segunda-feira, 8 de maio de 2017

Na questão venezuelana, uma das vítimas é a verdade

Prestes a ser queimado na fogueira da inquisição, Giordano Bruno dizia que é prova de uma mente inferior querer pensar como pensa a maioria somente porque a maioria é maioria, pois, acrescentava ele, a verdade não muda só porque é, ou não é, acreditada por uma maioria de pessoas. Mais próximo a nós, Gabriel García Márquez, com a sua incursão literária pelos centenários anos solitários de Macondo, foi lapidar: 'nunca me interessou uma ideia que não resista a muitos anos de solidão'. Tendo presente estas duas menções e observando-se, como analista, a conjuntura na Venezuela, uma ilação que se impõe é que, na questão venezuelana, uma das vítimas é a verdade. Eis uma amostra de fatos representativos disso:

1) A Venezuela tem a gasolina mais barata do mundo (conforme Global Petrol Prices): cerca de R$ 0,03  por litro (três centavos de real). Muitíssimo abaixo do preço brasileiro. A pauta exportadora do país é basicamente petróleo; logo se o preço do barril cai no mercado internacional, a economia venezuelana sofre drasticamente (foi o que ocorreu nos últimos tempos). Nessa esfera, há dois equívocos do governo: um relacionado à política de preços da gasolina, vendendo-a por um valor irrisório (sob a bem intencionada justificativa da equidade: o povo deveria se beneficiar do principal produto do país), não sendo, portanto, uma fonte de receita significativa; 2) a falta de um esforço indutor para que o país deixe de ter a sua economia assente numa base primária. Dos equívocos políticos e administrativos do governo, opiniáticos transvestidos de historiadores, sociólogos, economistas, etc., derivam “análises” (sobretudo nas redes sociais) em que esses elementos objetivos da economia venezuelana não aparecem, os impactos sobre o país da queda do preço do petróleo no mercado internacional não são referidos, para, ao invés disso, assinalar que uma ditadura sanguinária está matando cidadãos, esvaziando as prateleiras de supermercados, tendo-se, de outro lado, uma oposição inteira e genuinamente democrática. Isso pode até alimentar as preferências ideológicas, mas quem acompanha de perto a situação do país e/ou já lá esteve sabe que a coisa não é bem assim. Não está limitada a esse simplismo.

2) As prateleiras vazias na Venezuela resultam, em dimensões consideráveis, do boicote da rede de empresários varejistas, que escondem mercadorias para desgastar o governo junto à população. Quem não faltou às aulas de História da América Latina no século XX sabe que também se passou assim no Chile de Allende.

3) É fato que há setores da oposição que apoiam a organização de grupos armados e têm provocado violência e mortes, atribuindo-as posteriormente ao governo, numa ação que busca criar um ambiente de guerra civil. Depois vestem-se de branco nas manifestações. O caso Leopoldo Lopez, fartamente documentado e demonstrado, é representativo disso: incitou as chamadas “guarimbas”, manifestações violentíssimas que resultaram na morte de 43 pessoas.

4) É fato que tem faltado votos à oposição venezuelana para chegar ao poder pela via eleitoral. Desse modo, em 11 de abril de 2002, ela comandou um golpe de Estado que derrubou o presidente do país, seguindo-se a dissolvição da Assembleia Nacional e do Supremo Tribunal, e levando à cadeira presidencial Pedro Carmona, presidente da Federação Venezuelana de Câmaras do Comércio (a instituição que, agora, comanda o boicote à distribuição de mercadorias, esvaziando as prateleiras do país).

5) A Venezuela tem eleições presidenciais marcadas para o próximo ano. E até o Papa Francisco já envidou esforços, através da diplomacia do Vaticano, para que se respeite o calendário eleitoral. Mas a oposição tem pressa; não deseja esperar até lá. Quer a deposição do presidente o quanto antes. É sintomático que essa postura da oposição venezuelana seja assumida quando, no mercado internacional, há sinalizações de recomposição do preço do petróleo, que terá efeitos positivos sobre a economia do país, e pode garantir fôlego ao governo. Afora isso, chega a ser hilário escutar declarações advindas do governo brasileiro, começando pelo presidente e pelo ministro das relações exteriores, a dizerem que a solução para crise venezuelana é a realização imediata de eleições. Defendem para o país vizinho, que tem um governo legitimamente eleito, o remédio que eles se negam a aplicar no Brasil governado por ilegítimos e atolados na corrupção.

6) Last but not least, é ultrajante a posição de determinados “intelectuais” sócio-midiáticos brasileiros, ou que se esforçam para chegar a essa condição (e então 'precisam fazer média'), na abordagem da questão venezuelana. Alguns casos beiram a irresponsabilidade, ao não terem em conta que, tudo o que não precisamos neste momento que o Brasil vive, é de uma guerra civil em nossas fronteiras, sobretudo considerando as peculiaridades que a fronteira do Brasil com a Venezuela tem. Eles (os “intelectuais” sócio-midiáticos), contudo, continuam a sua cruzada de opiniáticos, sendo pautados pela imprensa, destilando juízos de valores como se de fato fossem, reproduzindo “análises” facciosas em canais de televisão, jornais e redes sociais. Falta-lhes independência analítica. Sobra-lhes a vontade de fazer da verdade uma das vítimas na abordagem sobre a questão venezuelana.

