Filme também inspirado na obra 'Fogo Fátuo' (assim como 'Oslo, 31 de Agosto'), de Pierre Drieu, 'Trinta Anos esta Noite' deixa, ao seu fim, uma mensagem que, interpretada, pode ser posta em forma de indagação enigmática: a partida de alguém que, de per si, decidiu colocar fim aos seus dias pode gerar vinculações (com a sua memória) que, em vida, não ocorreram? Talvez essa seja uma das coisas em que pensa Alain, nas suas últimas quarenta e oito horas deambulando por Paris. Talvez. O fato é que saber lidar com o passado significa, em medida determinada, conseguir dar um sentido à vida presente. É sofrível, quiçá mesmo impossível, ecoar a vida presente sem bosquejar um futuro no qual se possa viver. Vamos lá, nunca sabemos, pode até ser que se precise de uma 'paleontologia dos fósseis do amanhã' ou de uma 'psicanálise dos traumas futuros'. E, mesmo com todo o apreço que se deve ter à diversidade, este não é um tema existencial que se consegue dividir, na convivência, com quem não enxerga além da carcaça corporal que habita e sem propensão ao ato (lógico e sistemático) de pensar ou, mais propriamente, de pensar sobre o pensamento. E isso tem consequências, pois a ideia de futuro, o futuro ideado é real apenas no único momento que pode ser, qual seja, o presente. Consequências, visto que, em face do futuro individual ou coletivo que chega, pode ocorrer de, perante um mundo de sombras, só restar a resistência isolada para não se tornar zumbi. Aí abaixo, mais incursões nessa perspectiva no texto de Eliane Brum, o qual reputo como precioso.
Por Eliane Brum
(Escritora e documentarista)
A escavação que fazemos da vida é para trás. Seja sobre o
indivíduo, seja sobre a sociedade, seja sobre o mundo. Vamos arrancando as
camadas de acontecimentos, alguns com uma daquelas escovinhas de arqueólogo,
cuidando para não apagar um pedaço no processo, outros arrancando lascas. E
tentando dar sentidos, seja para um trauma de infância, seja para o holocausto
judeu, seja para o impeachment
de uma presidente ou o suicídio de outro. Sentidos que se
ressignificam constantemente a partir de novos indícios, interpretações e
também circunstâncias. Compreendemos o presente a partir da investigação viva –
e polifônica – do passado. Como chegamos até aqui, seja uma pessoa, um país,
uma organização, um partido ou um grupo terrorista, implica uma obviedade: a
análise do percurso. Mas penso que, para
compreender o mal-estar deste momento, e não só no
Brasil, é preciso olhar também para outro lugar: é preciso compreender que o
futuro nos constitui tanto quanto o passado.
Não o futuro que efetivamente será, aquele que em seguida vira
pretérito sujeito a interpretações múltiplas. Mas a ideia de futuro, esta que
nos move no presente. E, por nos mover, influencia de modo decisivo o que somos
neste momento. Nosso presente é tão impactado pelo futuro que somos capazes de
imaginar quanto pelo passado que tentamos compreender. Em parte, é o futuro que
alinhava o mal-estar sentido hoje por tantos em tantos lugares. Precisamos
muito de uma paleontologia dos fósseis do amanhã. Ou de uma psicanálise dos
traumas futuros.
Como imaginar, por exemplo, que a Belle Époque se tornou o que
foi sem o futuro que seus protagonistas eram capazes de imaginar? O futuro que
se desenhou no concreto, pelo menos na Europa, foi a Primeira Guerra Mundial (1914-18)
e sua matança pavorosa. Mas havia um outro futuro, cheio de otimismo e
potência, um que se imaginou no presente. E que criou realidades no presente,
influenciando fortemente aquele momento e fazendo dele o que foi.
Ou,
por outro ângulo, como teria sido possível a ascensão de Adolf Hitler na
Alemanha dos anos [19]30, e tudo o que aconteceu depois, sem que uma parcela
significativa dos alemães médios tivesse passado a acreditar num futuro com
ainda mais perdas, humilhações e medos do que já tinham sofrido após a derrota
na guerra? Os culpados, aqueles que são responsabilizados pelas dificuldades do
presente, não vêm apenas do passado e de fatos concretos. Mas do futuro e de
nenhum fato para além da construção de uma ideia na qual se passa acreditar como
fato. Encarnou-se um inimigo nos judeus muito mais por um futuro forjado numa
construção complexa do que por um passado real. E o que de fato aconteceu no
futuro todos conhecemos hoje como Holocausto.
