Entre marchas e contramarchas, é
remota a possibilidade de a Presidente Dilma Rousseff não ser afastada de
funções pelo Senado, passando a contar então 180 dias para a votação definitiva
da sua deposição. Nesta, terão que ser reunidos 28 votos de senadores (no universo
de 81) para bloquear a derrubada da Presidente. A contas de hoje, é um quadro
difícil, tendo à frente o governo Temer com um programa ilegítimo, com
propostas como contenção de salários, pagamento de mensalidades nas
universidades públicas, privatização máxima, reversão de direitos sociais
constitucionais, etc. Trata-se de um programa ilegítimo, pois estas propostas
não foram aprovadas pelo voto popular, e dessa forma configura-se o golpe:
chega-se ao poder por um atalho, para adotar um programa que não foi ratificado
pela população em eleição. Procura-se “limpar” um pouco a situação com o
afastamento de Eduardo Cunha da Presidência da Câmara dos Deputados, mas não há
como esconder algo maior: o entorno de Temer é composto por uma aglutinação de
envolvidos e denunciados nos casos de corrupção ora investigados no país, sendo
ele próprio (Temer) citado como tendo recebido propina. O tempo que se avizinha
será de resistência das forças democráticas contra um programa de governo
ilegítimo, e também terá de ser um tempo de reflexão para a Esquerda, no
sentido de pensar o seu futuro. Há quem tenha ensaiado análises nessa direção,
mas com uma fragilidade argumentativa desmedida, não saindo da esfera do discurso
panfletário (fenômeno esse, aliás, muito comum hoje nos opiniáticos moralistas).
Diferente é a perspectiva no texto aí abaixo, de Aldo Fornazieri. Com o recurso
à história, realça o esgotamento do ‘modelo político brasileiro’ e delineia os
contornos de um novo progressismo. Pertinente, para um 'Brasil em transe'. Vale a leitura.
|
||
Por Aldo
Fornazieri
(Escola de
Sociologia e Política de São Paulo)
Os governos petistas, particularmente
os dois mandatos de Lula, constituíram uma espécie de Gabinete de Conciliação
de centro-esquerda. Lula foi uma similar progressista ao conservador marquês do
Paraná do século XXI. A política de Conciliação do século XIX nasceu com o
golpe parlamentar da Maioridade. Mas a Conciliação permaneceu como um espírito
carente de forma até a ascensão de Paraná ao poder em 1853. O marquês fundou o
Partido Regressista, que se transformou em Partido Conservador, sobre os escombros
das Revoluções Regenciais. Lula fundou o PT sobre os escombros do Regime
Militar. O golpe da Maioridade era necessário para apaziguar e viabilizar o
Segundo Reinado. O pacto das elites e uma alternância regulada no poder era o modus
operandi da Conciliação. Mas ela precisava materializar-se numa experiência
política concreta, numa estratégia de poder, efetivada pelo Gabinete da
Conciliação.
O desfecho do Regime Militar foi a
Constituição de 1988. A Constituição constrói um novo espírito da Conciliação
para uma era de democracia. A operacionalidade da Conciliação contemporânea
ocorre pelo presidencialismo de coalizão. O governo Sarney foi o primeiro
ensaio dessa Conciliação. Mas o primeiro governo pós-constituinte – o governo
Collor – foi uma anomalia em relação ao espírito da Constituição. Acidentes
acontecem. Assim, era preciso derrubá-lo para que o rio revolto da política
voltasse ao leito da Constituição e da Conciliação.
Primeiro Itamar Franco e, depois,
Fernando Henrique Cardoso, foram fiéis ao espírito da Constituição e
constituíram uma Conciliação de centro-direita. Uma parte das forças
Constituintes – as esquerdas, o PT e os movimentos sociais - ficaram de fora do
pacto da Conciliação. As lutas políticas e sociais continuavam nas ruas e nas
ocupações de terras. Dessa forma, somente um governo petista poderia efetivar o
espírito da Constituição cidadã, da Constituição dos direitos sociais, numa
forma encontrada de Conciliação. Era preciso armar uma fórmula de pacificação
social do Brasil sem colocar em risco o pacto das elites, pois, afinal de
contas, o Colégio Eleitoral e a própria Constituição eram expressões de um
pacto das elites.
De certa forma, a história se
encarregou de promover uma sincronicidade para que o espírito conciliador da
Constituição encontrasse sua forma acabada: a vitória de Lula em 2002,
conjugada com um momento de crescimento econômico impulsionado pelas
exportações de commodities. O crescimento econômico e a política
expansiva de crédito permitiram alargar direitos, concedendo benefícios sociais
e remuneração subsidiada do capital, pois este, em sua continuada vocação
patrimonialista, não abre mão do Estado mesmo que apregoe o Estado mínimo. O
reformismo sem reformas do governo Lula levou aos limites do possível a
Conciliação de centro-esquerda em aliança com o conservadorismo, pacificando
socialmente o país e inscrevendo como reais direitos que estavam na letra da Constituição.