Em sentido inverso vai o Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), que, primando pela prudência, pelo equilíbrio e pelo compromisso com o substrato de verdade que deve presidir a postura analítica, emitiu nota sobre a conjuntura na Venezuela. Subscrevo-a, e reproduzo-a aí abaixo. 

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El Comité Directivo del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), reunido en la Ciudad de México, expresa su más profunda preocupación por la escalada de violencia que está viviendo Venezuela.
El país atraviesa una profunda crisis política, económica y social a la que se le ha sumado un cada vez más alto número de muertos, de heridos y detenciones que ponen en riesgo el orden democrático. Desde CLACSO, hacemos un urgente llamado a la paz, al diálogo y a la definición de una agenda consensuada de medidas que protejan, en primer lugar y de forma inmediata, la vida de miles de ciudadanos y ciudadanas. Cuando muere un venezolano o una venezolana no muere un chavista o un miembro de la oposición: muere un ser humano. Una pérdida irreparable que podría haber sido preservada, si hubiéramos sido capaces de preservar, ante todo, la dignidad y la inviolabilidad de la vida, base de los derechos humanos sobre los que se debe edificar cualquier democracia.
En Venezuela se han cometido muchísimos errores. Los ha cometido la oposición y los ha cometido el gobierno. No será la agudización de estos errores lo que sembrará el camino de la paz y del entendimiento. Exaltar o radicalizar cualquiera de estas dos posiciones, no hará más que profundizar un conflicto que derivará, muy probablemente, en más muertes y en una guerra civil que despunta en el horizonte de un horror que podemos y debemos evitar de manera urgente.
En noviembre de 2016, CLACSO realizó su reunión del Comité Directivo en Caracas. Allí, exhortamos a profundizar todos los esfuerzos necesarios para avanzar en el camino del diálogo y del acuerdo político abierto y sincero. Desde aquel momento, todo ha empeorado. El desafío del entendimiento y del compromiso, basado en la protección del orden constitucional y de la seguridad ciudadana, siguen plenamente vigentes.
Condenamos la actitud irresponsable de algunos gobiernos latinoamericanos y de organismos multilaterales, como la OEA, quienes, en un momento de extrema tensión y habiendo centenas de vidas en juego, en vez de contribuir a que primen el acuerdo, la sensatez y la reconciliación, exacerban las tensiones, alimentan la voluntad desestabilizadora o la prepotencia de quienes hoy se enfrentan, volviendo a esta gran nación, un verdadero campo de batalla. Resulta lamentable que nuestros países poco hayan aprendido de las experiencias todavía recientes de incubación de la barbarie en una región en que, la fragilidad de la democracia, sea por la razón que fuera, siempre ha afectado la vida de los más pobres, de los más vulnerables y excluidos. Los gobiernos de América Latina podrían haber tratado de contribuir mejor a la crisis venezolana, que echando gasolina en un incendio que parece no tener otro limite que la destrucción generalizada de todo lo que ese gran país y ese inmenso pueblo, han sabido construir colectivamente a lo largo de las últimas décadas. Poco favor le hacemos hoy a Venezuela, incitando al odio, profundizando las divisiones, cavando abismos que separan y alejan cada vez más a los venezolanos y a las venezolanas del camino de la paz y del diálogo democrático.
Condenamos la injerencia externa en Venezuela, particularmente, la que ejerce el gobierno norteamericano con sus persistentes y ahora renovadas ambiciones coloniales e imperiales sobre la región. 
Condenamos también el ataque que sufre el país y, en especial, su gobierno, por parte de monopolios mediáticos que desinforman, distorsionan y ocultan el origen complejo de la profunda crisis vivida. 
CLACSO se suma a quienes, desde dentro y fuera de Venezuela, exigen la paz y el fin inmediato de todas las formas de violencia, sea quien fuera que las ejerce. Exhortamos al gobierno y a la oposición a respetar la Constitución de la República, dirimiendo sus diferencias en la más estricta observancia a las leyes y al estado de derecho. La violencia no puede continuar siendo el camino que el país encuentre para dirimir sus desacuerdos y para edificar su futuro de prosperidad, justicia y libertad.
Estamos con la paz. Estamos con el diálogo y con la democracia; con una democracia que se nutre y alimenta de la diversidad y de la divergencia política, no que se derrumba impotente ante ellas. 
Estamos hoy, más que nunca, con el pueblo venezolano.

CONSEJO LATINOAMERICANO DE CIENCIAS SOCIALES (CLACSO)