Por Alexandra Carita e
Luciana Leiderfarb
Sabendo que não gosta que lhe
chamem a viúva de Saramago, quem é Pilar del Río hoje, aos 67 anos?
Não gosto que me chamem ‘viúva de’ porque ninguém me chamou ‘mulher de’
enquanto Saramago foi vivo. Isto por duas razões: porque tinham de enfrentar
Saramago e tinham de me enfrentar a mim. Cada um de nós é o produto de si
próprio. Não somos nem do pai nem do filho. Somos o que queremos ser. Nunca fui
a mulher de Saramago nem serei a viúva dele, por respeito a Saramago e a mim
própria.
Porque é que se tornou jornalista?
Porque gostava de contar coisas que antes gostava de ouvir. Acima de tudo, sou
uma ‘ouvidora’, oiço, oiço todo o tipo de gente em todo o tipo de
circunstâncias. Tudo me maravilha. Nasci para me maravilhar com uma bola que
rebola, com uma estrada que está a ser arranjada... Gosto de contar essas
coisas. Tive um programa de rádio há muito tempo, já depois de ter conhecido o
José, chamado “Blimunda Não Se Rende”. Nele contava as maravilhas que Blimunda,
que era pobre e sozinha, ia encontrando no mundo.
É mais fácil viver quando se acredita no mundo e se está maravilhado
com ele?
Eu não acredito absolutamente nada num mundo que está a ser governado por gente
em que não acredito nem quero acreditar. O que não me maravilha são todas as
insolências e as perversões que os poderes económicos praticam no mundo e as
guerras que criam. Maravilha-me que haja refúgios e momentos de harmonia e de
poesia. Fomos feitos para sermos seres passivos e sofredores, estamos
preparados para ser a massa no que respeita aos conceitos de política e ao
domínio do social e fiéis no que concerne à religião. Maravilha-me que de
repente haja gente que é ela própria e que é feliz.
De onde vêm as suas convicções?
De um mundo cheio de pobres diabos. Vivo com seres humanos que tentam levantar a
cabeça e não conseguem, porque lha cortam.
Houve um antes e um depois
de Saramago?
Claro. Eu trabalhava como jornalista, tinha um programa e vivia num país. O
facto de estar com José Saramago fez-me deixar um posto de trabalho estupendo e
vir para um país onde não faço parte da memória de ninguém, nem então nem
agora. Antes estava com o José, agora estou com a memória do José.
E quem é a Pilar depois do José?
Uma mulher muito mais velha, com uma experiência maravilhosa que muitas das
mulheres que conheço, e mesmo algumas que não conheço, gostariam de ter tido.
Sou uma privilegiada, vivi uma história absolutamente singular que partilho de
manhã à noite todos os dias na fundação, na casa de Lanzarote, na Azinhaga. Vá
para onde for, partilho essa história, porque é demasiado grande para a guardar
só para mim: é a história de um dos cidadãos mais completos do século XX, uma
pessoa que nasceu para ser massacrada e não o foi, que se levantou do chão, que
se fez a si próprio, que não precisou de ser ‘filho de’, que nem sequer tinha o
apelido do pai [sobrenome]
Como é que um encontro pode
mudar uma vida?
Não tive consciência de que a terra tremeu. José Saramago sim, e descreve-o na
“Jangada de Pedra”. Eu não. Senti tudo isso com uma enorme naturalidade. Saí do
encontro com ele e disse: “Vai acontecer qualquer coisa!” Passou junho, julho,
agosto. Em setembro recebi uma carta: “Se as circunstâncias da vida mo
permitirem, gostaria de te ir ver.” Já me tinha dado recomendações de leitura,
a nossa correspondência nesse sentido era quase ditatorial. Eu tinha de ler
“Uma Família Inglesa”, de Júlio Dinis, o “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo
Branco, a Agustina Bessa-Luís, a Lídia Jorge...
Soube logo que ia dedicar-se a este homem?
Dedico-me à vida, aos meus irmãos, e se na vida está o meu marido dedico-me a
ele; se está a fundação, dedico-me a ela. Ou seja, sou uma mulher dedicada.
Mas, sim, dediquei-me a ele de corpo e alma, sabendo que era uma pessoa
inesgotável. Começava uma conversa que nunca dava por terminada, porque tinha
sempre pontos de vista diferentes, tal como a sua literatura. Era uma pessoa
com uma formação infinitamente superior à minha. Foi uma "maldição."
"Maldição"?
Sim, depois de o ter conhecido já não consegui gostar de mais ninguém.
