Por Wallace dos
Santos de Mora
(Professor do Departamento
de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da
UFRJ; Coordenador do Grupo de Pesquisa
OTAL - Observatório do Trabalho na América Latina)
Desde 2013, o Brasil vive um quadro de crise política
institucional dos mais profundos. A iminente queda de Michel Temer constitui-se
como apenas mais um capítulo dessa novela. Para discutirmos as denúncias contra
o presidente da República e termos mais dados para análise, sem cairmos em
previsões infundadas, é necessário clarear algumas constatações históricas
fundamentais da política brasileira:
1) a Rede Globo é ainda hoje o principal meio de formação de opinião dos
brasileiros sobre política;
2) historicamente, ela representou os interesses majoritários dos capitalistas
do país;
3) desconhecemos evidência de recuo de uma proposta dela com relação à retirada
de um presidente da República do seu cargo, seja através de golpe militar
explícito, de golpe institucional ou de impeachment.
Se admitimos que essas assertivas são verdadeiras, Michel Temer cairá em breve.
Se isso não acontecer, significará que a Rede Globo não representa mais os
interesses majoritários do grande capital, nem dos principais políticos no país
e seu império midiático está prestes a ruir.
Nesse sentido, é sempre importante fundamentarmos nossas hipóteses com base na
história política brasileira. Nos últimos 65 anos, a Rede Globo ocupou o espaço
de um dos principais atores políticos, sempre participando com grande poder de
decisão em momentos-chaves. Vejamos.
O jornal O Globo, quando ainda não havia sido constituída a poderosa Rede
Globo, foi um dos principais atores na desestabilização do governo de Getúlio
Vargas em 1954. Quando Vargas aceitou a proposta de João Goulart, então
escolhido para o Ministério do Trabalho, de dobrar o salário mínimo, foi gerada
uma convulsão nas elites empresariais do país. O Jornal O Globo, como porta-voz
desse setor, publicou várias denúncias contra o presidente da República,
acusando-o de mandar assassinar seu principal inimigo político, Carlos Lacerda.
Nesse mesmo ano, Getúlio Vargas cometeu o suicídio, alegando em
carta-testamento que forças ocultas o impediam de governar. Depois da morte de
Vargas, o jornal O Globo foi atacado por milhares de manifestantes no Rio de
Janeiro.
Dez anos mais tarde, entre 1961 e 64, o herdeiro de Vargas, João Goulart,
assumiu a presidência da República. Mais uma vez, o Jornal O Globo se opôs
veementemente ao seu governo e ajudou a preparar o golpe militar-civil que o
retiraria do poder em 31 de março de 1964, por meio de uma quartelada.
Durante os vinte anos da ditadura militar-civil foi construída a Rede Globo, um
grande império midiático, chegando a vários pontos do país e incluindo o seu
meio de comunicação mais importante: a televisão. Ela serviu de apoio
político-ideológico do governo dos generais e se mostrou como a maior formadora
de opinião no Brasil, difusora de informações, verdadeiras ou não, mas sua
principal prática foi esconder, e muito bem, as torturas, os assassinatos, as
perseguições, a corrupção, as falcatruas realizadas nesse período sombrio da
história brasileira. A Rede Globo exacerbou a autocensura jornalística, isto é,
antes da censura dos militares, o jornal só informava aquilo que agradaria ao
regime.
Com o fim do regime militar, teve início a luta pelas “Diretas Já” e a Globo
impediu que as imagens dos governados nas ruas fossem exibidas na TV e nos seus
jornais e rádios. A censura era seletiva: atentava exatamente contra os
movimentos populares. Nada de reivindicações poderia aparecer no seu império.
Quando era inevitável, tinha que aparecer como algo negativo. Essa foi e é a
lógica.
Depois do apoio incondicional à ditadura militar-civil e a tentativa de
esconder a campanha pelas “Diretas Já”, em 1984, a Rede Globo voltou sua
atuação intensa contra a criação de direitos sociais na Constituição de 1988,
atendendo às demandas das associações empresariais (FIESP, FIRJAN, CNI). Assim,
os trabalhadores, hoje, possuem menos direitos do que poderiam usufruir, em
função da ajuda da empresa de Roberto Marinho.