O suicídio de Getúlio
Vargas, em 24 de agosto de 1954, e sua carta-testamento podem ser lidos pelo
passado, mas também podem ser lidos pelo futuro que o então presidente
acreditou poder impactar com esse gesto radical. Vargas matou-se também por
acreditar que estaria mais presente no futuro não estando do que se estivesse.
O
quanto de nossas decisões individuais no presente não são tomadas em nome de um
futuro sobre o qual temos muito pouco controle mas acreditamos que será tal
qual imaginado – ou temido – por nós? O que não acontecerá, mas é vivido por
cada um como se de fato acontecesse, acontece em certa medida. Ou, dito de
outro modo, para aquele que acredita numa ideia de futuro, este futuro ideado é
real no único momento que pode ser: no presente. E o conforma.
É difícil
dimensionar o impacto de uma ideia de futuro sobre o mal-estar disseminado
deste momento. Mas me arrisco à hipótese de que o futuro nunca teve uma
repercussão tão profunda como neste presente expandido. Talvez a frase que
melhor expresse isso na ficção é a da série de TV Game of Thrones (HBO),
baseada nos livros de George R. R. Martin: “The winter is coming”. O inverno está chegando...
O
futuro de hoje é uma distopia. O que será de fato ninguém pode dizer que sabe.
Mas sabemos que uma ideia distópica de futuro move esse presente. No Brasil,
esta ideia se impõe depois de um período de crença de que o Brasil tinha
superado um patamar simbólico, uma espécie de ranço histórico, e que seguiria
avançando. A melhor síntese é o discurso de Lula, em 2009, no dia em que o
Brasil foi escolhido para sediar os jogos olímpicos. Como já escrevi neste espaço, aquele é um
discurso sobre o eterno país do futuro que finalmente havia chegado ao presente
– e este presente era grandioso. Insisto na importância desse discurso porque
ele é precioso para compreender o futuro que efetivamente chegou.
Lula
consumou, naquele momento, uma alquimia: a ideia de futuro que movia o presente
se tornou, em seu discurso, o próprio presente. Esse futuro do presente deveria
ter se mostrado em toda a sua glória apenas alguns anos mais tarde: na Copa de
2014 e na Olimpíada de 2016. Mas o futuro do futuro,
como se viu, foi bem outro.
Naquele
momento, porém, Lula não compartilhava sozinho essa ideia de futuro tão ativa
no presente. Deixaria o governo no ano seguinte, em 2010, com quase 90% de
aprovação. Uma aprovação que olhava para o passado, mas também para o futuro.
Naquele momento, não era apenas o presente, mas a paisagem desenhada no amanhã
que movia a vida cotidiana dos brasileiros. E conjurava uma ideia de
felicidade. E também de potência.
Hoje,
é difícil acreditar que a maioria esteja vislumbrando um futuro de potência.
Talvez este seja o único consenso, entre tantos muros. Uma das leituras
possíveis dessa raiva tão disseminada nas ruas de bytes e também nas de asfalto
é justamente o sentimento de impotência. Ou a dificuldade de imaginar um futuro
que não seja uma distopia – um futuro que não seja Black Mirror (Netflix), a série que virou um evento
mundial.
Essa
raiva soa também como desespero. E o ódio daqueles para os quais não basta
vencer o outro na esfera pública, é preciso também destruí-lo, fede a medo. O
passado de alguém ou mesmo de um povo pode ser devastador, e muitos sucumbem à
impossibilidade de superá-lo. Mas não conseguir imaginar um futuro que não seja
uma distopia pode ser tão ou mais arrasador. Lidar com as fraturas do passado é
justamente conseguir dar um sentido a elas que permita reinventar uma vida. É
penoso, ou talvez até impossível, reinventar uma vida sem conseguir imaginar um
futuro no qual se possa viver.
Num
mundo globalizado, a ideia de um futuro distópico também é globalizada. Nos Estados
Unidos, depois de eleger o primeiro presidente negro, o que
soou para muitos como prenúncio de um planeta que avançava no processo
civilizatório, um personagem como Donald
Trump ocupará a Casa Branca.
Se
no passado recente os Estados Unidos foram muito competentes na venda de
sonhos, assim como do american way of life, com todas as críticas que se pode e se deve fazer, hoje a
maior potência mundial pode ser lida como uma potencializadora de distopias. A
produção cultural com maior poder de disseminação não é mais o cinema de
Hollywood, mas as séries. E elas são cada vez mais sombrias, quando não
apocalípticas, protagonizadas por céticos, cínicos ou desesperados – ou tudo
isso junto. Como se vê em The Walking Dead(AMC), às vezes toda a
resistência que se consegue no futuro que já chegou é não virar também um
zumbi.
