamada MPB. Pouca gente ouvia seus discos mais recentes e suas
canções já não chegavam ao rádio. O pouco lembrado “Bahiuno”, lançado naquele
ano, é uma obra reveladora da personalidade e do que pensava o compositor
cearense. É, ao mesmo tempo, uma impressionante reflexão sobre sua geração e
sobre os sonhos e descaminhos daqueles que compartilharam utopias nos anos [19]60
e [19]70.
Alguns
versos do disco são assombrosamente atuais. Segure aí o seguinte trecho de
“Lamento do marginal bem sucedido”: “Ah! Enquanto essas senhoras e esses
senhores viram o jogo contra nós/e põem o mundo a seu favor - que horror!/
Conversação de marginais sobre terra devastada em meio a nossa guerra civil/desde Cabral o Brasil é Brasil”.
Outros
versos ilustram o sentimento de desconforto de quem havia exaltado as novidades
vindas nos ventos libertários dos anos [19]70 e agora se deparava com as
reviravoltas dos anos [19]90. “Baby/Enquanto um velho mestre de blues
radioativa nas ondas sonoras do carro/ tome um fósforo e, ao gosto dos anjos,
acenda o último cigarro/Que aquele bêbado lhe deu/E blues lamente comigo os
tempos cínicos e cruéis/para o caubói delicado que você diz que sou eu”.
Mesmo
lamentoso, o cowboy delicado de bigode grosso, voz grave e sorriso largo nunca
foi um ressentido. Pelo menos é o que atestam os testemunhos de pessoas
que o conheceram ao longo da vida, inclusive nos momentos mais duros. Era um
artista nato, febril, quase louco na forma como submergia na criação.
Difícil
precisar em que momento o “marginal bem sucedido” foi se distanciando do
público. Apesar do isolamento, Belchior teria conservado hábitos como
escrever, compor e pintar, até o final. Talvez apenas porque não pudesse parar.
Como cantara muitos anos antes, em “Divina Comédia Humana”: “Eu canto, enquanto
houver/espaço, tempo, corpo/ e algum modo de dizer não”.
Foi
um intransigente e cantou sua rebeldia: “Ao pastor de minha igreja reza/que essa ovelha negra jamais vai ficar branquinha/Não vendi a alma ao diabo/O
diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha”. E, sozinho, traçou seu caminho
no mundo, atravessado por influências eruditas e populares. Viveu, mesmo
sem aderir a projetos políticos, os idealismos arrebatadores de sua época:
“Conta aos amigos doutores que abandonei a escola pra cantar em cabaré/ Baiões,
Bárbaros, baihunos, com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che”
“Amar
e mudar as coisas me interessa mais” foi talvez um dos mais emblemáticos versos
do compositor cearense. Desses que se pixam nos muros até hoje. Bebeu de tudo e
com todos. Conheceu de perto os hippies, o movimento estudantil de esquerda, as
ideias do Maio de 68, a revolução do corpo. Tendo vivido profunda experiência
católica na juventude, transformou-se em um anarquista declarado, como
afirmou em entrevista ao Pasquim de 1982: “Por exemplo: eu achava que
cabia aos estudantes pensar as alternativas para uma mobilização política que
não fosse capitalista ou socialista. Queria uma experiência anarquista, no
sentido mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora. Imaginava que
podíamos aproveitar a oportunidade do movimento estudantil pra ser algo mais
que caudatário do movimento político institucional”.
As
canções de Belchior revolveram as angústias, os dilemas, os ideais e as
expectativas de uma época. Foi a tarefa que assumiu – árdua tarefa –, como
declarou em [19]76 à jornalista Ana Maria Baiana: “Minha música está muito em
cima dos fatos, eu quero dar assim um balanço da minha geração, dos anos [19]60.
Não quero apontar caminhos, soluções, mas dar uma geral em tudo o que
aconteceu, voltado para o futuro, para o que vai vir. O que já está vindo,
aliás”
Claro
que o futuro mostrou-se muito diferente do que se esperava. Em [19]93, na
canção “Baihuno”, Belchior fotografaria outras duas transformações que marcaram
o fim — ou talvez uma interrupção momentânea — dos ideais cultivados pela sua
geração. “Cai o Muro de Berlim — cai sobre ti, sobre mim/ Nova Ordem
Mundial/ Camisa-de-força-de-vênus/ Ah! quem compraria, ao menos, o velho gozo
animal?”. O fim do socialismo como força política global alternativa, a AIDS se
impondo como energia repressiva, o prazer vendido como mercadoria.