No ano seguinte, em 1989, na primeira campanha eleitoral pós-ditadura
militar-civil, a Globo apoiou totalmente o candidato Fernando Collor de Mello,
fazendo-o vencedor, mas sobretudo impedindo a vitória de seu principal inimigo
político, herdeiro de Vargas e de Goulart, Leonel Brizola, e também do
operário, Lula da Silva. Para tanto, o jornalismo global trabalhou intensamente
para desmerecer as candidaturas de seus inimigos e para vender Collor de Melo
como um salvador da pátria. Por consequência, a Rede Globo apoiava o
neoliberalismo no país.
Como a vitória de Collor havia sido por uma margem de votos muito pequena e
ainda vinha exercendo um governo bastante impopular com confisco da poupança da
população, diminuição dos lucros dos empresários etc., a Globo defendeu
abertamente o seu processo de impeachment. O objetivo era apaziguar o país, as
lutas sociais e resgatar sua supremacia nas comunicações depois de ajudar a eleger
um candidato extremamente antipopular. A manipulação da informação por parte da
Globo era percebida por grande parte da população e o apoio ao impeachment
também significava retomada da credibilidade. Em 1992, os militantes petistas
pediam as pessoas para assistirem a Globo!
Em 1994, a Globo apoiou incondicionalmente a candidatura de Fernando Henrique
Cardoso para a presidência e protegeu seu governo de uma tal maneira que não
era possível sair nenhuma crítica. Inclusive, em episódio incidentalmente gravado
por ela mesma, em uma entrevista com o então ministro da economia Rubens
Ricúpero, transmitida apenas para quem possuía antena parabólica, que havia
admitido que não tinha escrúpulos pois se prestava a fazer campanha aberta para
FHC como ministro e dizendo ainda: “o que é bom, a gente fatura, o que é ruim a
gente esconde”. Isso em plena campanha eleitoral. A Rede Globo não mostrou
nenhuma linha, em nenhum dos seus meios de comunicação, jornais, rádios, e TV,
sobre o assunto.
A Globo blindou o governo de FHC tal como blindou a ditadura militar-civil. Sob
o governo do PSDB, o Brasil viveu uma das piores crises econômicas de sua
história, com um dos maiores índices de desemprego e de queda do PIB, mas nada
disso era discutido, sequer apresentado nos meios de comunicação do império
midiático.
Apesar de tudo, os governados não são idiotas e perceberam que a crise
econômica era muito intensa, fruto das medidas neoliberais adotadas pelos
tucanos. Em função disso, ocorre o crescimento de votos nulos desde os anos
1990, com sua exacerbação depois dos protestos de 2013. Assim, em 1998, FHC foi
eleito com menos votos que a soma de votos em branco, nulos e abstenções. Uma
verdadeira vergonha.
Em 2002, Lula da Silva recebeu o apoio da Rede Globo e venceu as eleições. O PT
não era mais uma ameaça nem para os capitalistas nem para sua porta-voz
principal. Ao contrário, alguns setores acreditavam que uma política de
neodesenvolvimentismo, com fácil financiamento do BNDES e com intervenção do
Estado, injetando dinheiro em determinados setores, poderia alavancar a
economia. E assim aconteceu com a Odebrecht, com JBS, com os bancos e outros
setores. Isto não é uma contradição no capitalismo. Vários estudos mostram como
as grandes empresas dos países imperialistas cresceram com a ajuda deslavada do
Estado. A própria Globo foi favorecida com dinheiro público durante a ditadura
militar para instituir seu império. Durante o governo Vargas, a criação das
estatais tinha por objetivo favorecer o desenvolvimento do chamado capital nacional
através de vendas de produtos a preço de custo para as empresas. Sob o governo
de FHC, o BNDES cumpriu função equivalente no processo de privatização das
estatais, pois emprestava dinheiro para determinados grupos comprarem as
empresas antes públicas e depois passaram a cobrar pelos serviços prestados.
