Realizar a história do tempo presente não é tarefa fácil. De certo modo, faz lembrar a ‘polêmica
positivista’ em torno da psicanálise. Como se sabe, Karl Popper considerou a
psicanálise uma metafísica especulativa que, em seu entendimento, mais se aproximava
do atomismo anterior a Demócrito (ou quiçá das histórias do Olimpo reunidas por
Homero) do que da natureza de uma ciência verificável. Outra é a perspectiva de
Georges Politzer, para quem a psicanálise se apresenta como uma alternativa
consistente a uma psicologia da terceira pessoa que perdeu o sentido do sujeito
que se propunha estudar e que, por isso, substituiu o drama pessoal pelo drama
impessoal, o drama onde o ator é um indivíduo concreto, onde ele é uma
realidade, por um drama onde os figurantes são criaturas
mitológicas. Mais contemporaneamente, Habermas considerou o estatuto
espistemológico da psicanálise como um modelo tangível de uma esfera do
conhecimento que recorre metodicamente à autorreflexão.
Contudo,
apesar de Popper e dos positivistas, a psicanálise existe. Fazendo um paralelo
com a história do tempo presente: apesar das dificuldades em sua abordagem, ela
existe. E há até mesmo quem recorra a dispositivos psicanalíticos para tratar
da sua escrita. A história do tempo presente tem de convier com situações
peculiares: o envolvimento dos atores com os acontecimentos em marcha, com o
calor do momento, com eventuais incompreensões de juízos de fato que a sua narrativa emita. Mas ela existe. É ilustrativo
a esse respeito a afirmativa de Jean Lacouture: “Fazer história
imediata é ser Georges-Jacques Danton sendo levado ao cadafalso, falando ao
povo de sua relação com a revolução francesa e explicando o significado da sua
morte.”
Ao fim e ao cabo, a abordagem dos acontecimentos do tempo presente requer
um esforço acrescido, para não se cair em uma das principais armadilhas da
ideologia, qual seja, enfocar de forma inversa, e muitas vezes perversa, partes
da realidade, apresentando-as (as partes) como constituintes de uma versão verdade
que não se sustenta em fatos, mas sim na falsa consciência.
Essa démarche descortina os desafios da análise dos acontecimentos
destes agitados dias que correm no Brasil.
Tenhamos em conta alguns acontecimentos do pós-afastamento da presidente.
Comecemos pelo Ministério da Educação. Foi, no mínimo, impactante a declaração
do ministro Mendonça Filho anunciando apoio à cobrança de mensalidade nas
universidades públicas. Continuador de uma longeva oligarquia política no
agreste de Pernambuco, a posição do ministro está de acordo com as suas
posições políticas. Mas chama a atenção pelo atraso e pela insensibilidade em
relação aos novos contingentes de estudantes que passaram a ter acesso às universidades
federais, com a expansão destas às cidades interioranas, e que, em boa parte dos
casos, dependem de transportes de prefeituras para realizar os estudos, em
virtude das dificuldades orçamentárias pessoais para arcar com o pagamento de
transporte próprio (imagine ter que pagar mensalidade!). O ministro, contudo, segue dando provas do seu propósito, e
assim resolveu colocar na Secretaria de Regulação da Educação Superior (SERES)
um representante do ensino particular.
Não menos insensato, na mesma linha, posicionou-se o ministro da saúde,
ao afirmar que o SUS - a saúde pública - deve ser revisto. Também não surpreende,
afinal não só o novo ministro recebeu financiamento de plano de saúde privado,
com o próprio presidente interino Temer prometeu ‘privatizar o máximo’.
A presença de corruptos no governo Temer, investigados e denunciados,
segue com ares de normalidade, e a imprensa monopolizada e líderes de
manifestações de há até pouco seguem como se não estivessem vendo nada. Pelo que parece, colocaram as panelas na cabeça para cobrir os olhos. Contudo, são incomodados pela imprensa estrangeira, que não cansa de divulgar a desfaçatez.
