sábado, 21 de maio de 2016

Entre o epitáfio e as exéquias: incômodo cadáver

Mutatis mutandis, bem cabe no Brasil deste momento a expressão 'tirem as crianças da sala', pois o jogo do poder é pesado. Saem de cena os que andavam país acima e abaixo repisando palavras de ordem pelo impeachment, louvando Eduardo Cunha  ('somos muitos Cunhas', lia-se em faixas nas manifestações) e escoltando o pato da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Não há como negar que pessoas bem intencionadas e indignadas com as ilicitudes, com justificada razão, assomaram-se ao "festival" cujo principal traje era a camisa da CBF. Foram levadas, essas pessoas, ao embuste que resultou na quartelada parlamentar responsável pelo afastamento da presidente, um embuste que, desde o fim das eleições de 2014, era tramado em Brasília pelos que foram derrotados nas urnas (notícia sobre isso pode ser vista aqui: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,g-8-do-impeachment-teve-reunioes-durante-um-ano,10000026435). Mas os personagens agora são outros, não são mais os das manifestações. Agora é a vez dos verdadeiros personagens que induziram a desestabilização. Saíram dos bastidores, porque agora a cosia com os profissionais.  Tirem então as crianças da sala. Não é só o fato de notórias figuras envolvidas nos casos de corrupção estarem dando as cartas, há também, até, o novo líder do governo sob a imputação de envolvimento com tentativa de assassinato. Uma operação como a que foi montada para apear a presidente Dilma da Presidência envolve altos riscos - um deles é o que decorre de determinadas alianças táticas. A questão é que, atingido o objetivo, a necessidade de se livrar do aliado momentâneo pode se tornar um problema. Mesmo que ele seja transformado em cadáver político, não se tem certeza se está "bem morto". Pelo que então surgem as dúvidas sobre a possibilidade dos estragos que pode fazer. Torna-se um cadáver incômodo. Essa é a situação do deputado Eduardo Cunha, que, como aliado e amigo do presidente interino Michel Temer, conduziu o impeachment.  É disso que, do alto da sua autoridade acadêmica, o veterano professor Luiz Gonzaga Belluzo trata no artigo aí abaixo. Agradeço ao amigo Antonio Sales pelo envio do mesmo. Vale a leitura. 





Chute ao cadaver 

Por Luiz Gonzaga Belluzo
(Universidade de Campinas - São Paulo) 

A produção nacional de cadáveres vai de vento em popa. Não falo dos milhares sucumbidos diante da violência explícita ou implícita que toma conta do País. Neste momento, o sistema de poder e do dinheiro, a fonte de toda a violência, prepara as exéquias de mais um cadáver notório. 
O epitáfio de Eduardo Cunha é estampado em editoriais que alteiam a voz do moralismo para esconder a cumplicidade do defunto, um servidor fiel daqueles que agora promovem a sua liquidação moral e política. Diria o personagem de Lampedusa no Leopardo: “É preciso mudar para que tudo continue como está”. O transformismo à brasileira é mais cruel: “É preciso assassinar os súditos mais nobres para preservar a reprodução das engrenagens do poder”. Os porta-vozes do establishment nativo se encarregam do conhecido esporte, o chute ao cadáver. 
No Congresso e fora dele, os maganos e maganões da República já preparam requintados pontapés na carcaça de quem, afinal, serviu e serve tão bem aos seus interesses e apetites. Foi assim, diga-se, que escaparam do naufrágio do regime militar e foram entronizados na democracia como corifeus das liberdades.     
Os fâmulos de Eduardo enfrentam, porém, uma dúvida terrível: não sabem se, de fato, o cadáver está bem morto. Sendo o defunto notório e possuidor de amplos e reconhecidos saberes sobre as mazelas da política nativa, os estragos de uma ressurreição ou de um último suspiro podem ser pavorosos. Imagino as angústias que nesta hora oprimem os corações de alguns acusadores de ocasião. Como pistoleiros de aluguel, só vão sossegar o espírito quando convencidos de que o cadáver está completamente morto. Não podem fazer outra coisa senão esperar sua defunção definitiva. Mas aqui só há uma certeza possível: não há como evitar o estrebucho político do moribundo. 
Então caberia pesar as conveniências do assassinato de um personagem tão emblemático, uma encarnação perfeita dos vícios e das virtudes do sistema dominante. Os vícios são muitos. Deixo à imaginação do leitor o trabalho de enunciar o elenco. Quanto às virtudes, dentre as poucas sobressai a capacidade de reproduzir as alianças de poder à custa da descaracterização humilhante e trágica dos que alegam se opor a tal estado de coisas. Aí estão, prostradas e subjugadas, estraçalhadas, as instituições incumbidas de promover a mediação democrática. 
A democracia dos patrícios, observada de uma perspectiva realista e sombria, revela a enorme capacidade de sobrevivência dos poderes dos donos. Governo após governo, mudam os métodos, mas não os rumos, sequer os pretextos. Há que se admirar o requinte dos poderosos nos cuidados de preservar pessoas notoriamente comprometidas com a truculência e as malfeitorias do passado. Aí estão os sobreviventes de outros naufrágios da República a perorar sobre as virtudes da dita-cuja.   
Elementar, meu caro Watson, entre mortos e afogados flutua impávida a estrutura do poder real, esse contubérnio entre o dinheiro e a política. Mandam e desmandam os mesmos grupos de sempre, reforçados agora pela presença dos yuppies cosmopolitas da finança globalizada. A grande inovação dos tempos, além da internet e do celular, é a porta giratória entre as mesas de operação das instituições financeiras e as burocracias econômicas executoras dos projetos e programas da privataria. Nesse bloco hegemônico não faltam os serviçais da mídia, infatigáveis em apresentar esses companheiros de jornada como portadores de um saber superior, o único capaz de assegurar, aos olhos dos mercados financeiros, a credibilidade da política econômica. 
Mais do que isso, as normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das campanhas eleitorais parecem engendrados com o propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão, onde os gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários. 
O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade e o nepotismo eram os demônios que os valores da República restaurada pretendiam exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis esperanças. 
Nesta coluna, reescrevo um artigo publicado por ocasião da renúncia do então senador Antonio Carlos Magalhães. Mudam as máscaras, mas os personagens são os mesmos. Ao contrário do que se divulga, os senhores tornaram-se mais ferozes. Mas aprenderam a usar métodos mais sutis e eficientes para torturar coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre ideológico e da “espetacularização” da política.  

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