terça-feira, 16 de maio de 2017

Um cronista da História em movimento: alucinação do dia a dia, delírio com coisas reais

Por Pedro Sprejer 

Em 1993  muito antes de seu sumiço voluntário  Belchior estava praticamente fora do mainstream da chamada MPB. Pouca gente ouvia seus discos mais recentes e suas canções já não chegavam ao rádio. O pouco lembrado “Bahiuno”, lançado naquele ano, é uma obra reveladora da personalidade e do que pensava o compositor cearense. É, ao mesmo tempo, uma impressionante reflexão sobre sua geração e sobre os sonhos e descaminhos daqueles que compartilharam utopias nos anos [19]60 e [19]70.
Alguns versos do disco são assombrosamente atuais. Segure aí o seguinte trecho de “Lamento do marginal bem sucedido”:  “Ah! Enquanto essas senhoras e esses senhores viram o jogo contra nós/e põem o mundo a seu favor - que horror!/ Conversação de marginais sobre terra devastada em meio a nossa guerra civil/desde Cabral o Brasil é Brasil”.
Outros versos ilustram o sentimento de desconforto de quem havia exaltado as novidades vindas nos ventos libertários dos anos [19]70 e agora se deparava com as reviravoltas dos anos [19]90.  “Baby/Enquanto um velho mestre de blues radioativa nas ondas sonoras do carro/ tome um fósforo e, ao gosto dos anjos, acenda o último cigarro/Que aquele bêbado lhe deu/E blues lamente comigo os tempos cínicos e cruéis/para o caubói delicado que você diz que sou eu”.
Mesmo lamentoso, o cowboy delicado de bigode grosso, voz grave e sorriso largo nunca foi um ressentido. Pelo menos é o que atestam os testemunhos  de pessoas que o conheceram ao longo da vida, inclusive nos momentos mais duros. Era um artista nato, febril, quase louco na forma como submergia na criação.
Difícil precisar em que momento o “marginal bem sucedido” foi se distanciando do público. Apesar do isolamento, Belchior teria conservado  hábitos como escrever, compor e pintar, até o final. Talvez apenas porque não pudesse parar. Como cantara muitos anos antes, em “Divina Comédia Humana”: “Eu canto, enquanto houver/espaço, tempo, corpo/ e algum modo de dizer não”.
Foi um intransigente e cantou sua  rebeldia: “Ao pastor de minha igreja reza/que essa ovelha negra jamais vai ficar branquinha/Não vendi a alma ao diabo/O diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha”. E, sozinho, traçou seu caminho no mundo, atravessado por influências eruditas e populares. Viveu,  mesmo sem aderir a projetos políticos, os idealismos arrebatadores de sua época: “Conta aos amigos doutores que abandonei a escola pra cantar em cabaré/ Baiões, Bárbaros, baihunos, com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che”
“Amar e mudar as coisas me interessa mais” foi talvez um dos mais emblemáticos versos do compositor cearense. Desses que se pixam nos muros até hoje. Bebeu de tudo e com todos. Conheceu de perto os hippies, o movimento estudantil de esquerda, as ideias do Maio de 68, a revolução do corpo. Tendo vivido profunda experiência católica na juventude, transformou-se  em um anarquista declarado, como afirmou em entrevista ao Pasquim de 1982:  “Por exemplo: eu achava que cabia aos estudantes pensar as alternativas para uma mobilização política que não fosse capitalista ou socialista. Queria uma experiência anarquista, no sentido mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora. Imaginava que podíamos aproveitar a oportunidade do movimento estudantil pra ser algo mais que caudatário do movimento político institucional”.
As canções de Belchior revolveram as angústias, os dilemas, os ideais e as expectativas de uma época. Foi a tarefa que assumiu – árdua tarefa –, como declarou em [19]76 à jornalista Ana Maria Baiana: “Minha música está muito em cima dos fatos, eu quero dar assim um balanço da minha geração, dos anos [19]60. Não quero apontar caminhos, soluções, mas dar uma geral em tudo o que aconteceu, voltado para o futuro, para o que vai vir. O que já está vindo, aliás”
Claro que o futuro mostrou-se muito diferente do que se esperava. Em [19]93, na canção “Baihuno”, Belchior fotografaria outras duas transformações que marcaram o fim  ou talvez uma interrupção momentânea  dos ideais cultivados pela sua geração. “Cai o Muro de Berlim  cai sobre ti, sobre mim/ Nova Ordem Mundial/ Camisa-de-força-de-vênus/ Ah! quem compraria, ao menos, o velho gozo animal?”. O fim do socialismo como força política global alternativa, a AIDS se impondo como energia repressiva, o prazer vendido como mercadoria.
Talvez Belchior sentisse mesmo tudo desabar, mas seguia. Alguns versos adiante, pareciam intuir o caminho que tomaria 14 anos depois: “Já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte, leva notícias de mim/O cara caiu na vida, vendo seu mundo tão certo, assim tão perto do fim”.
Em seus melhores momentos, Belchior era uma antena captando mudanças, um cronista da História em movimento. Antirreacionário por excelência, não reagia negativamente às mudanças, limitava-se a observá-las, transformando o estranhamento em canções-comentário. Toda sua obra parece beber na seminal “The times they are a-changing”, na qual Bob Dylan advertia os reacionários e acomodados: “É melhor você começar a nadar, senão afundará feito uma pedra/ Pois os tempos estão mudando”.
Em 1977, um ano após lançar a obra-prima “Alucinação”, Belchior declarou à Ana Maria Baiana que seu projeto de carreira já estava todo definido em detalhes na sua cabeça e que não faria concessões. “É preciso muita lucidez para não ceder, ficar com a cabeça no lugar. Eu, por exemplo, tinha uma série de fatores considerados negativos pela indústria do disco: a voz que era estranha, o fato de abordar temas, como dizer, ásperos, e o fato de não ser exatamente um cantor galã. Eu podia ter amaciado meus temas, feito jogadas. Mas não fiz.”
Aparentemente, ele já divisava as armadilhas que envolviam o contraditório posto de pop star rebelde: “Sei que agora corro outro risco, o de ficar preso a uma fórmula, ser, como você disse, uma espécie de contestador oficial’”.
“Tenho falado à minha garota/ Meu bem, difícil é saber o que acontecerá/Mas eu agradeço ao tempo/O inimigo eu já conheço/ Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço/A voz resiste/A fala insiste/Você me ouvirá” (“Não leve flores”)

Origens
Alguns anos antes de se lançar como compositor, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi seminarista. No monastério da Ordem Menor dos Capuchinhos, em Guaramiranga (CE), ele era mais conhecido como o Frei Sobral. Ali, como mostra o capítulo já divulgado da aguardada biografia do cantor, urdida pelo jornalista Jotabê Medeiros, o jovem religioso aprofundou sua paixão pela literatura, conheceu preceitos filosóficos marcantes em sua trajetória e entrou em contato com um modo de introspecção profunda, um cultivo da solidão como virtude. Além de rigoroso nas penitências, jejuns e demais provações religiosas, Belchior divertia os outros seminaristas com suas emboladas e repentes.  Virtuoso, diz-se que podia passar até três horas improvisando versos seguidamente. Era um talento incontrolável.
A vida regrada de seminarista duraria três anos. Ao fim dos quais Belchior percebeu que não era a fé, mas, sim, o gosto pelo estudo, que o atraíra para a vida monástica. Ao Pasquim, ele falou sobre a experiência:
“Nesse tempo (vivido no mosteiro), completei o curso de Filosofia, o que foi muito importante, tendo aprendido latim, pois podendo ler os textos no original me desvencilhei de todo o entulho religioso que até ali tinha atravancado minha cabeça. Ainda hoje leio os textos religiosos tradicionais - Bíblia, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho - em latim”.
Pouco depois de largar os capuchinhos, foi para Fortaleza estudar Medicina, mas, logo, trocou o projeto de virar doutor pela música. Agitou espetáculos, realizou programas de TV, juntou-se a uma turma de jovens compositores. Entre eles, ilustres cearenses como Ednardo, Fagner, Rodger e Teti.
Anos depois, uma parte da turma abraçou a ideia de um disco em conjunto. O grupo se autointitulou “Pessoal do Ceará”. Belchior não embarcou no projeto. “Não faz muito sentido pra mim, esse determinismo geográfico”, justificou-se.  “Não preciso enfatizar minhas raízes, enfatizar meu cearensismo. Eu faço coisas cearenses em qualquer circunstância, porque tenho o Ceará dentro de mim”
Belchior se considerava marcado a ferro e fogo “pela exposição ao universo sonoro do nordeste, que é uma coisa fortíssima”. As influências regionais, porém, se confundiam com uma miscelânea de outras: “A nordestinidade é uma coisa que só pode ser vista do sul. A típica música nordestina também. Eu não tinha nenhuma preocupação seletiva. Eu ouvia tudo, como todo o povo de Sobral ouvia”.
Sobre sua formação musical na infância, ele contou ao Pasquim: “Meu avô, um coronel do sertão, tocava sax e flauta. Minha mãe cantava no coro de igreja. Foi ouvindo eles, as músicas de violeiros, o serviço de alto-falante, que comecei a gostar de música. O alto-falante era uma maravilha, sonorizava toda a amplidão do sertão”
Após passar pelo Rio, onde venceu o Festival Universitário da Canção, em [19]71, foi para São Paulo. Lá tocou em “quase todos os lugares onde é possível cantar: escolas, praças, fábricas, hospitais, prisões, circos, caminhões. Até em teatros”. Era uma espécie de vagabundo iluminado de Kerouac  e, ao mesmo tempo, um operário incansável da canção.
Os tropicalistas eram vistos por ele como precursores, quase como irmãos mais velhos que deviam ser superados. A pretensão de Belchior não era pequena: “Nós (os músicos cearenses) fomos influenciados por eles (os tropicalistas), pelas propostas deles. E por isso mesmo não se pode ficar parado. É preciso continuar, ir adiante no que os baianos fizeram”.
Em 1988, ele chegou a declarar ao repórter Thales de Menezes que, sentindo sua missão na música quase concluída, estava investindo em outro projeto artístico. Tratava-se, tão somente, de uma colossal coleção de 3 mil desenhos ilustrando “A Divina Comédia”, de Dante, a maior das suas muitas obsessões literárias.

O Último Capítulo

Por mais que os depoimentos sobre os últimos anos do compositor venham aparecendo aqui e ali, não é possível entender  e talvez nunca será  o que se passou na sua cabeça. Belchior teria se lançado ao famoso “dropout” (se jogar, largar tudo) dos hippies e demais libertários dos [19]60 e [19]70?
O trovador solitário deixou para trás a família, imóveis, bens e projetos não terminados (onde teriam ido parar os desenhos da Divina Comédia?).  
Sua sombra na vida nova foi o outro Belchior, o astro. Aquele que nunca o deixaria fugir em paz, viver anônimo. Pelos relatos que vão surgindo, sua vida itinerante logo virou uma bola de neve, uma teia de aranha. O mundo cobrou a conta. A imprensa o encontrou.
Chegado ao hedonismo, Belchior nunca foi investidor ou poupador. Sobre acumular dinheiro, ele havia dito ao Pasquim, em [19]82:
“As pessoas que falam em guardar dinheiro não sabem ou se esquecem de que existem os charutos perfumados, as mulheres bonitas, os bons vinhos, de que é importante a gente ver o Oriente, a Europa, e de que a acumulação do dinheiro, além de ser chato, não tem mais significado numa sociedade contemporânea de serviços e de comunicação eletrônica veloz”.
O compositor não esteve só em sua última jornada, mas ao lado de Edna, uma jornalista que conheceu em 2005. Alguns amigos antigos do cantor acreditam que ela o dominava, acusam-na até de ter feito nele uma espécie de “lavagem cerebral”. Outros, que conviveram com o casal nos últimos anos, o achavam dependente dela. Seria difícil e até injusto, porém, estabelecer qualquer tipo de parecer ou julgamento sobre a relação.
Em Santa Cruz do Sul, destino final da viagem, onde viveu de favor na casa de amigos entre 2013 e 2017, o cantor teria passado a maior parte do tempo recluso. De acordo com aqueles com quem conviveu, atravessava os dias fazendo aquilo que vinha fazendo há muitos anos: escrevendo, lendo e pintando. Alheio ao redemoinho da vida, não se preocupava com mais nada: vivia tranquilo e bem humorado, apesar da falta de garantias.
Belchior conseguiu o que desejava quando decidiu largar tudo e quase todos, ou caiu numa armadilha? É melhor ficar com a dúvida do que atribuir à história ares de tragédia e ao seu autor a marca da loucura. Belchior foi apenas um inesquecível rapaz latino-americano do seu tempo, que terminou (assim como começou) sem dinheiro no banco e, aparentemente, com o mesmo coração selvagem.
Para finalizar, mais um trecho da entrevista ao Pasquim:
Ricky - Você continua apenas um rapaz latino-americano?
Belchior - Claro, sou um brasileiro comum.
Ricky - Só que agora com dinheiro no banco.
Belchior - Não é bem isso. Eu não confiaria nos bancos a esse ponto. Ainda tenho uma formação brechtiana.



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Fonte: O Palma. Título original: 'Belchior, Retrato da Alma'.