quinta-feira, 11 de maio de 2017

A invenção de uma narrativa: semiótica, convencimento e a construção do super-herói amoral

O texto aí abaixo, escrito por uma autoridade acadêmica no assunto, realça, com profundidade e erudição, uma amostra do grau de entorpecimento mental que o Brasil está a viver. E que faz com que “especialistas da ignorância” se assanhem. Permito-me uma metáfora, lembrando Raul Seixas e suas ‘Aventuras na Cidade de Thor’: Tem gente que passa a vida inteira/Travando a inútil  luta com os "galhos"/Sem saber que é lá no tronco que tá o coringa do baralho!  Metáforas são metáforas; ficam ao alcance de cada um.
  



Por Wilson Roberto Vieira Ferreira
(Mestrado em Comunicação Contemporânea, Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais  - USP)

Nesses últimos anos em que a grande mídia colocou em ação uma bem sucedida guerra semiótica (vazamentos/repercussão em jornais e revistas semanais nos finais de semana/replicação da pauta nos telejornais ao longo da semana), nunca tivemos capas de revistas informativas semanais tão sinceras, sem a necessidade de subterfúgios linguísticos e retóricos, como as da Veja e IstoÉ nesta semana.
Aliás, desta vez, a retórica veio não para esconder mas para tornar explícito o que todo mundo já sabe: Sérgio Moro não se trata mais de um cidadão investido de autoridade pública para exercer uma atividade jurisdicional, julgando em uma posição equidistante entre o réu e a promotoria – como se espera no exercício do Estado de Direito.
As capas revelam alguém em cruzada messiânica (supostamente o herói) contra o vilão; o jovem contra o velho, o Bem contra o Mal, a moralidade contra a imoralidade. Alguma coisa parecida como o Juiz Dredd que prendia, julgava e executava os criminosos de uma megalópole no futuro – Dredd, 2012.
A revista IstoÉ  faz analogia com algo como “a luta do século” ou “a grande esperança branca” no box – como em 1910 em um EUA divididos racialmente no qual Jim Jeffreys (branco) enfrentaria o primeiro ídolo esportivo negro, Jack Johnson.
E o mais interessante, a analogia que a Veja faz com a luta livre mexicana – uma verdadeira paixão daquele país, na qual os lutadores mascarados se vestem como super-heróis: animais, deuses astecas e heróis antigos. Marcadas por movimentos aéreos, nas cordas e sopapos espetaculares, são narrativas maniqueístas e ponto alto de muitos pacotes turísticos.

Uma primeira leitura

IstoÉ é ainda mais direta: às 14 hora do dia 10/05 o fórum de Curitiba se transformará em um ringue de box.
Enquanto a Veja associa o evento não apenas a um simples confronto: como uma luta livre mexicana, está envolvida com um rico simbolismo não só político, mas também mitológico.
A leitura imediata dessas históricas capas oferece as seguintes conclusões mais óbvias:
(a) O ínclito juiz de primeira instância Sérgio Moro há muito deixou o campo do Direito para ingressar no campo do messianismo político. Afinal, para enfrentar uma figura igualmente messiânica e sebastiana como Lula, somente um oponente que o enfrente no mesmo terreno do imaginário e da mitologia. Todas as eletrizantes ações da Lava Jato que não precisaram seguir as regras dos processos comuns (com diziam, “problemas inéditos sugerem soluções inéditas”), chegam ao ápice onde todos os discursos, álibis e tergiversações do juiz e promotores  acabaram – agora se trata de “matar ou morrer”, como Gary Cooper no clássico filme western High Noon (Matar ou Morrer, 1952).

(b) Numa capa de revista a luta de box, na outra luta livre mexicana. De forma explícita, dessa vez vemos como os “aquários” das redações da grande mídia estão sintonizados e em contato permanente para unificar pautas e viés – uma verdadeira isonomia na aplicação semiótica.

(c) Até que ponto interessa à mídia corporativa a extrema polarização para interditar qualquer debate político? – enquanto a opinião pública é clivada pelo Fla x Flu político, as reformas trabalhistas e previdenciárias são enfiada a fórceps como uma racionalidade econômica inevitável. 

Segunda leitura: o super-herói amoral

Mas há algo ainda mais insidioso e preocupante: a polarização pela polarização,  por si só, não teria o mesmo efeito sem uma espécie de cimento ideológico e imaginário – a construção da mitologia de um tipo de super-herói bem específico que toma as HQs e telas do cinema desde a Segunda Guerra Mundial – o super-herói amoral
O discurso da moralização que parece dar sustentação imaginária a capa de Veja e IstoÉ é mero álibi, pretexto, para impor um novo modelo heroico.
Novo pelo menos por essas plagas: o modelo de heroísmo amoral: um herói  que não mais se orienta pelos princípios do herói épico grego: aquele que vive numa posição intermediária entre os deuses e os homens. Em geral filho de um deus e uma mortal (Hércules, Perseu) reúne atributos que transcendem as condições do homem comum: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência, etc. Um herói tipicamente guiado por ideais nobres (liberdade, fraternidade, sacrifício, moral, paz) com atributos necessários para superar problemas de dimensões épicas.
E que também não mais se orienta pelo modelo trágico, também grego: aquele que encontra o infortúnio por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que a sua queda foi o resultado de suas próprias ações, e não por causa de acontecimentos aleatórios. Como um nobre estoico, aceita a queda com dignidade e aprende com ela.

Super-herói libertado

Mas não no caso do intocável juiz da primeira instância. Sérgio Moro é um herói libertado das coerções éticas e morais de uma ordem divina ou transcendente. Seja essa ordem Deus ou o Estado de Direito.
É agora o super-herói da “guerra total” (“extermínio e destruição em massa”) e do messiânico “destino manifesto” – o destino lhe concedeu uma missão que está além do Bem e do Mal. E acima do Bem e do Mal só existem a Justiça e a Verdade.
Esse novo modelo de herói (o Super-Herói) historicamente foi criado pela máquina de propaganda nazista para legitimar o holocausto: o herói nazi é aquele cujas ações se orientam unicamente pelos ideais de Verdade e Justiça que devem ser buscados cegamente, nem que seja ao custo da morte de milhões de vítimas. Seu heroísmo está na proporção direta da ausência do sentimento de culpa, compaixão ou empatia. Morte e destruição são efeitos colaterais justificáveis na luta pela Justiça e Verdade.
Os esforços de contrapropaganda dos EUA copiaram esse modelo de super-herói nos quadrinhos da Marvel e DC Comics – os super-heróis parecem nunca ter consciência das consequências das lutas contra vilões em metrópoles. Tudo é um verdadeiro espetáculo de destruições e perdas civis, justificável pela nova ordem da Justiça – sobre isso clique aqui.
O irônico paradoxo: nem que, para impor a Justiça, o super-herói tenha que destruir o mundo ao derrotar aqueles que querem também destruir o mundo.
Esse mesmo paradoxo do super-herói amoral pode ser encontrado na ineficiência econômica da Lava Jato: sob a justificativa de uma suposta limpeza da política e da economia, a Operação até aqui gerou prejuízos econômicos três vezes superiores do que aquilo que ela avalia ter sido desviado com corrupção.
Entre 2015 e 2016, a Operação foi a responsável pela perda direta e indireta de cerca de 3,5 milhões de postos de trabalho. Sem falar nos prejuízos geopolíticos com a destruição da cadeia produtiva do petróleo, naval e nuclear.
Uma irônica reversão que o pensador Jean Baudrillard chamou certa vez de “hipertelia”: efeito perverso de um sistema que toma um grau tão elevado de complexidade que torna-se inútil, inviabilizando os próprios objetivos iniciais - sobre isso clique aqui.

Mal necessário e efeitos colaterais

Mas pouco importa para o inabalável Sergio Moro e a grande mídia (ao lado da banca financeira, são os únicos setores que prosperam em conjunturas de crise e instabilidade): tudo é apenas um mal necessário, efeitos colaterais doloridos mas necessários para a “limpeza ética” da Política.
A promoção do juiz de Curitiba em herói de luta livre mexicana carrega toda essa carga imaginário-ideológica de um super-herói que, em nome da Verdade e da Justiça, nada o detém – nem a destruição do próprio País que almeja “limpar”. Na luta-livre os próprios espectadores estão ameaçados com a queda dos oponentes, jogados do alto do ringue na direção das cadeiras da plateia.
Qual a eficácia de toda essa manobra semiótica das capas de revistas? Isso pode ser verificado na autêntica Síndrome de Estocolmo de muitas opiniões nas redes sociais sobre a necessidade da reforma da Previdência a todo custo: “se é para acabar com as aposentadorias duplicadas dos políticos, eu aceito!”.
Promover um juiz de primeira instância a Super-Herói (com direito a adereços de bonecos do Moro vestido com as tradicionais roupas spandex nas manifestações de rua) é o cimento ideológico necessário para a opinião pública se resignar a ver a própria carne cortada com as supostas “reformas”.
Talvez o futuro do País guarde para todos nós uma terra arrasada. Mas tudo foi em nome da Justiça e da Verdade: passar o “País a limpo” apoiando super-heróis amorais.