Outros processos semelhantes a esses foram as concessões para explorações de
rodovias. O Estado investia, deixava a estrada pronta com o dinheiro público e
depois concedia a uma empresa a exploração dos pedágios. Um verdadeiro escárnio
com o dinheiro público e a inteligência da população.
Portanto, atribuir esses problemas apenas aos governos petistas é tentar impor
uma visão seletiva que não colabora para entendermos amplamente o processo. A
crítica, portanto, correta e real deve ser feita a todo o sistema que pelo
menos desde a ditadura militar-civil favorece aos grandes capitalistas com
dinheiro dos governados, depois de muito suor, de muito trabalho explorado e
extraído para alavancar determinadas empresas em conluio com políticos no
poder.
Por fim, a Globo atuou com toda sua força para retirar a presidente Dilma
Rousseff da presidência em 2015/16, que por incrível que possa parecer vinha
realizando as reformas exigidas pelos grandes capitalistas, todavia em ritmo
mais lento do que aquele implementado pelo governo atual.
Embora Michel Temer viesse encaminhando uma reforma absolutamente reacionária e
conservadora, a Rede Globo fez campanha, assumindo inclusive, em editorial do
dia 19 de maio do jornal O Globo, que só restava ao presidente da República a
renúncia.
É importante entender que Michel Temer vinha sendo apoiado amplamente pelo
PMDB, PSDB, DEM e outros partidos menores. A base aliada estava bastante
sólida, ampla e unida no conservadorismo que há muito tempo não estava tão
organizado no Brasil. Tudo indicava que a reforma da previdência e trabalhista
passaria com bastante folga no Congresso. Por que, então, defender a retirada
de Temer? Por que desestabilizar ainda mais o país que já está em crise
econômica?
Se vale a pena aprendermos com as experiências do passado, poderíamos dizer que
o governo federal possuiu uma notória e grande rejeição popular. Assim, pode
ser que a Globo queira se livrar da pecha de quem colocou o Temer no poder,
venha resgatar sua credibilidade como a emissora que também retirou o mesmo do
poder. Curioso é que seria a repetição daquilo que aconteceu exatamente com
Collor de Mello.
Em tempos de poder crescente das redes sociais (Facebook, WhatsApp e outras)
com uma circulação imensa de ideias, o poder dos grandes conglomerados de mídia
está claramente em declínio, se eles perdem a credibilidade ficam fadados a
total desconstrução de seus impérios.
Outra hipótese diz respeito a desestabilizar o país, descredenciando todos os políticos
para que a própria população queira/aceite um outro golpe militar-civil. Com
Donald Trump no poder nos EUA, a conjuntura torna-se absolutamente favorável
para esse tipo de golpe. Um golpe no Brasil, seria o cenário ideal para que se
realizasse um golpe também na Venezuela e virasse de vez a visão política no
continente com um alinhamento natural ao governo autoritário e conservador dos
EUA. Ademais, um golpe militar-civil no Brasil acabaria com todas as denúncias
da operação “lava-jato” e dos procuradores que estão colocando na cadeia alguns
políticos. O Congresso seria fechado, mas todos os políticos que lá estão se
livrariam dos processos de corrupção de que fazem parte.
Além do mais, os militares já possuem um candidato “forte, nacionalista, impetuoso,
autoritário, conservador e que se apresenta como corajoso para destruir todas
as enormes mazelas da política e da sociedade brasileiras”. O golpe militar
pode servir para colocar um deputado federal, militar da reserva, no poder
Executivo. Trata-se de Bolsonaro.
Esse candidato está em plena campanha eleitoral, visitando quase que
diariamente todos os quartéis do país. Ele ainda possui uma enorme rede de
think tanks que divulgam suas ações pelas redes sociais, sendo amplamente
compartilhada por militares, seus familiares e amigos.
No pré-1964, a Globo apoiou o “quanto pior, melhor”, justamente para garantir o
caminho dos militares ao poder Executivo. Algo similar aconteceu com o
lançamento da candidatura de Fernando Collor em 1989. Como os políticos estão
muito desgastados, Collor apareceu como o candidato da antipolítica. Bolsonaro
é também apresentado dessa maneira, nem parece que ele é um político
profissional há muito tempo.
