Estamos na altura do Dia de Finados. Por estranho que pareça, às vezes, os mortos (a sua memória) são a única companhia que resta aos vivos. O tema morte, na cultura ocidental, é bastante evitado. Talvez, por isso, tantos e tantos andem perdidos sem entender o(s) sentido(s) da vida. Dizia o filósofo (e musicólogo) francês Vladimir Jankélévitch que 'a morte vital é o que torna apreciável a vida mortal'. Fazê-la valer a pena, sem pequenez de espírito. Humanos, todos, pequenos "grãos" a dissolverem-se na natureza. Nessa matéria, tenho sempre presente as introspecções hegelianas, conforme já escrevi por aqui a propósito do Crepúsculo da existência. Que se tenha discernimento para se perceber o seguinte: O Dia de Finados é, na verdade, o dia dos vivos. Para a pergunta de Hemingway, a resposta: os sinos dobram por nós. O historiador Leandro Karnal trata disso no texto aí abaixo.
Por Leandro Karnal
(Historiador, UNICAMP)
(Historiador, UNICAMP)
A morte é poderosa. Ela
também assusta. Em primeiro lugar, pelo óbvio: ela é universal e inevitável. É
o conceito final e, por isso mesmo, evitamos seu contato até no nome. Dizer Dia
de Finados já parece uma mistura de português antigo e eufemismo. Os mexicanos
vão direto ao ponto: Día de los Muertos.
Em segundo lugar, a morte produz arte. Duas das sete
maravilhas do mundo antigo são monumentos funerários: as pirâmides do Egito e o
túmulo do rei Mausolo em Halicarnasso, que deu origem ao nome mausoléu. Ainda
que democrática e igualitária em si, a morte produz desigualdades estéticas e
de poder.
A Capela dos Ossos, em Évora (Portugal), choca a
sensibilidade contemporânea, mas foi pensada para ser uma lembrança religiosa e
moral. "Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos."
Em terceiro lugar, a morte está associada à fé. Grande
parte das religiões orbita em torno do nosso fim ou do anseio de imortalidade.
Na hora extrema, jainistas da Índia podem optar por uma morte pública e quase
teatral. Para católicos, são José (padroeiro da boa morte) se oferece à alma
devota como guia seguro.
Todo o cristianismo foi fundado em torno de dois
conceitos ligados à morte: Jesus morreu pela humanidade e, ressuscitando,
venceu a morte. Judeus consideram uma ação positiva pertencer à Chevra Kadisha
(sociedade sagrada), que prepara o corpo e ampara a família. Espíritas preferem
o verbo desencarnar. Islâmicos insistem na igualdade de todos em túmulos sem
ornamentos e, por vezes, até sem nome.
Por fim, a morte é uma grande inquietação filosófica.
Albert Camus pensou na morte como o "momento absurdo" na sua análise
do mito de Sísifo. O texto foi escrito em pleno horror da Segunda Guerra.
A morte do filósofo Sócrates é retratada pelo pintor
Jacques-Louis David com a dignidade neoclássica do momento que deu significado
para toda uma vida. Para o filósofo, a aceitação tranquila da morte era o sinal
de que havia sido coerente. Para nós que somos menos do que Sócrates, o extremo
da pobreza é não ter "onde cair morto". Morrer é o símbolo de toda a
vida.
O conceito, porém, continua incômodo. Nos meios urbanos
ocidentais, a morte foi afastada da vista pública. Não se vela mais em casa o
corpo de entes queridos. Há uma tanatofobia, um horror à morte, entre nós. A
morte tornou-se mais asséptica. Foi isolada em hospitais.
Quando ocorre em acidente público, corpos devem ser
imediatamente cobertos. A morte incomoda. Basta começar a tocar nela e todos
sentem um vago mal-estar. Quase todos preferem trocar de assunto.
Alguns de nós foram criados em hábitos mais antigos, como
visitar cemitérios no Dia de Finados. Os jovens de hoje raramente o fazem. Os
jovens não querem ir a enterros. Estão longe da morte e manifestam pouca
preocupação com ela.
Nós, mais velhos, também não gostaríamos de ir. A força
da obrigação e do hábito nos arrastam. Talvez por isto tenhamos raiva da frase
clássica de um adolescente ao ser convidado a um velório: "Não
gosto". Como também não gostamos, nos irritamos com a frase que desnuda,
sem culpa, nossa resistência.
Por que vamos? Em parte porque somos menos livres do que
os mais jovens. Talvez porque sejamos mais solidários. Mas, em parte também,
porque temos uma ideia da finitude e da dor do luto. Ir a túmulos é um rito de
religação. Visitamos mortos por causa de nós, vivos. Nós, os ossos que lá
estaremos, ainda temos carne e sangue e ainda choramos.
O Dia de Finados é o dia dos vivos, da fila que continua
andando, das duas questões que nos abalam: o quanto sinto falta de quem se foi
e o quanto temo ir. O vazio da morte está impactando quem vive.
Os sinos dobram por nós, como o título que tomei
emprestado a Hemingway. Ouvi-los é estar vivo. Quando eu parar de escutá-los
isso não terá mais importância. O Dia de Finados é nosso, dos que ainda podem
ler este texto. Repousemos em paz.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/11/1700810-por-quem-os-sinos-dobram.shtml