O artigo aí abaixo vai para as 'folhas impressas'. Chega por aqui primeiro.
Por Ivonaldo Leite
Esqueça
os personagens. Com estes não adianta discutir, pois eles, por sua postura,
negam uma condição fundamental para que o diálogo ocorra: a possibilidade de
convencimento. Não são interlocutores do debate, mas atores representando
um papel. Não precisam nem abrir a boca para que se saiba o que a sua fala vai
pronunciar. E quando as evidências – ‘o real da vida’, no dizer de Guimarães
Rosa – contrariam os seus discursos, eles como que fecham os olhos para não
esquecer os chavões e voltam a repeti-los em maior tonalidade.
Exceto,
portanto, entre quem pisoteia o uso da razão na mediação das relações sociais,
não é senão de impacto a configuração do governo que ascendeu ao poder com o
afastamento da presidente Dilma, embora tal configuração não seja surpresa para
muitos, considerando o perfil do conjunto de forças que conduzem a marcha do
impeachment.
Vamos
aos fatos (apenas alguns). O partido DEM
(que já foi ARENA - o partido de sustentação da ditadura que o golpe
civil-militar de 1964 instaurou no Brasil -, que já foi PDS, PFL e cujo seu presidente,
senador José Agripino, anda às voltas com envolvimento em casos de corrupção) notabilizou-se
nos últimos tempos pelos ataques ao ProUni, ao FIES, ao destino de percentuais
de recursos do pré-sal para a educação, à política de expansão do ensino
superior que fez as universidades federais chegarem às cidades interioranas,
etc. Pois bem, o governo Temer não só
entregou o Ministério da Educação ao partido DEM, como o fez extinguindo o
Ministério da Cultura e incorporando os seus restos à pasta da Educação.
Em
relação à área da ciência, Temer competiu consigo mesmo em matéria de
disparate. Primeiro, cogitou entregar o Ministério da Ciência e Tecnologia a um
pastor; depois, concluiu que era melhor o acabar de vez, e assim o fez, repassando
os seus restos (pasmem!) ao Ministério das Comunicações, conduzido pelo arrivismo
de Gilberto Kassab. O protesto das associações científicas repercutiu no
exterior, por exemplo, com uma destacada matéria na prestigiosa revista
científica Nature. É preciso ser
muito ignorante ou defensor de uma visão entreguista/de dependência para o
Brasil, para não valorizar a necessidade de estrutura administrativa autônoma
para a ciência e tecnologia no país, consubstanciada na existência do
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Foi graças à estrutura
autônoma do MCTI que, nos últimos tempos, uma diversidade de editais, muitos em
parceria com o CNPq, proporcionou a
ampliação do financiamento da pesquisa e da inovação, e mais ainda, permitiu que
fossem desenvolvidos projetos pelo interior do país na medida em que as
universidades federais também iam se interiorizando.
Corrupção,
investigação e punição. A não ser que se queira tratar desse assunto de forma
seletiva ou apenas como mero pretexto para atacar o partido do governo afastado,
há boas razões para as panelas continuarem a ser batidas e o MBL e seus
congêneres prosseguirem marcando manifestações, transmitidas pela Rede Globo,
para protestar contra a presença de envolvidos em ilicitudes na Esplanada dos
Ministérios e na “corte presidencial”, pois são vários os ministros do governo
Temer envolvidos em casos de corrupção e, por isso, denunciados. O próprio presidente
não escapa de citações nesse sentido, além de ter de se lembrar da sua parceria
com o deputado Eduardo Cunha, denunciado como líder de uma organização
criminosa, a quem Temer já saudou em público dizendo que a ele costumava
entregar ‘as tarefas difíceis de resolver’ (isto pode ser visto aqui: https://youtu.be/fvwM0w2cNWQ).
De
par com tais impropriedades, o governo Temer vai anunciando a implementação de
um programa que, pela velocidade em que as coisas estão a correr, a impressão
que se tem é que se trata de algo há muito tempo articulado e planejado, em
conexão com o projeto de depor a presidente Dilma. Nesse sentido, os equívocos
e ilícitos do PT serviram muito bem como pretexto para angariar apoio público
ao impeachment, mesmo sem ter sido identificada a relação da presidente
afastada com as ilicitudes, e nem se ter constatado que ela se beneficiou
pessoalmente. O referido programa é uma afronta a direitos básicos de estudantes,
trabalhadores, servidores públicos, idosos, etc. “Percebendo” a dimensão do que
significa as propostas do governo Temer na área trabalhista, o deputado
Paulinho da Força, que tem base eleitoral sindical e foi um dos principais articuladores do
impeachment, reagiu contrariado contra o Ministro da Fazenda, chamando as suas
intenções de ‘estapafúrdias’ (pode ser lido aqui: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1771039-articulador-pro-impeachment-paulinho-ataca-declaracao-de-meirelles.shtml). Provavelmente, o deputado Paulinho será
domado, mas por aí se tem uma ideia do que está em questão.
O
programa Temer, de per si, é uma
afronta à própria democracia, pois estará sendo adotado sem que tenha sido
aprovado pela população em um processo eleitoral. E se apresentado fosse numa
eleição, dado o seu caráter impopular, dificilmente o candidato que o
defendesse seria eleito. Daí que os atuais detentores do poder recusem
terminantemente a ideia de tentar resolver a crise brasileira ‘zerando o jogo’,
isto é, realizando novas eleições ainda este ano. Tendo chegado ao poder por um
atalho, depondo a presidente, querem adotar um programa sem que ele seja aprovado
nas urnas. Não existe outro nome para isso senão golpe. Os comandantes do
governo interino, contudo, não agem por si só, mas sim têm por trás de si, por
exemplo, segmentos estrangeiros e, no Brasil, entidades como a Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que andou espalhando patos pelo país
perguntando quem os pagaria. Agora já se sabe quem será.
Numa
das suas últimas intervenções públicas, o saudoso escritor lusitano José
Saramago tratou do tema democracia. Das suas palavras pode-se tirar como ilação
o quanto tão pouco dela se entende, pois a seu respeito se fala sem se
discuti-la, sem que se aborde a sua essência. Saramago concluiu a sua
intervenção indagando: “Como falar em democracia se
aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo
povo? Onde está então a democracia?” Eis
as perguntas para as quais os brasileiros devem buscar respostas, na medida em
que se objetiva adotar no país um programa de governo que não foi sufragado
pelas urnas.
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