Talvez
Belchior sentisse mesmo tudo desabar, mas seguia. Alguns versos adiante,
pareciam intuir o caminho que tomaria 14 anos depois: “Já que o tempo fez-te a
graça de visitares o Norte, leva notícias de mim/O cara caiu na vida, vendo
seu mundo tão certo, assim tão perto do fim”.
Em
seus melhores momentos, Belchior era uma antena captando mudanças, um cronista
da História em movimento. Antirreacionário por excelência, não reagia
negativamente às mudanças, limitava-se a observá-las, transformando o
estranhamento em canções-comentário. Toda sua obra parece beber na seminal “The
times they are a-changing”, na qual Bob Dylan advertia os reacionários e
acomodados: “É melhor você começar a nadar, senão afundará feito uma pedra/
Pois os tempos estão mudando”.
Em
1977, um ano após lançar a obra-prima “Alucinação”, Belchior declarou à Ana
Maria Baiana que seu projeto de carreira já estava todo definido em detalhes na
sua cabeça e que não faria concessões. “É preciso muita lucidez para não ceder,
ficar com a cabeça no lugar. Eu, por exemplo, tinha uma série de fatores
considerados negativos pela indústria do disco: a voz que era estranha, o fato
de abordar temas, como dizer, ásperos, e o fato de não ser exatamente um cantor
galã. Eu podia ter amaciado meus temas, feito jogadas. Mas não fiz.”
Aparentemente,
ele já divisava as armadilhas que envolviam o contraditório posto de pop star rebelde: “Sei que agora corro
outro risco, o de ficar preso a uma fórmula, ser, como você disse, uma espécie
de contestador oficial’”.
“Tenho
falado à minha garota/ Meu bem, difícil é saber o que acontecerá/Mas eu
agradeço ao tempo/O inimigo eu já conheço/ Sei seu nome, sei seu rosto,
residência e endereço/A voz resiste/A fala insiste/Você me ouvirá” (“Não
leve flores”)
Origens
Alguns anos antes de se lançar como compositor, Antônio Carlos
Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi seminarista. No monastério da Ordem
Menor dos Capuchinhos, em Guaramiranga (CE), ele era mais conhecido como o Frei
Sobral. Ali, como mostra o capítulo já divulgado da aguardada biografia do
cantor, urdida pelo jornalista Jotabê Medeiros, o jovem religioso aprofundou
sua paixão pela literatura, conheceu preceitos filosóficos marcantes em sua
trajetória e entrou em contato com um modo de introspecção profunda, um cultivo
da solidão como virtude. Além de rigoroso nas penitências, jejuns e demais
provações religiosas, Belchior divertia os outros seminaristas com suas
emboladas e repentes. Virtuoso, diz-se que podia passar até três horas
improvisando versos seguidamente. Era um talento incontrolável.
A
vida regrada de seminarista duraria três anos. Ao fim dos quais Belchior
percebeu que não era a fé, mas, sim, o gosto pelo estudo, que o atraíra para a
vida monástica. Ao Pasquim, ele falou sobre a experiência:
“Nesse
tempo (vivido no mosteiro), completei o curso de Filosofia, o que foi muito
importante, tendo aprendido latim, pois podendo ler os textos no original me
desvencilhei de todo o entulho religioso que até ali tinha atravancado minha
cabeça. Ainda hoje leio os textos religiosos tradicionais - Bíblia, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho - em latim”.
Pouco
depois de largar os capuchinhos, foi para Fortaleza estudar Medicina, mas,
logo, trocou o projeto de virar doutor pela música. Agitou espetáculos,
realizou programas de TV, juntou-se a uma turma de jovens compositores. Entre
eles, ilustres cearenses como Ednardo, Fagner, Rodger e Teti.
Anos
depois, uma parte da turma abraçou a ideia de um disco em conjunto. O grupo se
autointitulou “Pessoal do Ceará”. Belchior não embarcou no projeto. “Não faz
muito sentido pra mim, esse determinismo geográfico”, justificou-se. “Não
preciso enfatizar minhas raízes, enfatizar meu cearensismo. Eu faço coisas
cearenses em qualquer circunstância, porque tenho o Ceará dentro de mim”
Belchior
se considerava marcado a ferro e fogo “pela exposição ao universo sonoro do
nordeste, que é uma coisa fortíssima”. As influências regionais, porém, se
confundiam com uma miscelânea de outras: “A nordestinidade é uma coisa que só
pode ser vista do sul. A típica música nordestina também. Eu não tinha nenhuma
preocupação seletiva. Eu ouvia tudo, como todo o povo de Sobral ouvia”.
