Dizia o saudoso historiador Eric Hobsbawm que o conhecimento histórico pode não prever de modo absoluto o futuro, mas auxilia na identificação do delineamento de suas tendências. Esse é, de resto, um dos aspectos fundamentais da ciência social. Foi assim que, no período precedente ao golpe de 1964, Wanderley Guilherme dos Santos escreveu o texto 'Quem dará o Golpe no Brasil'. Pouco depois, o seu texto era confirmado - o Presidente João Goulart era derrubado. No golpe de agora, de derrubada da Presidente Dilma, já não cabe indagar quem dará o golpe. A esse respeito, o texto aí abaixo, de Jessé de Souza, um cientista social de referência, é paradigmático. Enfoca o golpismo em marcha no Brasil com consistência argumentativa e o coloca em perspectiva histórica. Poder-se-á entender assim a razão de, mesmo ainda Temer não tendo sentado na cadeira presidencial (tendo Eduardo Cunha como seu vice...), a sua equipe já falar em reforma trabalhista, pagamento de mensalidades nas universidades, fim da estabilidade do servidor público, privatização em geral, etc. Vale a pena leitura do texto.
Por Jessé de Souza
(Doutor em
sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg, Alemanha)
I – Quem deu o golpe, e contra
quem?
“O golpe foi contra a democracia como princípio de
organização da vida social.
Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro
que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.
O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra
a herança escravocrata foi a ‘revolução’ comandada por/contra elites
subordinadas que se uniram em 1930.
A
visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero
conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção
nacional.
O sonho era a transformação do Brasil em potência
industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com
capacidade de consumo.
Nossa elite do dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse
sonho, posto que “afetivamente” nunca sentiu compromisso com os destinos do
país.
Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses
dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a
realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear
as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.
A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder
“comprar” todas as outras elites.
É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida
Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio
da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a
corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via
financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV,
cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.
De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o
Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo
dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no
golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje
em dia.
A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular
entre esses dois polos.
Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta
elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças
Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.
O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal,
que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses.
O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas
existia a mesma polarização que existia na sociedade.
II – Infraestrutura
O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articulou,
por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel,
uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura
e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e
centros de pesquisa em todo o país.
Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a
condução do projeto de longo prazo era do Estado.
Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma
batalha ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários
descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.
O processo de redemocratização comandado pela elite do
dinheiro tem tal pano de fundo.
As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de
curto prazo e uma nova derrota do sonho de um “Brasil grande”.
Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a
rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que
ela assume é mera conveniência.
Mas o processo de aprendizado foi abortado.
O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido
e, depois, por que ele havia sido criticado.
Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido
da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos
quem somos e a quem obedecemos.
Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se
insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e
no Executivo.
A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de
sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu
aberto.
A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e
alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa
esperar até hoje.
III – Mídia servil
Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode
fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que
o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.
O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista
anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional.
Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares
via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.
Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos
às classes do privilégio.
Parte da classe média sofria profundo incômodo diante
dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas “pegava mal”
expressar o descontentamento em público.
Pior, a classe média temia que essa classe ascendente
pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.
O discurso da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia
permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador
e uma atitude de pretenso “campeão da moralidade”.
O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora
pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional.
Está criada a “base popular”, produto da mídia servil à
elite da rapina.
IV – Burguesia nativa e
rentismo
A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma
em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na
existência de uma “boa burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente
interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.
Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos
juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso
dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece
todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –
inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.
Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir,
a elite está armada e unida contra a presidente.
As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e,
por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em
uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã
da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da
esquerda.
Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais
numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre
endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo um
novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.
Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como
controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse
aparato passa por mudanças expressivas desde então.
Altos salários e demanda crescente por privilégios de
todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos
filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo
controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos
corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso
ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos
em suposto “bem comum”.
O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser
disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a
imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão
bem.
Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre.
Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada
denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos
justiceiros da “justiça seletiva” ele não teria acontecido.
V – Casta jurídica e injustiça
no Brasil
O Estado policial a cargo da “casta jurídica” já está
sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma
“seletividade midiática”, o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos
a “grande pizza”.
A “pizza” para os amigos já está em todos os jornais e
acontece à luz do dia.
O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo
passo.
Esse é o maior perigo.
Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é
o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os
mais fracos, travestindo-o de “coragem cívica”.
Ainda que nossa classe média esteja longe de ser
refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do
bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará
de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de
ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de
vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual.
Esse golpe precisa ser compreendido por todos.
Ele é o espelho do que nos tornamos”.
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Fonte: http://rogeriocerqueiraleite.com.br/
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