Observando os extremismos e os posicionamentos beligerantes recentes no
Brasil, impulsionando agressões, o “desejo de matar e esfolar”, que muitas
vezes não respeita nem a privacidade familiar das pessoas e nem mesmo se contem
diante de inocentes crianças, é de se pensar em alguns “fatos intrigantes”,
como: 1) a ideia de que ‘Deus é brasileiro’, realçada para enfatizar o forte
caráter religioso do povo brasileiro; 2) a associação geralmente feita entre
religião e bondade, que tornaria as pessoas que têm uma crença religiosa mais “generosas”,
e assim moralmente superiores em relação a quem não tem nenhuma. Na verdade,
tendo em conta o momento vivido pelo Brasil, a conclusão que sobressai destas
duas premissas não é um “silogismo” que as confirma, mas, sim, a sua refutação.
De resto, coloca a descoberto analiticamente a hipocrisia que permeia
determinadas proclamações religiosas. Isso me faz lembrar de pesquisas recentes
sobre religião, ateus, agnósticos e generosidade. Segue uma amostra aí abaixo.
The Good Samaritan, do pintor José Tapiro y Baro |
Por Javier Salas
Se
alguma vez apanhar de assaltantes enquanto vai de Jerusalém a Jericó, é melhor que depois
passe por ali um samaritano pouco religioso. Porque ser religioso ou ateu não deixa as pessoas melhores, mas
parece condicionar a forma de entender a generosidade e o altruísmo com
desconhecidos. E as pessoas menos religiosas têm uma tendência mais espontânea
a ajudar o próximo, segundo os últimos estudos.
menos propensas a ser
generosas, que existe uma correlação inversa entre o altruísmo e a educação em
valores identificados com a fé. Por meio de um experimento realizado com
menores de 5 a 12 anos em seis países culturalmente muito diferentes (Canadá,
EUA, Jordânia, Turquia, África do Sul e China), os pesquisadores descobriram
que os estudantes que não recebem valores religiosos em suas
famílias são notavelmente mais generosos quando se trata de compartilhar seus
tesouros com outras crianças anônimas.
“É
importante destacar que as crianças mais altruístas vêm de famílias ateias e
não religiosas”, destaca o chefe do estudo, Jean Decety, neurocientista e psicólogo da
Universidade de Chicago. “Espero que as pessoas comecem a entender que a
religião não é uma garantia para a moralidade, e que religião e
moralidade são duas coisas diferentes”, acrescenta ao ser questionado da
importância desse estudo.
Além
disso, na pesquisa perguntava-se aos pais se seus filhos eram mais ou menos
generosos e, curiosamente, os pais e mães mais religiosos acreditam que estão
criando uma prole mais solidária: os religiosos dão como certo que seus filhos
são mais altruístas, mesmo que na hora da verdade compartilhem menos. Outra
descoberta importante é que a religiosidade faz com que as crianças sejam mais
severas na hora de condenar danos interpessoais, como por exemplo os empurrões.
“Essa última descoberta encaixa bem com pesquisas anteriores com adultos: a
religiosidade está diretamente relacionada com o aumento da intolerância e das atitudes
punitivas contra delitos interpessoais, incluindo a probabilidade de apoiar
penas mais duras”. Em resumo, os menores criados em ambientes religiosos seriam
um pouco menos generosos, mas mais propensos a castigar quem se comporta mal.
Dois
anos atrás, o sociólogo de Stanford Robb Willer publicou um estudo no
qual, através de experimentos, mostrou que a compaixão levava as pessoas não
religiosas a serem mais generosas enquanto nas mais apegadas à fé a compaixão
não influenciava em seu nível de generosidade. “Para os menos religiosos, a
força de sua conexão emocional com outra pessoa é fundamental para decidir se
irão ajudá-la ou não”, afirmou Willer na época. “Os mais religiosos, pelo
contrário, fundamentam menos sua generosidade nas emoções e mais em outros fatores,
como o dogma, a identidade de grupo e a reputação”.
Há
séculos diferentes autores abordam o debate sobre se a religião, acreditar e
temer a Deus, provoca nos humanos uma atitude mais bondosa, mais solidária,
mais empática com o sofrimento dos demais. Nos últimos anos, entretanto, a
pesquisa psicológica revelou várias tendências consistentes, como o fato dos
religiosos motivarem seu altruísmo em valores diferentes e usarem critérios
distintos para determinar quais ações são imorais.
Há séculos diferentes autores abordam o
debate sobre se a religião, acreditar e temer a Deus, provoca nos humanos uma
atitude mais bondosa, mais solidária, mais empática com o sofrimento dos
demais. Nos últimos anos, entretanto, a pesquisa psicológica revelou várias
tendências consistentes, como o fato dos religiosos motivarem seu altruísmo em
valores diferentes e usarem critérios distintos para determinar quais ações são
imorais.
A
ideia de que a religião consolida o altruísmo, entretanto, aparece em diversos
estudos, como os que vêm sendo publicados por autores como Azim Shariff, ao demonstrar na revista Science a
importância da fé na
hora de se mostrar mais generoso com os demais. Em seus trabalhos testou o
altruísmo das pessoas depois de fazê-las pensar (consciente e
inconscientemente) em Deus e suas manifestações: aqueles que liam sobre Ele e
assistiam vídeos relacionados antes do teste se mostravam notavelmente mais
generosos do que os que não o faziam. As motivações não eram a compaixão e a
empatia, mas ajudavam mais ao próximo ao ter presente a figura divina.
Por
isso, Shariff considera que os resultados do estudo em crianças publicados na
sexta-feira “parecem superficialmente contraditórios” com seu trabalho. Mas de
grande importância: “Acho que são conclusões fascinantes a partir de um esforço
impressionante. Esse estudo nos obriga a repensar seriamente as coisas a fim de
conciliar o que sabemos”, resume Shariff, da Universidade do Oregon.
O
difícil seria explicar por que ateus e religiosos (ou pouco religiosos frente a
muito religiosos) agem de forma diferente quando se trata de pensar nos demais.
Mesmo que não existam respostas conclusivas, tanto Shariff como Decety
mencionam uma certa licença moral outorgada por aqueles que já rezam pelos
demais: se já cubro a quota de generosidade em minha paróquia, isso me exime de
precisar ser altruísta com desconhecidos. “É uma falha mental particularmente
interessante: realizando algo bom, que ajuda a fortalecer nossa própria imagem
positiva, se desinibe o comportamento egoísta e, portanto, somos mais propensos
a tomar decisões imorais”, explica Decety, um dos maiores especialistas em
empatia. Isso explicaria o fato de crianças criadas em lares religiosos, que se
percebem como mais sensíveis e justas, serem na verdade as menos altruístas
entre seus colegas de classe.
Shariff,
mais crítico, considera que isso tem uma leitura inversa. “Eles se limitam a um
tipo específico de generosidade espontânea. É possível que alguém seja
enormemente altruísta doando 20% de seus ganhos à caridade. E como estruturou
seu altruísmo dessa forma, não se sente obrigado a doar a um mendigo na rua que
lhe pede dinheiro de forma espontânea, ou a um psicólogo que lhe dá a
oportunidade de compartilhar com alguém em um experimento”.
Na
parábola de Jesus descrita por Lucas nos Evangelhos, era o sacerdote a não se
aproximar do necessitado, e somente o samaritano parou para ajudá-lo. Mas não
sabemos quem era o mais religioso dos dois, e se isso teve alguma relação com a
atitude tomada.
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Fonte: El Pais. Título original: 'O bom samaritano é ateu'.