Como se chegou a um tal quadro? Os equívocos e ilícitos de petistas não
são suficientes para explicar – até porque as ilicitudes não atingem a presidente Dilma.
Para que se esboce uma análise que capte uma explicação credível, realçando a
história presente brasileira sem o embuste da ‘contaminação ideológica’,
ter-se-á que considerar a monumental máquina de guerra política e
manipulação que foi montada há já algum, tendo como forte canal de difusão as
redes sociais. Em boa parte, os comandantes desta guerra sequer no Brasil
residem, como é o caso de Olavo de Carvalho. Vivem em outros países e recebem
apoio financeiro para a referida empreitada. Diariamente, nas redes sociais, são
despejadas toneladas e toneladas de postagens, tendo como público-alvo
segmentos que, num semestre, não leem sequer um livro completo e têm como fonte
de informação básica e de formação de opinião apenas o material fast food
das redes sociais, advindo, por vezes, de fontes suspeitas e de perfis falsos,
mas que mesmo assim é reproduzido em escala ampliada mediante os compartilhamentos.
Isso (em conjunto com outros fatores) trouxe-nos ao momento que vivemos
atualmente no Brasil, de quartelada parlamentar, de intolerância, de ódio, de
comportamentos fascistas, de pedidos de intervenção militar, de homenagem a um
torturador na Câmara dos Deputados, de apologia ao estupro por um parlamentar,
de eliminação de conquistas pelo novo governo, etc.
Quem integra a mencionada máquina de guerra política e manipulação, e o que acontecerá agora que a presidente foi afastada? O Blog da Cidadania fez uma
matéria a respeito; encerro esta postagem reproduzindo o básico dela aí abaixo.
Vale a leitura.
Após o golpe, máquina
golpista vai sendo desativada
(http://www.blogdacidadania.com.br/)
Quem
pensa que a concretização do golpe afetará apenas governistas, está enganado. A
máquina edificada ao longo dos últimos dois anos para tirar o PT do poder é
estupidamente cara e já começa a perder o sentido.
As lendas construídas
pela direita golpista e pela mídia tucana a respeito das supostas benesses que
o governo distribuía a pessoas também vão ser desmascaradas.
Figuras
do golpe
Kim
Cataguiri, um dos pistoleiros contratados pela franquia golpista para pregar o
golpe no âmbito de um tal “Movimento Brasil Livre”
Há, também, um tal de Marcelo Reis, de um grupo chamado
“Revoltados On Line”. O Sujeito fez fortuna vendendo um kit golpista para os
tarados que saíram por aí cometendo atentados fascistas.
O terceiro grupo que explorou fartamente o golpe e ganhou
maior notoriedade é o “Vem Pra Rua”, conduzido por um tal Marcelo Chequer,
alguém que jamais chegaria ao nível de protagonismo que chegou se não fosse a
multimilionária franquia do golpe.
Até hoje
não se sabe oficialmente de onde vieram as dezenas e dezenas de milhões de
reais que financiaram os golpistas. Essa é uma história que ainda será contada.
Mas a
resposta será conhecida – ao menos extraoficialmente – a partir do momento em
que o butim começar a ser distribuído de forma menos envergonhada –, o que
ocorrerá dentro de alguns meses.
Além dos
vários grupos que exploraram o golpismo – há outros menos notórios, além dos
supracitados –, ao longo da primeira e da segunda décadas do século XXI,
formou-se, também, um exército de comentaristas de grandes meios de comunicação
cujo único propósito tem sido atacar os governos do PT e suas figuras de proa.
Dos
pistoleiros antipetistas incrustados na grande mídia há nomes que surgiram na
era petista – a dita “molecadinha do golpe” – e outros que abandonaram os
falsos escrúpulos e aderiram, os “golpistas veteranos”.