Nunca pensou em refazer a sua vida?
Com quem? Deem-me outro. Só teria reconstruído a minha vida se tivesse
aparecido alguém assim por quem me apaixonasse. Acho que os homens se
impressionam com isso, que não querem ser comparados.
Como era ser 28 anos mais nova e
saber que sobreviveria a esse amor?
Tínhamos isso muito claro e preparámos tudo. Uma vez, Madalena Perdigão
disse-me, pouco tempo depois de a conhecer, que tinha uma relação com um homem
mais velho e que isso a fazia sofrer muito, pois a sociedade não a entendia. A
sociedade só percebe o lugar-comum. Acontece que ela morreu dois anos depois e
o marido viveu quase até aos 100. O José e eu sabíamos que era uma lei da vida.
E numa conversa ao almoço em Lanzarote, com dois amigos espanhóis, surgiu a
ideia de fazer uma fundação para tomar conta do seu legado humanista — não de
uma herança ou de uma biblioteca. Saramago primeiro não achou grande ideia, mas
a conversa continuou e, no final, disse-me que, se eu lhe sobrevivesse, queria
que me ocupasse da fundação.
O
que significa para si a Fundação Saramago?
É a residência do pensamento do José. As editoras só publicam livros para
ganhar dinheiro. É um negócio. Mas quem trabalha o pensamento de José Saramago?
Já não há editoras que publiquem ensaios. Então somos nós que o fazemos.
Exemplo disto é a “Proposta de Declaração Universal dos Deveres Humanos” — que
tem a ver com a nossa obrigação de retribuir à sociedade e vai ser apresentada
à ONU — ou a difusão do teatro. Houve teatro de Saramago em Portugal, em
Espanha, em Itália, óperas... Alguém se deu conta? E quem leva isto para a
frente? Os herdeiros? Eles têm a sua própria vida e não lhes pode cair o legado
em cima. É a fundação que se ocupa de tudo.
No
fundo, fala da sua individualidade. Como a manteve sendo tradutora de Saramago
e o seu braço-direito?
Mantive-a sempre, mas ninguém o sabia. Isso fazia parte da nossa intimidade,
onde cada um era livre. Não estávamos comprometidos nem com partidos políticos,
nem com Estados, nem com nacionalizações, nem com o casal que formávamos...
Éramos um projeto, trabalhávamos juntos. Quando decidíamos o que íamos fazer,
não o fazíamos em função de Saramago, mas do projeto e da agenda, do livro que
se estava a escrever ou a traduzir. Trabalhávamos para um projeto no qual
participavam outras pessoas, a que chamávamos ‘saramaguitos’.
Como
foi traduzir Saramago?
Foi uma ousadia própria da juventude. Eu lia os originais das traduções que
mandavam a Saramago e muitas vezes não estava de acordo. Mas ele tinha um
tradutor muito bom, que era professor catedrático da Universidade de Barcelona,
e quem era eu para opinar... O tradutor veio à apresentação espanhola de
“Ensaio sobre a Cegueira”, de óculos escuros e de bengala: “Venho à
apresentação deste livro consciente de que será o último que traduzirei, porque
estou a ficar cego.” Não ficou cego, exagerou um pouco. Mas eu já lhe tinha
dito que a partir dali traduziria eu! Fi-lo porque era ousada, senão nunca
teria traduzido Saramago.
Já
disse que não gosta de bandeiras. Porque é que escolheu ter a nacionalidade
portuguesa?
Para pagar impostos em Portugal. Não vou pagar por José Saramago fora de
Portugal. E a verdade é que o Governo se portou muito bem, pois fiz um pedido
normal e responderam-me logo. Ao cabo de dois meses já tinha a nacionalidade e
já podia apresentar a declaração de impostos aqui. Pago muito mais aqui do que
pagaria em Lanzarote, mas agora tenho legitimidade para criticar o Governo e o
Estado ao qual pago os meus impostos. Fico colérica de cada vez que gastam mal
o dinheiro.
Como
é que essa formalização da relação com Portugal se conjuga com o ideal de uma
Ibéria sem fronteiras?
Sabe, no outro dia deram-me o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, por eu servir de
ponte de comunicação entre Espanha, Portugal e América Latina, segundo o júri.
Fiquei muito feliz. Como na “Jangada de Pedra”, creio que é para lá que
caminhamos, para a América Latina. E servir de agente de comunicação entre
culturas parece-me muito importante. Sugeri que mo entregassem em finais de
maio, na Feira do Livro de Madrid, cujo país-tema será Portugal. Não sou mulher
de salões nobres.