Prestes a
ser queimado na fogueira da inquisição, Giordano Bruno dizia que é prova de uma
mente inferior querer pensar como pensa a maioria somente porque a maioria é
maioria, pois, acrescentava ele, a verdade não muda só porque é, ou não é,
acreditada por uma maioria de pessoas. Mais próximo a nós, Gabriel García
Márquez, com a sua incursão literária pelos centenários anos solitários de
Macondo, foi lapidar: 'nunca me interessou uma ideia que não resista a muitos
anos de solidão'. Tendo presente estas duas menções e observando-se, como
analista, a conjuntura na Venezuela, uma ilação que se impõe é que, na questão venezuelana, uma das vítimas é a verdade. Eis uma
amostra de fatos representativos disso:
1) A
Venezuela tem a gasolina mais barata do mundo (conforme Global Petrol
Prices): cerca de R$ 0,03 por litro
(três centavos de real). Muitíssimo abaixo do preço brasileiro. A pauta exportadora
do país é basicamente petróleo; logo se o preço do barril cai no mercado
internacional, a economia venezuelana sofre drasticamente (foi o que ocorreu
nos últimos tempos). Nessa esfera, há dois equívocos do governo: um relacionado
à política de preços da gasolina, vendendo-a por um valor irrisório (sob a bem intencionada justificativa da equidade: o povo deveria se beneficiar do principal produto do
país), não sendo, portanto, uma fonte de receita significativa; 2) a falta de
um esforço indutor para que o país deixe de ter a sua economia assente numa base
primária. Dos equívocos políticos e administrativos do governo, opiniáticos transvestidos de
historiadores, sociólogos, economistas, etc., derivam “análises” (sobretudo nas
redes sociais) em que esses elementos objetivos da economia venezuelana não
aparecem, os impactos sobre o país da queda do preço do petróleo no mercado
internacional não são referidos, para, ao invés disso, assinalar que uma ditadura
sanguinária está matando cidadãos, esvaziando as prateleiras de supermercados, tendo-se, de outro lado, uma oposição inteira e genuinamente democrática. Isso
pode até alimentar as preferências ideológicas, mas quem acompanha de perto a
situação do país e/ou já lá esteve sabe que a coisa não é bem assim. Não está
limitada a esse simplismo.
2) As prateleiras vazias na Venezuela resultam, em dimensões consideráveis,
do boicote da rede de empresários varejistas, que escondem mercadorias para
desgastar o governo junto à população. Quem não faltou às aulas de História da
América Latina no século XX sabe que também se passou assim no Chile de
Allende.
3) É fato
que há setores da oposição que apoiam a organização de grupos armados e têm
provocado violência e mortes, atribuindo-as posteriormente ao governo, numa
ação que busca criar um ambiente de guerra civil. Depois vestem-se de branco nas manifestações. O caso Leopoldo Lopez,
fartamente documentado e demonstrado, é representativo disso: incitou as
chamadas “guarimbas”, manifestações violentíssimas que resultaram na morte de 43
pessoas.
4) É fato
que tem faltado votos à oposição venezuelana para chegar ao poder pela via
eleitoral. Desse modo, em 11 de abril de 2002, ela comandou um golpe de Estado que
derrubou o presidente do país, seguindo-se a dissolvição da Assembleia Nacional
e do Supremo Tribunal, e levando à cadeira presidencial Pedro Carmona,
presidente da Federação Venezuelana de Câmaras do Comércio (a instituição que, agora, comanda o boicote à distribuição de mercadorias, esvaziando as
prateleiras do país).
5) A Venezuela tem eleições presidenciais marcadas para
o próximo ano. E até o Papa Francisco já envidou esforços, através da
diplomacia do Vaticano, para que se respeite o calendário eleitoral. Mas a
oposição tem pressa; não deseja esperar até lá. Quer a deposição do presidente o
quanto antes. É sintomático que essa postura da oposição venezuelana seja
assumida quando, no mercado internacional, há sinalizações de recomposição do
preço do petróleo, que terá efeitos positivos sobre a economia do país, e pode
garantir fôlego ao governo. Afora isso, chega a ser hilário escutar declarações
advindas do governo brasileiro, começando pelo presidente e pelo ministro das
relações exteriores, a dizerem que a solução para crise venezuelana é a realização
imediata de eleições. Defendem para o país vizinho, que tem um governo
legitimamente eleito, o remédio que eles se negam a aplicar no Brasil governado por ilegítimos
e atolados na corrupção.
6) Last but not least, é ultrajante a
posição de determinados “intelectuais” sócio-midiáticos brasileiros, ou que se
esforçam para chegar a essa condição (e então 'precisam fazer média'), na abordagem da questão venezuelana.