Mas a Conciliação
centro-esquerdista-conservadora precisava de um teste: uma crise. Ela veio com
o governo Dilma. Em 2013, houve uma erupção nas ruas. As esquerdas e os
movimentos sociais que estavam fora do pacto foram surpreendidos por uma avassaladora
tomada das ruas pela direita. As elites perceberam que existia uma conta a
pagar. O pacto social da Constituição de 1988, as imprudências fiscais do
governo Dilma e as consequências da crise internacional não cabiam no
Orçamento. Alguém teria que pagar a conta. Com Dilma no governo seria difícil
jogar a conta nos ombros dos trabalhadores. A partir das eleições de 2014,
quando a tentativa de restabelecer legitimamente a Conciliação de
centro-direita é derrotada nas urnas, as elites conservadoras começam a
abandonar o pacto político da legalidade constitucional emergido da
redemocratização. Seria preciso romper a ordem sob o manto da manutenção da
ordem. O impeachment seria essa ferramenta esdrúxula. O combate à corrupção
seria o mote.
Formou-se um grande arco composto por
um condomínio de corruptos, de moralistas sem moral de todos os quadrantes, de
plutocratas da mídia, de setores estamentais do Estado, etc. Bem intencionados,
ingênuos, corruptos, fascistóides, oportunistas, sonegadores, todos compuseram
uma grande frente verde-amarela para combater o grande mal. O golpe de 17 de
abril, além de revelar o lado grotesco e cínico das elites, devolveu o Brasil a
uma condição pré-1964. Ou seja: quando governos progressistas não satisfazem os
interesses das elites precisam ser derrubados por qualquer meio: impeachment,
força militar, inviabilização da posse, boicote no Congresso, golpe
parlamentar, golpe judicial etc.
O golpe do 17 de abril, a destituição
de Dilma do governo, representam o fracasso do modelo de Conciliação articulado
pelo PT. As elites conservadoras não brincam em serviço e não têm pruridos
democráticos quando estão em jogo seus interesses. Os resultados do reformismo
sem reformas do petismo, embora importantes, são frágeis. Podem ser varridos
por algumas penadas conservadoras no Congresso e por um presidente ilegítimo
como o será Michel Temer. A derrota do PT, em vários aspectos, é também uma
derrota das forças de esquerda em geral, dos movimentos sociais e
progressistas.
Agora será preciso construir um novo
progressismo – entendido aqui como os movimentos sociais e populares, as
esquerdas, os ativismos não partidários e a militância republicana e
democrática – numa perspectiva radical. A inviabilidade da Conciliação aponta
para a necessidade da construção de um pacto do progressismo. O pacto do
progressismo é necessário, em primeiro lugar, porque as forças conservadoras se
mostraram agressivas no golpe e estão se mostrando agressivas na intenção de
atacar direitos sociais, civis e políticos. O enfrentamento à essa
agressividade do conservadorismo importa uma radicalização das lutas sociais e
políticas. Importa mais a perspectiva das ruas, da organização social e
política autônoma, do que a perspectiva eleitoral e institucional, embora essa
não deva ser abandonada.
Além disso, o novo progressismo
precisa aprender uma nova pedagogia política. A pedagogia da articulação entre
unidade e pluralidade; entre representação e democracia participativa; entre a
organização vertical e a participação horizontal; entre organizações com
estrutura e organizações sem estruturas; entre o virtual e as ruas; entre o
social e cultural e o político; entre o institucional e o não institucional.
Terá que ser um progressismo radical e indignado que tensione os limites da
democracia predatória em nome de uma democracia igualitária, solidária e
sustentável. É preciso lutar por um reformismo igualmente radical que
desconstitucinalize privilégios e constitucionalize direitos, justiça e
igualdade.
O novo progressismo, além de lutar
para que a democracia representativa seja mais representativa e submetida ao
controle cidadão e complementada pela democracia participativa, precisa lutar
pela hegemonia de ideias e valores, resgatando os valores da igualdade, da
solidariedade, da simplicidade, da frugalidade, da sustentabilidade e da
construção de uma ideia de Humanidade entendida como comunidade de destino. O
futuro pode ser diferente da ganância, do lucro, da predação social e
ambiental. É inaceitável que a riqueza e o poder estejam concentrados de forma
brutal, criminosa e desumana como estão hoje. Não será com a Conciliação, mas
com a radicalização que essa equação precisa ser desfeita.
------------------------------------------
Fonte: http://jornalggn.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário