O texto aí abaixo, escrito por uma autoridade acadêmica
no assunto, realça, com profundidade e erudição, uma amostra do grau de
entorpecimento mental que o Brasil está a viver. E que faz com que “especialistas
da ignorância” se assanhem. Permito-me uma metáfora, lembrando Raul Seixas e
suas ‘Aventuras na Cidade de Thor’: Tem gente que passa a vida inteira/Travando a inútil luta com os "galhos"/Sem saber que é lá no tronco que tá o
coringa do baralho! Metáforas
são metáforas; ficam ao alcance de cada um.
Por Wilson
Roberto Vieira Ferreira
(Mestrado em
Comunicação Contemporânea, Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais - USP)
Nesses
últimos anos em que a grande mídia colocou em ação uma bem sucedida guerra
semiótica (vazamentos/repercussão em jornais e revistas semanais nos finais de
semana/replicação da pauta nos telejornais ao longo da semana), nunca tivemos
capas de revistas informativas semanais tão sinceras, sem a necessidade de
subterfúgios linguísticos e retóricos, como as da Veja e IstoÉ nesta
semana.
Aliás,
desta vez, a retórica veio não para esconder mas para tornar explícito o que
todo mundo já sabe: Sérgio Moro não se trata mais de um cidadão investido de
autoridade pública para exercer uma atividade jurisdicional, julgando em uma
posição equidistante entre o réu e a promotoria – como se espera no exercício
do Estado de Direito.
As
capas revelam alguém em cruzada messiânica (supostamente o herói) contra o
vilão; o jovem contra o velho, o Bem contra o Mal, a moralidade contra a
imoralidade. Alguma coisa parecida como o Juiz Dredd que prendia, julgava e
executava os criminosos de uma megalópole no futuro – Dredd, 2012.
A
revista IstoÉ faz analogia com algo como “a luta do
século” ou “a grande esperança branca” no box – como em 1910 em um EUA divididos
racialmente no qual Jim Jeffreys (branco) enfrentaria o primeiro ídolo
esportivo negro, Jack Johnson.
E
o mais interessante, a analogia que a Veja faz com a luta
livre mexicana – uma verdadeira paixão daquele país, na qual os lutadores
mascarados se vestem como super-heróis: animais, deuses astecas e heróis
antigos. Marcadas por movimentos aéreos, nas cordas e sopapos espetaculares,
são narrativas maniqueístas e ponto alto de muitos pacotes turísticos.
Uma
primeira leitura
A IstoÉ é
ainda mais direta: às 14 hora do dia 10/05 o fórum de Curitiba se transformará
em um ringue de box.
Enquanto
a Veja associa o evento não apenas a um simples confronto:
como uma luta livre mexicana, está envolvida com um rico simbolismo não só
político, mas também mitológico.
A
leitura imediata dessas históricas capas oferece as seguintes conclusões mais
óbvias:
(a)
O ínclito juiz de primeira instância Sérgio Moro há muito deixou o campo do
Direito para ingressar no campo do messianismo político. Afinal, para enfrentar
uma figura igualmente messiânica e sebastiana como Lula, somente um oponente
que o enfrente no mesmo terreno do imaginário e da mitologia. Todas as
eletrizantes ações da Lava Jato que não precisaram seguir as regras dos
processos comuns (com diziam, “problemas inéditos sugerem soluções inéditas”),
chegam ao ápice onde todos os discursos, álibis e tergiversações do juiz e
promotores acabaram – agora se trata de “matar ou morrer”, como Gary
Cooper no clássico filme western High Noon (Matar ou Morrer,
1952).
(b)
Numa capa de revista a luta de box, na outra luta livre mexicana. De forma
explícita, dessa vez vemos como os “aquários” das redações da grande mídia
estão sintonizados e em contato permanente para unificar pautas e viés – uma
verdadeira isonomia na aplicação semiótica.
(c)
Até que ponto interessa à mídia corporativa a extrema polarização para
interditar qualquer debate político? – enquanto a opinião pública é clivada
pelo Fla x Flu político, as reformas trabalhistas e previdenciárias são enfiada
a fórceps como uma racionalidade econômica inevitável.
Segunda
leitura: o super-herói amoral
Mas
há algo ainda mais insidioso e preocupante: a polarização pela polarização, por si só, não teria o mesmo efeito sem uma
espécie de cimento ideológico e imaginário – a construção da mitologia de um
tipo de super-herói bem específico que toma as HQs e telas do cinema desde a
Segunda Guerra Mundial – o super-herói amoral.
O discurso da moralização que parece dar sustentação imaginária a capa de Veja e IstoÉ é mero álibi, pretexto, para impor um novo modelo heroico.
O discurso da moralização que parece dar sustentação imaginária a capa de Veja e IstoÉ é mero álibi, pretexto, para impor um novo modelo heroico.
Novo
pelo menos por essas plagas: o modelo de heroísmo amoral: um
herói que não mais se orienta pelos princípios do herói
épico grego: aquele que vive numa
posição intermediária entre os deuses e os homens. Em geral filho de um deus e
uma mortal (Hércules, Perseu) reúne
atributos que transcendem as condições do homem comum: fé, coragem,
determinação, renúncia (martírio), paciência, etc. Um herói tipicamente guiado
por ideais nobres (liberdade, fraternidade, sacrifício, moral, paz) com
atributos necessários para superar problemas de dimensões épicas.
E
que também não mais se orienta pelo modelo trágico, também grego: aquele que encontra o infortúnio por um erro de
julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que a sua queda foi o
resultado de suas próprias ações, e não por causa de acontecimentos aleatórios.
Como um nobre estoico, aceita a queda com dignidade e aprende com ela.
Super-herói libertado
Mas não no caso do intocável juiz da primeira instância. Sérgio Moro é
um herói libertado das coerções éticas e morais de uma ordem divina ou
transcendente. Seja essa ordem Deus ou o Estado de Direito.
É agora o super-herói da “guerra total” (“extermínio e destruição em
massa”) e do messiânico “destino manifesto” – o destino lhe concedeu uma missão
que está além do Bem e do Mal. E acima do Bem e do Mal só existem a Justiça e a
Verdade.
Esse novo modelo de herói (o Super-Herói) historicamente foi criado pela
máquina de propaganda nazista para legitimar o holocausto: o herói nazi é
aquele cujas ações se orientam unicamente pelos ideais de Verdade e Justiça que
devem ser buscados cegamente, nem que seja ao custo da morte de milhões de
vítimas. Seu heroísmo está na proporção direta da ausência do sentimento de
culpa, compaixão ou empatia. Morte e destruição são efeitos colaterais
justificáveis na luta pela Justiça e Verdade.
Os
esforços de contrapropaganda dos EUA copiaram esse modelo de super-herói nos
quadrinhos da Marvel e DC Comics – os super-heróis parecem nunca ter
consciência das consequências das lutas contra vilões em metrópoles. Tudo é um
verdadeiro espetáculo de destruições e perdas civis, justificável pela nova
ordem da Justiça – sobre isso clique aqui.
O
irônico paradoxo: nem que, para impor a Justiça, o super-herói tenha que
destruir o mundo ao derrotar aqueles que querem também destruir o mundo.
Esse
mesmo paradoxo do super-herói amoral pode ser encontrado na ineficiência
econômica da Lava Jato: sob a justificativa de uma suposta limpeza da política
e da economia, a Operação até aqui gerou prejuízos econômicos três vezes
superiores do que aquilo que ela avalia ter sido desviado com corrupção.
Entre
2015 e 2016, a Operação foi a responsável pela perda direta e indireta de cerca
de 3,5 milhões de postos de trabalho. Sem falar nos prejuízos geopolíticos com
a destruição da cadeia produtiva do petróleo, naval e nuclear.
Uma
irônica reversão que o pensador Jean Baudrillard chamou certa vez de
“hipertelia”: efeito perverso de um sistema que toma um grau tão elevado de
complexidade que torna-se inútil, inviabilizando os próprios objetivos iniciais
- sobre isso clique aqui.
Mal
necessário e efeitos colaterais
Mas
pouco importa para o inabalável Sergio Moro e a grande mídia (ao lado da banca
financeira, são os únicos setores que prosperam em conjunturas de crise e
instabilidade): tudo é apenas um mal necessário, efeitos colaterais doloridos
mas necessários para a “limpeza ética” da Política.
A
promoção do juiz de Curitiba em herói de luta livre mexicana carrega toda essa
carga imaginário-ideológica de um super-herói que, em nome da Verdade e da
Justiça, nada o detém – nem a destruição do próprio País que almeja “limpar”.
Na luta-livre os próprios espectadores estão ameaçados com a queda dos
oponentes, jogados do alto do ringue na direção das cadeiras da plateia.
Qual
a eficácia de toda essa manobra semiótica das capas de revistas? Isso pode ser
verificado na autêntica Síndrome de Estocolmo de muitas opiniões nas redes
sociais sobre a necessidade da reforma da Previdência a todo custo: “se é para
acabar com as aposentadorias duplicadas dos políticos, eu aceito!”.
Promover
um juiz de primeira instância a Super-Herói (com direito a adereços de bonecos
do Moro vestido com as tradicionais roupas spandex
nas manifestações de rua) é o cimento ideológico necessário para a opinião
pública se resignar a ver a própria carne cortada com as supostas “reformas”.
Talvez
o futuro do País guarde para todos nós uma terra arrasada. Mas tudo foi em nome
da Justiça e da Verdade: passar o “País a limpo” apoiando super-heróis amorais.