domingo, 29 de maio de 2016

Quando o coração sofre, uma flor para Soledad

'O caso eu conto como caso foi', como diria o escritor Paulo Cavalcanti. A casa era um casebre de taipa. Erguido no meio da mata, no município de Paulista, em Pernambuco. Nele estavam seis ativos jovens que discordavam do autoritarismo da ditadura militar. Em 8 de janeiro de 1973, foram todos dizimados, barbaramente assassinados pelas forças da ditadura, chacina que foi levada a cabo a partir das informações repassadas pelo Cabo Anselmo, um agente duplo que tinha uma relação com uma integrante do grupo: Soledad. Entrou para a história como o 'Massacre da Chácara São Bento'. Chama ainda mais a atenção nessa barbaridade o fato de que Soleddad estava grávida do próprio Cabo Anselmo, mas ele, como infiltrado da ditadura no grupo, não teve remorsos em entregar mulher e filho à morte. É um dos tantos crimes cometidos no Brasil, entre 1964 e 1985, pela ditadura civil-militar. Num momento em que proliferam manifestações de analfabetismo histórico no país, e assim se defende intervenção militar e se tenta transformar personagens dessa época/seus defensores em mitos, o 'Massacre da Chácara São Bento' e a história de Soledad têm muito a dizer. O conterrâneo Urariano Mota, mantendo a essência do caso, deu-lhe expressão literária no livro 'Soledad em Recife'. Aí abaixo um texto seu a respeito. A mulher para cantar o amor e o combate dos povos. Quando o coração sofre. Uma flor para Soledad. 

História e memória: Soledad 

Por Urariano Mota 

Quem lê “Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo, de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”. E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento explicar.
Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo. 

Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques, vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza? 
E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse sido marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda assim o quê?
Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político: 
“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto. 
Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:
‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.
Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.
Esse crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar. 
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Título original: 'Soledad, a mulher do Cabo Anselo'

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