quinta-feira, 4 de maio de 2017

Pilar del Río: palavras e atos

Entrevista de Pilar del Río ao jornal Expresso – Extratos


Legado. Foi num almoço em Lanzarote que surgiu a ideia de criar uma fundação. Saramago acabou por anuir e disse a Pilar que, se ela lhe sobrevivesse, queria que avançasse com o projeto


Por Alexandra Carita e Luciana Leiderfarb

Sabendo que não gosta que lhe chamem a viúva de Saramago, quem é Pilar del Río hoje, aos 67 anos?


Não gosto que me chamem ‘viúva de’ porque ninguém me chamou ‘mulher de’ enquanto Saramago foi vivo. Isto por duas razões: porque tinham de enfrentar Saramago e tinham de me enfrentar a mim. Cada um de nós é o produto de si próprio. Não somos nem do pai nem do filho. Somos o que queremos ser. Nunca fui a mulher de Saramago nem serei a viúva dele, por respeito a Saramago e a mim própria.


Porque é que se tornou jornalista?


Porque gostava de contar coisas que antes gostava de ouvir. Acima de tudo, sou uma ‘ouvidora’, oiço, oiço todo o tipo de gente em todo o tipo de circunstâncias. Tudo me maravilha. Nasci para me maravilhar com uma bola que rebola, com uma estrada que está a ser arranjada... Gosto de contar essas coisas. Tive um programa de rádio há muito tempo, já depois de ter conhecido o José, chamado “Blimunda Não Se Rende”. Nele contava as maravilhas que Blimunda, que era pobre e sozinha, ia encontrando no mundo.


É mais fácil viver quando se acredita no mundo e se está maravilhado com ele?


Eu não acredito absolutamente nada num mundo que está a ser governado por gente em que não acredito nem quero acreditar. O que não me maravilha são todas as insolências e as perversões que os poderes económicos praticam no mundo e as guerras que criam. Maravilha-me que haja refúgios e momentos de harmonia e de poesia. Fomos feitos para sermos seres passivos e sofredores, estamos preparados para ser a massa no que respeita aos conceitos de política e ao domínio do social e fiéis no que concerne à religião. Maravilha-me que de repente haja gente que é ela própria e que é feliz.


De onde vêm as suas convicções?


De um mundo cheio de pobres diabos. Vivo com seres humanos que tentam levantar a cabeça e não conseguem, porque lha cortam.


Houve um antes e um depois de Saramago?


Claro. Eu trabalhava como jornalista, tinha um programa e vivia num país. O facto de estar com José Saramago fez-me deixar um posto de trabalho estupendo e vir para um país onde não faço parte da memória de ninguém, nem então nem agora. Antes estava com o José, agora estou com a memória do José.


E quem é a Pilar depois do José?


Uma mulher muito mais velha, com uma experiência maravilhosa que muitas das mulheres que conheço, e mesmo algumas que não conheço, gostariam de ter tido. Sou uma privilegiada, vivi uma história absolutamente singular que partilho de manhã à noite todos os dias na fundação, na casa de Lanzarote, na Azinhaga. Vá para onde for, partilho essa história, porque é demasiado grande para a guardar só para mim: é a história de um dos cidadãos mais completos do século XX, uma pessoa que nasceu para ser massacrada e não o foi, que se levantou do chão, que se fez a si próprio, que não precisou de ser ‘filho de’, que nem sequer tinha o apelido do pai [sobrenome]


Como é que um encontro pode mudar uma vida?


Não tive consciência de que a terra tremeu. José Saramago sim, e descreve-o na “Jangada de Pedra”. Eu não. Senti tudo isso com uma enorme naturalidade. Saí do encontro com ele e disse: “Vai acontecer qualquer coisa!” Passou junho, julho, agosto. Em setembro recebi uma carta: “Se as circunstâncias da vida mo permitirem, gostaria de te ir ver.” Já me tinha dado recomendações de leitura, a nossa correspondência nesse sentido era quase ditatorial. Eu tinha de ler “Uma Família Inglesa”, de Júlio Dinis, o “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, a Agustina Bessa-Luís, a Lídia Jorge...


Soube logo que ia dedicar-se a este homem?


Dedico-me à vida, aos meus irmãos, e se na vida está o meu marido dedico-me a ele; se está a fundação, dedico-me a ela. Ou seja, sou uma mulher dedicada. Mas, sim, dediquei-me a ele de corpo e alma, sabendo que era uma pessoa inesgotável. Começava uma conversa que nunca dava por terminada, porque tinha sempre pontos de vista diferentes, tal como a sua literatura. Era uma pessoa com uma formação infinitamente superior à minha. Foi uma "maldição."