Alguns casos beiram a irresponsabilidade, ao não terem em conta que, tudo o que
não precisamos neste momento que o Brasil vive, é de uma guerra civil em nossas
fronteiras, sobretudo considerando as peculiaridades que a fronteira do Brasil
com a Venezuela tem. Eles (os “intelectuais” sócio-midiáticos), contudo,
continuam a sua cruzada de opiniáticos, sendo pautados pela imprensa,
destilando juízos de valores como se de fato fossem, reproduzindo “análises”
facciosas em canais de televisão, jornais e redes sociais. Falta-lhes
independência analítica. Sobra-lhes a vontade de fazer da verdade uma das vítimas na
abordagem sobre a questão venezuelana.
Em sentido inverso vai o Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales (CLACSO), que, primando pela prudência, pelo equilíbrio e
pelo compromisso com o substrato de verdade que deve presidir a postura analítica,
emitiu nota sobre a conjuntura na Venezuela. Subscrevo-a, e reproduzo-a aí
abaixo.
El Comité Directivo del Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), reunido en la Ciudad de México,
expresa su más profunda preocupación por la escalada de violencia que está
viviendo Venezuela.
El país atraviesa una profunda crisis política,
económica y social a la que se le ha sumado un cada vez más alto número de
muertos, de heridos y detenciones que ponen en riesgo el orden democrático.
Desde CLACSO, hacemos un urgente llamado a la paz, al diálogo y a la definición
de una agenda consensuada de medidas que protejan, en primer lugar y de forma
inmediata, la vida de miles de ciudadanos y ciudadanas. Cuando muere un
venezolano o una venezolana no muere un chavista o un miembro de la oposición:
muere un ser humano. Una pérdida irreparable que podría haber sido preservada,
si hubiéramos sido capaces de preservar, ante todo, la dignidad y la
inviolabilidad de la vida, base de los derechos humanos sobre los que se debe
edificar cualquier democracia.
En Venezuela se han cometido muchísimos errores.
Los ha cometido la oposición y los ha cometido el gobierno. No será la
agudización de estos errores lo que sembrará el camino de la paz y del
entendimiento. Exaltar o radicalizar cualquiera de estas dos posiciones, no
hará más que profundizar un conflicto que derivará, muy probablemente, en más
muertes y en una guerra civil que despunta en el horizonte de un horror que
podemos y debemos evitar de manera urgente.
En noviembre de 2016, CLACSO realizó su reunión del
Comité Directivo en Caracas. Allí, exhortamos a profundizar todos los esfuerzos
necesarios para avanzar en el camino del diálogo y del acuerdo político abierto
y sincero. Desde aquel momento, todo ha empeorado. El desafío del entendimiento
y del compromiso, basado en la protección del orden constitucional y de la
seguridad ciudadana, siguen plenamente vigentes.
Condenamos la actitud irresponsable de algunos
gobiernos latinoamericanos y de organismos multilaterales, como la OEA,
quienes, en un momento de extrema tensión y habiendo centenas de vidas en
juego, en vez de contribuir a que primen el acuerdo, la sensatez y la
reconciliación, exacerban las tensiones, alimentan la voluntad
desestabilizadora o la prepotencia de quienes hoy se enfrentan, volviendo a
esta gran nación, un verdadero campo de batalla. Resulta lamentable que
nuestros países poco hayan aprendido de las experiencias todavía recientes de
incubación de la barbarie en una región en que, la fragilidad de la democracia,
sea por la razón que fuera, siempre ha afectado la vida de los más pobres, de
los más vulnerables y excluidos. Los gobiernos de América Latina podrían haber
tratado de contribuir mejor a la crisis venezolana, que echando gasolina en un
incendio que parece no tener otro limite que la destrucción generalizada de
todo lo que ese gran país y ese inmenso pueblo, han sabido construir
colectivamente a lo largo de las últimas décadas. Poco favor le hacemos hoy a
Venezuela, incitando al odio, profundizando las divisiones, cavando abismos que
separan y alejan cada vez más a los venezolanos y a las venezolanas del camino
de la paz y del diálogo democrático.
Condenamos la injerencia externa en Venezuela,
particularmente, la que ejerce el gobierno norteamericano con sus persistentes
y ahora renovadas ambiciones coloniales e imperiales sobre la región.
Condenamos también el ataque que sufre el país y, en
especial, su gobierno, por parte de monopolios mediáticos que desinforman,
distorsionan y ocultan el origen complejo de la profunda crisis vivida.
CLACSO se suma a quienes, desde dentro y fuera de Venezuela,
exigen la paz y el fin inmediato de todas las formas de violencia, sea quien
fuera que las ejerce. Exhortamos al gobierno y a la oposición a respetar la
Constitución de la República, dirimiendo sus diferencias en la más estricta
observancia a las leyes y al estado de derecho. La violencia no puede continuar
siendo el camino que el país encuentre para dirimir sus desacuerdos y para
edificar su futuro de prosperidad, justicia y libertad.
Estamos con la paz. Estamos con el diálogo y con la
democracia; con una democracia que se nutre y alimenta de la diversidad y de la
divergencia política, no que se derrumba impotente ante ellas.
Estamos hoy, más que nunca, con el pueblo venezolano.
CONSEJO LATINOAMERICANO DE CIENCIAS SOCIALES (CLACSO)