Entre os veteranos, há uma figura singular que, apesar de ter
sido talvez quem mais ganhou com o arrivismo golpista e de ser um jornalista
veterano, só alcançou alguma notoriedade ao se engajar na luta golpista que
demorou 13 anos para ser vencida pelos autores.
Reinaldo
Azevedo é o maior exemplo de arrivismo bem-sucedido. No fim do governo FHC, ele
nada havia conseguido. Era um jornalista apagado que trabalhava em uma
publicação malsucedida financiada pelo governo que terminava.
A revista Primeira Leitura era uma espécie de prima pobre da Veja. Foi fundada pelo
ex-ministro de FHC Luiz Carlos Mendonça de Barros. Reinaldo Azevedo era o
gerentinho de Mendonça de Barros. Entre suas atribuições estava a de liberar
comentários de leitores no site da revista.
Como
a Primeira Leitura dependia de dinheiro estatal, fechou logo após o PSDB deixar
o poder. Espertalhão, Mendonça de Barros vendeu a revista para Azevedo e um
outro tonto que trabalhava lá. Como é óbvio, ambos deram com os burros n’água.
Porém, os contatos de
Azevedo com o PSDB lhe renderam espaço no então insipiente site da Veja – há
cerca de 10 ou 11 anos. O novo modelo conhecido como “blog” teve em Azevedo um
experimento que, assim como os blogs de esquerda, deu certo.
O “blogueiro”
Reinaldo Azevedo fez sucesso.
Seja
como for, esses pistoleiros antipetistas agora perdem importância. Ainda se
aferram ao criticismo ao PT, mas o golpe que foi dado contra o partido torna
obsoleta essa legião de agressores.
Há um excesso de
pistoleiros da mídia ou grupos picaretas mobilizadores de incautos. Até há
pouco, criar uma página no Facebook e começar a falar mal do PT rendia dinheiro
e muita audiência. Era só investir um pouquinho com a publicidade daquela rede
social e logo o sujeito estava ganhando rios de dinheiro vendendo bugigangas
palpáveis ou ideológicas pregando o golpe. Mas não há mais lugar para tantos
pilantras no novo cenário.
A partir de agora, a
mídia não precisa mais massacrar o PT. Aquela avalanche de pistoleiros malhando
só o PT vai acabar pegando mal – menos na Veja, cuja única finalidade, hoje, é
falar mal do PT e pelo menos por um tempo vai continuar na mesma toada.
Já os movimentos que
“lutavam” pelo golpe, perderam a razão de existir. Só se quiserem criar um
movimento cuja proposta seja queimar petistas numa fogueira…
O fato é que o
aparato descomunal forjado contra o PT perdeu a razão de existir. Nem como
oposição o PT poderá fazer muita coisa. Juntando PT, PC do B e PSOL, a esquerda
não tem nem um terço do Congresso – tem cerca de ¼
Com esse contingente
não dá para fazer oposição. Dá só para gritar. Temer tem a maior base aliada da
história e a mídia, o Judiciário e o Ministério Público. Como se não bastasse,
colocou o partido queridinho da mídia no governo, o PSDB. E mais: colocou Serra
no seu governo, o fetiche político da mídia encarnado.
Para que manter uma
estrutura tão cara para atacar o PT? Esses movimentos golpistas vão perder o
financiamento e haverá um excesso de comentaristas antipetistas na mídia. Não
haverá lugar para todos.
Quanto tempo irá
demorar para as pessoas começarem a dizer: “Bom, mas o PT saiu. Vocês vão
continuar colocando a culpa no partido, em Lula e Dilma, até quando? Cadê a
solução que vocês iam dar?”
Claro que os
golpistas irão distribuir cargos e benesses para os que considerarem que foram
mais eficientes, mas serão apenas alguns poucos eleitos entre a imensa massa
golpista que se formou para derrubar o governo democraticamente eleito de Dilma
Rousseff.
Haverá muita briga na
divisão desse butim.
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