"Maldição"?


Sim, depois de o ter conhecido já não consegui gostar de mais ninguém.


Nunca pensou em refazer a sua vida?


Com quem? Deem-me outro. Só teria reconstruído a minha vida se tivesse aparecido alguém assim por quem me apaixonasse. Acho que os homens se impressionam com isso, que não querem ser comparados.


Como era ser 28 anos mais nova e saber que sobreviveria a esse amor?


Tínhamos isso muito claro e preparámos tudo. Uma vez, Madalena Perdigão disse-me, pouco tempo depois de a conhecer, que tinha uma relação com um homem mais velho e que isso a fazia sofrer muito, pois a sociedade não a entendia. A sociedade só percebe o lugar-comum. Acontece que ela morreu dois anos depois e o marido viveu quase até aos 100. O José e eu sabíamos que era uma lei da vida. E numa conversa ao almoço em Lanzarote, com dois amigos espanhóis, surgiu a ideia de fazer uma fundação para tomar conta do seu legado humanista — não de uma herança ou de uma biblioteca. Saramago primeiro não achou grande ideia, mas a conversa continuou e, no final, disse-me que, se eu lhe sobrevivesse, queria que me ocupasse da fundação.


O que significa para si a Fundação Saramago?


É a residência do pensamento do José. As editoras só publicam livros para ganhar dinheiro. É um negócio. Mas quem trabalha o pensamento de José Saramago? Já não há editoras que publiquem ensaios. Então somos nós que o fazemos. Exemplo disto é a “Proposta de Declaração Universal dos Deveres Humanos” — que tem a ver com a nossa obrigação de retribuir à sociedade e vai ser apresentada à ONU — ou a difusão do teatro. Houve teatro de Saramago em Portugal, em Espanha, em Itália, óperas... Alguém se deu conta? E quem leva isto para a frente? Os herdeiros? Eles têm a sua própria vida e não lhes pode cair o legado em cima. É a fundação que se ocupa de tudo.


No fundo, fala da sua individualidade. Como a manteve sendo tradutora de Saramago e o seu braço-direito?


Mantive-a sempre, mas ninguém o sabia. Isso fazia parte da nossa intimidade, onde cada um era livre. Não estávamos comprometidos nem com partidos políticos, nem com Estados, nem com nacionalizações, nem com o casal que formávamos... Éramos um projeto, trabalhávamos juntos. Quando decidíamos o que íamos fazer, não o fazíamos em função de Saramago, mas do projeto e da agenda, do livro que se estava a escrever ou a traduzir. Trabalhávamos para um projeto no qual participavam outras pessoas, a que chamávamos ‘saramaguitos’.


Como foi traduzir Saramago?


Foi uma ousadia própria da juventude. Eu lia os originais das traduções que mandavam a Saramago e muitas vezes não estava de acordo. Mas ele tinha um tradutor muito bom, que era professor catedrático da Universidade de Barcelona, e quem era eu para opinar... O tradutor veio à apresentação espanhola de “Ensaio sobre a Cegueira”, de óculos escuros e de bengala: “Venho à apresentação deste livro consciente de que será o último que traduzirei, porque estou a ficar cego.” Não ficou cego, exagerou um pouco. Mas eu já lhe tinha dito que a partir dali traduziria eu! Fi-lo porque era ousada, senão nunca teria traduzido Saramago.


Já disse que não gosta de bandeiras. Porque é que escolheu ter a nacionalidade portuguesa?


Para pagar impostos em Portugal. Não vou pagar por José Saramago fora de Portugal. E a verdade é que o Governo se portou muito bem, pois fiz um pedido normal e responderam-me logo. Ao cabo de dois meses já tinha a nacionalidade e já podia apresentar a declaração de impostos aqui. Pago muito mais aqui do que pagaria em Lanzarote, mas agora tenho legitimidade para criticar o Governo e o Estado ao qual pago os meus impostos. Fico colérica de cada vez que gastam mal o dinheiro.


Como é que essa formalização da relação com Portugal se conjuga com o ideal de uma Ibéria sem fronteiras?


Sabe, no outro dia deram-me o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, por eu servir de ponte de comunicação entre Espanha, Portugal e América Latina, segundo o júri. Fiquei muito feliz. Como na “Jangada de Pedra”, creio que é para lá que caminhamos, para a América Latina. E servir de agente de comunicação entre culturas parece-me muito importante. Sugeri que mo entregassem em finais de maio, na Feira do Livro de Madrid, cujo país-tema será Portugal. Não sou mulher de salões nobres.