Por consequência, a Rede Globo mostra as falhas de todos os candidatos, mas
blindando exatamente Bolsonaro, tal como fez com FHC, com Collor e a ditadura
militar. Enquanto aponta as críticas de todos os candidatos e não fala de um
deles, é óbvio que o está favorecendo. Enquanto todos se desgastam, a
candidatura mais perigosa de todas vai sendo construída subliminarmente. O SBT
apresentou no último domingo, dia 21 de maio de 2017, um programa inteiro sobre
a candidatura de Bolsonaro, como um herói brasileiro, para tirar o país do que
ele chama de bagunça.
Em resumo, com base na história política brasileira, não podemos descartar a
preparação de um golpe militar-civil por parte da Globo e de seus oligopólios
de comunicação de massa aliados, nem o lançamento da candidatura de Bolsonaro
como salvador da pátria. Esses são os piores cenários para a política
brasileira, pois estaríamos sem liberdade de expressão e, portanto, nem esse
artigo poderia circular.
Por fim, com todas as denúncias apresentadas, as suspeitas populares de que os
políticos estão meramente a serviço dos interesses de alguns
empresários/banqueiros escolhidos, se confirmou. Os depoimentos ratificam que o
dinheiro público, que deveria servir a sua população que contribui, é
amplamente utilizado para favorecimento recíproco de políticos e empresários
por meio de corrupção e falcatruas. Aquela sensação de corrupção ampla e ativa
nos meios políticos e empresariais está agora mais que confirmada. Percebemos
também que com esse sistema, do jeito que está organizado, o voto dos
governados de pouco adianta, pois os políticos precisam de aliança com aqueles
que possuem dinheiro para suas campanhas eleitorais, sejam eles, empresários,
banqueiro, narcotraficantes ou qualquer outro, para comprar jornalistas,
juízes, televisões, rádios, apoios nas favelas e periferias.
Esse sistema oligárquico-representativo requer que o candidato faça de tudo
para se eleger, inclusive, prostituir suas ideias. Para ele, o importante é
ganhar a eleição. Trata-se daquela velha máxima: “os fins justificam os meios”,
que não deu certo em lugar nenhum. Assim, ele se vende para chegar e manter-se
no poder, mesmo que tivesse uma ideologia crítica a isso tudo.
Portanto, não adianta votar nesse ou naquele político. É necessário mudar todo
o sistema de organização política da sociedade, sem a qual, continuaremos a
transformar algumas pessoas, até com boas intenções, em verdadeiros canalhas
corruptos. É necessário jogar todo o sistema político-eleitoral existente no
país abaixo e construir um modelo marcado pelo total controle da população
sobre todos os rumos das verbas públicas, de seus direitos, enfim o
autogoverno. Único que é verdadeiramente oposto a todo tipo de ditadura. Um
autogoverno que viabilize a democratização dos meios de comunicação e que acabe
com os oligopólios de comunicação de massa para se garantir a verdadeira
liberdade de expressão.
Se queremos acabar sinceramente com o uso de dinheiro público para financiar
empresas e o dinheiro das empresas para financiar políticos inescrupulosos, se
queremos acabar com o compra e venda de votos no Congresso Nacional, com os
cargos do Estado virando moeda política, só existe um jeito: governo (Kratos ou
cracia) do povo (demos) ou democracia no seu sentido etimológico. Esse modelo
só será concretizado quando qualquer pessoa do povo puder exercer influência
sobre os rumos do dinheiro público que é construído pelo seu trabalho. Quando
sua voz for ouvida pelos demais, quando suas considerações forem levadas em
conta, e isso não acontece com um regime representativo no qual um eleito não
possui nenhuma obrigação de atender aos interesses dos governados, mas apenas
de responder aos financiadores de sua campanha eleitoral. Enfim, estamos vendo
no Brasil a total falência do regime representativo e ainda estão tentando nos
impor um regime ainda mais ditatorial, quando a melhor solução é a real
democracia, que significa autogoverno popular.