Ícones
do século 20 já não ecoam mais. Como
na frase famosa dita pelo personagem de Humphrey Bogart à
personagem de Ingrid Bergman, no clássico Casablanca: “Nós sempre teremos Paris”. A expressão
tornou-se o mantra de que haveria sempre um lugar para onde escapar, onde a
vida poderia ser um idílio. Hoje, desde que Paris virou palco de atentados
terroristas, ninguém mais tem Paris. Nem mesmo Paris tem Paris.
O mundo, de repente, encolheu. E já não há paraísos para onde fugir. Nem mesmo
como viagem interna.
É
neste mundo subitamente encolhido que a Islândia, um país sobre o qual até pouco tempo
a maioria só sabia que tinha um vulcão com um nome impronunciável, capaz de
cuspir consoantes e fumaça, passou a ser uma espécie de última reserva de
utopia. E isso no imaginário de pessoas das mais diversas classes sociais e
nacionalidades. A Islândia cujo primeiro-ministro caiu por envolvimento num
escândalo de corrupção dois dias após ser citado no “Panama Papers” e um dia depois de milhares de pessoas
protestarem diante do Parlamento. A Islândia cuja polícia ficou traumatizada ao
matar um homem, pela primeira vez na história da corporação. A Islândia que
elegeu a primeira mulher presidente, divorciada e mãe solteira, em 1980, e a
primeira-ministra lésbica em 2009. A Islândia cujo time de futebol despachou a
Inglaterra da Eurocopa logo depois que o Brexit venceu. A Islândia como um pequeno
país de pouco mais de 300.000 habitantes onde é possível respirar sem se sentir
cercado por gente demais. A última utopia do presente é uma ilha
vulcânica.
Este
não é o pior momento do mundo – ou mesmo do Brasil. Basta olhar para trás para
constatar que vivemos períodos bem mais devastadores aqui e em qualquer lugar.
É o que sempre me lembram colegas mais velhos quando pensam que eu exagero a
dureza desta época por ter sido uma criança durante os anos Médici, na ditadura
civil-militar do Brasil (1964-85), ou por ter nascido depois da Segunda Guerra
Mundial (1939-45). É um fato que já se viveu períodos de enorme escuridão,
outros momentos em que o futuro era distopia. A arte, a filosofia e a
literatura produzidas nestes períodos são expressões valiosas para
lembrá-los.
Nossa
época, porém, contém uma novidade no campo das distopias. Há um novo elemento
para além de todos os conflitos humanos e seus processos de destruição que nem
sempre é levado em consideração nas análises. Este novo elemento, no meu ponto
de vista decisivo, é a mudança climática produzida pelo homem. Algo
avassalador, que não está na cabeça da maioria, mas que já corrói a vida
cotidiana de todos, mesmo que não sejam capazes de nomear o que os mastiga dia
após dia. Mesmo sem compreender que as toneladas de Rivotril que engolem já
como hábito têm a ver também com a mudança climática.
Se
é possível comemorar os avanços alcançados na Conferência do Clima de Paris,
sabe-se que não são suficientes. Isso, que já está aí, mas não é decodificado
pela maioria, lança nossa espécie e todas as outras que arrastamos na nossa
devoração consumista num tipo inédito de futuro do presente. O que colocamos em
curso ao nos tornarmos uma força de destruição do planeta já está além do nosso
controle.
Ainda
é possível mitigar, ainda é possível adaptar-se, mas já não é possível evitar.
O que a maioria não enxerga, já existe. E, mesmo quem não enxerga, sente. É o
planeta Melancholia, de Lars Von Trier, vindo em nossa direção em velocidade
acelerada enquanto travamos grandes e pequenas guerras em todo o canto e nos
xingamos no Facebook.
É
brutal conjugar a vida no presente quando a ideia de futuro é uma distopia.
Para que a vida seja possível no presente é preciso ser capaz de imaginar não
apenas um futuro onde se possa viver, mas um pouco mais: um futuro onde se
queira viver. A pergunta difícil deste momento é: isso ainda é uma
possibilidade?
Alguns,
entre os quais me reconheço, temem acordar de uma noite de vigília com o
anúncio: “O inverno chegou”. Ainda assim, penso que é necessário enfrentar a
tarefa de inventar um futuro no presente que não seja apenas distopia. O
desafio deste momento talvez seja o de descobrir como é possível criar uma
utopia a partir do excesso de lucidez.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil, 09/11/2016. Título original: 'O amanhã não pode ser só inverno'.