sábado, 5 de novembro de 2016

O espelho interior de si: conhecimento, verdade e felicidade

Agostinho de Hipona (ou, como geralmente se prefere, Santo Agostinho) é muito mais do que um pensador de um dogma religioso. Registra a história do pensamento ocidental que, em sua época, uma corrente cética desaguou na escola filosófica 'Nova Academia', fundada por Arcesilau (315-240 a.C). Agostinho a teve intensamente em apreciação, com a obra 'Contra os Acadêmicos'.  Um tema fortemente presente aí é o par verdade e felicidade. Com a mediação do conhecimento. Não parece, contudo, que o conceito de verdade seja realçado como uma espécie de "reflexo mecânico de correspondência".  De algum modo, como interpretação, o texto desperta a lembrança segundo a qual, originalmente, no ocidente, a ideia de verdade decorre de um tripé: do grego aletheia (o visto), do latim veritas (o narrado), do hebraico emunah (confiança). A hermenêutica feita desse tripé, ancorando-se na noção hebraica, pode colocar de parte o entendimento de verdade como "reflexo mecânico de correspondência". A verdade pode surgir então como convicção-satisfação no que é genuíno, confiança no sentido, que não necessariamente precisa revelado para ser verdadeiro (no sentido de verificação empírica; algo, aliás, nesse contexto, de exequibilidade "não convencional"). Este é o caso dos sentimentos; a sua verdade é interna (a quem sente), e desconsiderá-los significa tentar falseá-los. Pois bem, a Editora Vozes colocou na praça um livro dedicado às reflexões de Agostinho de Hipona contra os referidos acadêmicos. Vai aí abaixo uma breve reprodução de uma passagem dedicada ao tema da verdade, da felicidade e do conhecimento - passagem que é extraída de um debate em que ele participa. 

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“O que propões, pois? Ora, para retornarmos ao problema, disse eu, te parece que se possa viver feliz não tendo encontrado o verdadeiro, conquanto se o busque? Vou repetir a opinião que proferi antes: De modo algum me parece ser assim. E quanto a vós, disse eu, qual é a vossa opinião? Então Licêncio tomou a palavra: Certamente que sim, disse ele, pois nossos grades antepassados, que consideramos como sábios e felizes, buscavam somente aquilo que é verdadeiro e viveram bem e de modo feliz. Agradeço, ademais, acrescentou ele, que me constituístes junto com Alípio, do qual, tenho de admitir, já começava a nutrir inveja. Ora, disse eu, visto que um de vós me parece defender que a vida feliz consiste apenas na investigação da verdade e o outro defende que essa não pode ser alcançada sem que se encontre a verdade, e Navígio, um pouco antes, deu sinais de querer aderir ao teu partido, espero com muita curiosidade para ver qual de vossas opiniões sereis capazes de defender. Trata-se de uma questão de grande monta, e digna da mais alta e diligente discussão. Se é uma questão de grande monta, disse Licêncio, tratar da mesma requer grandes homens. Não queiras encontrar, retruquei, especialmente nessa casa de campo, alguém que será difícil encontrar por entre todas as nações. Antes te peço que expliques a razão daquilo que proferistes, não temerariamente segundo me parece, e por qual razão opinas desse modo, visto que questões grandiosas, quando são discutidas e investigadas pelos pequenos, costumam transformar a estes também em grandiosos.”

(AGOSTINHO, S. Contra os acadêmicos. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p.18).