Sobre
sua formação musical na infância, ele contou ao Pasquim: “Meu avô, um coronel
do sertão, tocava sax e flauta. Minha mãe cantava no coro de igreja. Foi
ouvindo eles, as músicas de violeiros, o serviço de alto-falante, que comecei a
gostar de música. O alto-falante era uma maravilha, sonorizava toda a amplidão
do sertão”
Após
passar pelo Rio, onde venceu o Festival Universitário da Canção, em [19]71, foi
para São Paulo. Lá tocou em “quase todos os lugares onde é possível cantar:
escolas, praças, fábricas, hospitais, prisões, circos, caminhões. Até em
teatros”. Era uma espécie de vagabundo iluminado de Kerouac e, ao mesmo tempo, um operário incansável da
canção.
Os
tropicalistas eram vistos por ele como precursores, quase como irmãos mais
velhos que deviam ser superados. A pretensão de Belchior não era pequena: “Nós
(os músicos cearenses) fomos influenciados por eles (os tropicalistas), pelas
propostas deles. E por isso mesmo não se pode ficar parado. É preciso
continuar, ir adiante no que os baianos fizeram”.
Em 1988, ele chegou a declarar ao repórter Thales de Menezes que,
sentindo sua missão na música quase concluída, estava investindo em outro
projeto artístico. Tratava-se, tão somente, de uma colossal coleção de 3 mil
desenhos ilustrando “A Divina Comédia”, de Dante, a maior das suas muitas
obsessões literárias.
O Último Capítulo
Por mais que os depoimentos sobre os últimos anos do compositor
venham aparecendo aqui e ali, não é possível entender — e talvez nunca será — o que se passou na sua cabeça.
Belchior teria se lançado ao famoso “dropout” (se jogar, largar tudo) dos
hippies e demais libertários dos [19]60 e [19]70?
O
trovador solitário deixou para trás a família, imóveis, bens e projetos não
terminados (onde teriam ido parar os desenhos da Divina Comédia?).
Sua sombra na vida nova foi o outro Belchior, o astro. Aquele que
nunca o deixaria fugir em paz, viver anônimo. Pelos relatos que vão surgindo,
sua vida itinerante logo virou uma bola de neve, uma teia de aranha. O mundo
cobrou a conta. A imprensa o encontrou.
Chegado ao hedonismo, Belchior nunca foi investidor ou poupador.
Sobre acumular dinheiro, ele havia dito ao Pasquim, em [19]82:
“As
pessoas que falam em guardar dinheiro não sabem ou se esquecem de que existem
os charutos perfumados, as mulheres bonitas, os bons vinhos, de que é
importante a gente ver o Oriente, a Europa, e de que a acumulação do dinheiro,
além de ser chato, não tem mais significado numa sociedade contemporânea de
serviços e de comunicação eletrônica veloz”.
O
compositor não esteve só em sua última jornada, mas ao lado de Edna, uma
jornalista que conheceu em 2005. Alguns amigos antigos do cantor acreditam que
ela o dominava, acusam-na até de ter feito nele uma espécie de “lavagem
cerebral”. Outros, que conviveram com o casal nos últimos anos, o achavam
dependente dela. Seria difícil e até injusto, porém, estabelecer qualquer tipo
de parecer ou julgamento sobre a relação.
Em
Santa Cruz do Sul, destino final da viagem, onde viveu de favor na casa de
amigos entre 2013 e 2017, o cantor teria passado a maior parte do tempo
recluso. De acordo com aqueles com quem conviveu, atravessava os dias fazendo
aquilo que vinha fazendo há muitos anos: escrevendo, lendo e pintando. Alheio
ao redemoinho da vida, não se preocupava com mais nada: vivia tranquilo e bem
humorado, apesar da falta de garantias.
Belchior
conseguiu o que desejava quando decidiu largar tudo e quase todos, ou caiu numa
armadilha? É melhor ficar com a dúvida do que atribuir à história ares de
tragédia e ao seu autor a marca da loucura. Belchior foi apenas um inesquecível
rapaz latino-americano do seu tempo, que terminou (assim como começou) sem
dinheiro no banco e, aparentemente, com o mesmo coração selvagem.
Para
finalizar, mais um trecho da entrevista ao Pasquim:
Ricky - Você continua apenas um rapaz
latino-americano?
Belchior - Claro, sou um brasileiro comum.
Ricky - Só que agora com dinheiro no banco.
Belchior - Não é bem isso. Eu não confiaria nos
bancos a esse ponto. Ainda tenho uma formação brechtiana.
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Fonte: O Palma. Título original: 'Belchior, Retrato da Alma'.