sábado, 12 de novembro de 2016

Trump, fenômenos brasileiros e os 'misteriosos' caminhos da ideologia

Muitas das análises sobre Donald Trump e o resultado das eleições estadunidenses são frágeis, bastante frágeis. Nalguns casos raquíticas e rasas mesmo. Lugares-comuns, jargões, no estilo palavras de ordem. E o que é mais preocupante: por vezes, vindas de quem não deveria assim proceder. Ora, em fenômenos que envolvem transmutação discursiva coletiva (combinada com processos de identificação), não se vai muito longe, na compreensão dos significados, se não se lançar mão, por exemplo, de ferramentas microssociológicas (relativas aos elementos de agregação) e de dispositivos da psicologia de massas. Os 'caminhos da ideologia são misteriosos'. O mesmo poder-se-ia dizer (sempre a título analítico) em relação a dois 'fenômenos brasileiros' em evidência no momento: um religioso, em torno do (neo)pentecostalismo, e outro político, o qual incide sobre a movimentação em volta do deputado Jair Bolsonaro. Não perceber, dentre outras coisas, que, nas periferias, igrejas evangélicas constituem esferas de agregação e de pertença identitária, com todas as consquências que daí decorrem, é um equívoco. Sobre a movimentação em volta do deputado Bolsonoro, convém não subestimá-la. Aliás, pode haver até mesmo pontos de conexão entre ela e o (neo)pentecostalismo, conforme foi visto recentemente na eleição que elegeu o bispo Marcelo Crivella prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Não entender devidamente fenômenos como esses, assim como o caso Trump, significa tropeçar em posições políticas que se pretenda adotar. Ficando-se pelos lugares-comuns. Zizek tem sido uma exceção na abordagem da eleição estadunidense, mas equivocadamente foi acusado de 'o seu nariz não sentir o odor exalado por Trump'. Penso diferente. E, a meu ver, o artigo dele aí abaixo é representativo de uma análise a ser tomada em conta. 

Por Slavoj Zizek 

Muitos dos eleitores pobres dizem que Trump fala por eles. Como é possível que eles se reconheçam na voz de um bilionário cujas especulações e falências são uma das causas da miséria deles?
Como os caminhos de Deus, os caminhos da ideologia são misteriosos... (se bem que, incidentalmente, alguns dados sugiram que, no caso de Trump, a maioria de seus partidários não é de baixa renda). Quando os partidários de Trump são tachados de "escória branca", é fácil discernir nessa designação o medo das classes baixas que caracteriza a elite liberal.
Mas como Trump se tornou a voz de tantas pessoas "honestas e decentes"?
Trump, sozinho, arruinou o Partido Republicano, antagonizando tanto o velho establishment partidário quanto os fundamentalistas cristãos; o que permanece como seu núcleo de apoio são os portadores da raiva populista versus o establishment, e esse núcleo é desprezado pelos liberais, que o chamam de "escória branca".
Mas não são precisamente essas as pessoas que deveriam ser atraídas para a causa esquerdista radical? (Foi o que Bernie Sanders realizou.)
A derrota de Hillary Clinton foi o preço que ela teve de pagar por neutralizar Bernie Sanders. Hillary não perdeu por ter se deslocado demais para a esquerda, mas precisamente porque foi centrista demais e, desse modo, não conseguiu captar a revolta antiestablishment que esteve na base tanto de Trump quanto de Sanders.
Trump lembrou a essas pessoas da realidade semiesquecida da luta de classes, se bem que, é claro, ele o fez de uma maneira populista distorcida.
A raiva antiestablishment de Trump foi uma espécie de retorno daquilo que foi reprimido pelo fato de a política da esquerda moderada liberal focar sua atenção sobre questões culturais e de correção política.
Essa esquerda ouviu de Trump sua própria mensagem em sua forma invertida verdadeira. É por isso que a única maneira de responder a Trump teria sido apropriar-se plenamente da raiva antiestablishment, e não desprezá-la como primitivismo da escória branca.
Por isso foi estúpido fazer oposição a Trump com Hillary, que encarna tudo contra o qual Trump reagiu.
Os comentaristas liberais arrogantes estão chocados ao ver como seus ataques amargos e contínuos às explosões de vulgaridade racista e sexista de Trump, suas falsidades factuais, as bobagens econômicas que ele disse, etc., não o prejudicaram nem um pouco, mas talvez tenham até intensificado sua atração popular.

APELO PELO FRACO
Eles não perceberam como funciona a identificação: via de regra, nós nos identificamos com os pontos fracos uns dos outros, não apenas ou mesmo não principalmente com os pontos fortes; logo, quanto mais as limitações de Trump eram ironizadas, mais as pessoas comuns se identificavam com ele e enxergavam ataques a ele como ataques arrogantes a elas próprias.
A mensagem subliminar que as vulgaridades de Trump transmitiam às pessoas comuns era: "Eu sou um de vocês!", e os partidários comuns de Trump sentiam-se constantemente humilhados pela atitude arrogante da elite liberal em relação a eles.
Quando uma pessoa usa uma peruca, geralmente tenta passar a impressão de que é cabelo de verdade. Trump fez o contrário: conseguiu fazer seu cabelo real parecer uma peruca. É possível que essa inversão funcione como uma fórmula sucinta que resume o fenômeno Trump. Ao nível mais elementar, Trump não está tentando nos vender suas ficções ideológicas desvairadas como sendo a realidade –o que está tentando vender, na realidade, é sua própria realidade vulgar como se fosse um lindo sonho.

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 11/11/2016. Título original: 'Eleitores se identificaram com Trump e sentiram na própria pele o ataque a ele'.