Muitas das análises sobre Donald Trump e o resultado das eleições estadunidenses são frágeis, bastante frágeis. Nalguns casos raquíticas e rasas mesmo. Lugares-comuns, jargões, no estilo palavras de ordem. E o que é mais preocupante: por vezes, vindas de quem não deveria assim proceder. Ora, em fenômenos que envolvem transmutação discursiva coletiva (combinada com processos de identificação), não se vai muito longe, na compreensão dos significados, se não se lançar mão, por exemplo, de ferramentas microssociológicas (relativas aos elementos de agregação) e de dispositivos da psicologia de massas. Os 'caminhos da ideologia são misteriosos'. O mesmo poder-se-ia dizer (sempre a título analítico) em relação a dois 'fenômenos brasileiros' em evidência no momento: um religioso, em torno do (neo)pentecostalismo, e outro político, o qual incide sobre a movimentação em volta do deputado Jair Bolsonaro. Não perceber, dentre outras coisas, que, nas periferias, igrejas evangélicas constituem esferas de agregação e de pertença identitária, com todas as consquências que daí decorrem, é um equívoco. Sobre a movimentação em volta do deputado Bolsonoro, convém não subestimá-la. Aliás, pode haver até mesmo pontos de conexão entre ela e o (neo)pentecostalismo, conforme foi visto recentemente na eleição que elegeu o bispo Marcelo Crivella prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Não entender devidamente fenômenos como esses, assim como o caso Trump, significa tropeçar em posições políticas que se pretenda adotar. Ficando-se pelos lugares-comuns. Zizek tem sido uma exceção na abordagem da eleição estadunidense, mas equivocadamente foi acusado de 'o seu nariz não sentir o odor exalado por Trump'. Penso diferente. E, a meu ver, o artigo dele aí abaixo é representativo de uma análise a ser tomada em conta.
Por Slavoj Zizek
Muitos dos eleitores pobres
dizem que Trump fala por eles. Como é possível que eles se reconheçam na voz de
um bilionário cujas especulações e falências são uma das causas da miséria
deles?
Como os caminhos de Deus, os caminhos da ideologia são
misteriosos... (se bem que, incidentalmente, alguns dados sugiram que, no caso
de Trump, a maioria de seus partidários não é de baixa renda). Quando os
partidários de Trump são tachados de "escória branca", é fácil
discernir nessa designação o medo das classes baixas que caracteriza a elite
liberal.
Mas como Trump se tornou a voz de tantas pessoas
"honestas e decentes"?
Trump, sozinho, arruinou o Partido Republicano,
antagonizando tanto o velho establishment partidário quanto os fundamentalistas
cristãos; o que permanece como seu núcleo de apoio são os portadores da raiva
populista versus o establishment, e esse núcleo é desprezado pelos liberais,
que o chamam de "escória branca".
Mas não são precisamente essas as pessoas que deveriam
ser atraídas para a causa esquerdista radical? (Foi o que Bernie Sanders
realizou.)
A derrota de Hillary Clinton foi o preço que ela teve de
pagar por neutralizar Bernie Sanders. Hillary não perdeu por ter se deslocado
demais para a esquerda, mas precisamente porque foi centrista demais e, desse
modo, não conseguiu captar a revolta antiestablishment que esteve na base tanto
de Trump quanto de Sanders.
Trump lembrou a essas pessoas da realidade semiesquecida
da luta de classes, se bem que, é claro, ele o fez de uma maneira populista
distorcida.
A raiva antiestablishment de Trump foi uma espécie de
retorno daquilo que foi reprimido pelo fato de a política da esquerda moderada
liberal focar sua atenção sobre questões culturais e de correção política.
Essa esquerda ouviu de Trump sua própria mensagem em sua
forma invertida verdadeira. É por isso que a única maneira de responder a Trump
teria sido apropriar-se plenamente da raiva antiestablishment, e não
desprezá-la como primitivismo da escória branca.
Por isso foi estúpido fazer oposição a Trump com Hillary,
que encarna tudo contra o qual Trump reagiu.
Os comentaristas liberais arrogantes estão chocados ao
ver como seus ataques amargos e contínuos às explosões de vulgaridade racista e
sexista de Trump, suas falsidades factuais, as bobagens econômicas que ele
disse, etc., não o prejudicaram nem um pouco, mas talvez tenham até
intensificado sua atração popular.
APELO PELO FRACO
Eles não perceberam como funciona a identificação: via de
regra, nós nos identificamos com os pontos fracos uns dos outros, não apenas ou
mesmo não principalmente com os pontos fortes; logo, quanto mais as limitações
de Trump eram ironizadas, mais as pessoas comuns se identificavam com ele e
enxergavam ataques a ele como ataques arrogantes a elas próprias.
A mensagem subliminar que as vulgaridades de Trump
transmitiam às pessoas comuns era: "Eu sou um de vocês!", e os
partidários comuns de Trump sentiam-se constantemente humilhados pela atitude
arrogante da elite liberal em relação a eles.
Quando uma pessoa usa uma peruca, geralmente tenta passar
a impressão de que é cabelo de verdade. Trump fez o contrário: conseguiu fazer
seu cabelo real parecer uma peruca. É possível que essa inversão funcione como
uma fórmula sucinta que resume o fenômeno Trump. Ao nível mais elementar, Trump
não está tentando nos vender suas ficções ideológicas desvairadas como sendo a
realidade –o que está tentando vender, na realidade, é sua própria realidade
vulgar como se fosse um lindo sonho.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 11/11/2016. Título original: 'Eleitores se identificaram com Trump e sentiram na própria pele o ataque a ele'.