'O caso eu conto como caso foi', como diria o escritor Paulo Cavalcanti. A casa era um casebre de taipa. Erguido no meio da mata, no município de Paulista, em Pernambuco. Nele estavam seis ativos jovens que discordavam do autoritarismo da ditadura militar. Em 8 de janeiro de 1973, foram todos dizimados, barbaramente assassinados pelas forças da ditadura, chacina que foi levada a cabo a partir das informações repassadas pelo Cabo Anselmo, um agente duplo que tinha uma relação com uma integrante do grupo: Soledad. Entrou para a história como o 'Massacre da Chácara São Bento'. Chama ainda mais a atenção nessa barbaridade o fato de que Soleddad estava grávida do próprio Cabo Anselmo, mas ele, como infiltrado da ditadura no grupo, não teve remorsos em entregar mulher e filho à morte. É um dos tantos crimes cometidos no Brasil, entre 1964 e 1985, pela ditadura civil-militar. Num momento em que proliferam manifestações de analfabetismo histórico no país, e assim se defende intervenção militar e se tenta transformar personagens dessa época/seus defensores em mitos, o 'Massacre da Chácara São Bento' e a história de Soledad têm muito a dizer. O conterrâneo Urariano Mota, mantendo a essência do caso, deu-lhe expressão literária no livro 'Soledad em Recife'. Aí abaixo um texto seu a respeito. A mulher para cantar o amor e o combate dos povos. Quando o coração sofre. Uma flor para Soledad.
História e memória: Soledad |
Por Urariano Mota
Quem lê
“Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com
Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu
sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo,
de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores
voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”.
E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento
explicar.
Quem foi, quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e
drama, que a maioria dos brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi
a mulher do Cabo Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem
dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a execução. Com mais cinco
militantes contra a ditadura, no que se convencionou chamar “O massacre da
granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto. No entanto, por mais
eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase tudo.
Entre os assassinados existem pessoas inimagináveis a
qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como
um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o
irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques,
vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não
sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de
apavorado, por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a
fugir, para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele
dizia. Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?
E Soledad Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o
centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes.
Ainda que não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas
rústicas no treinamento da guerrilha; ainda que não houvesse transtornado o
poeta Mario Benedetti; ainda que não fosse sido marcada a navalha aos 17 anos
em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do
escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda
assim... ainda assim o quê?
Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos
Santos e lhe dá a sentença: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha.
Aqui e além deste século”. Porque olhem só como sofre um coração. Para
recuperar a vida de Soledad, para cantar o amor a esta combatente de quatro
povos, tive que mergulhar e procurar entender a face do homem, quero dizer, a
face do indivíduo que lhe desferiu o golpe da infâmia. Tive que procurar dele a
maior proximidade possível, estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer
enfim: o Cabo Anselmo é um personagem que não existe igual, na altura de
covardia e frieza, em toda a literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele
superou os agentes duplos, capazes sempre de crimes realizados com perícia e
serenidade. Mas para todos eles há um limite: os espiões não chegam à traição
da própria carne, da mulher com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam
da perversão, acompanhem o depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista,
ex-preso político:
“É impressionante o informe do senhor Anselmo sobre aquele
grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do Paraná. É
algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as ignomínias
que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao assunto.
Depois de descrever e informar sobre cada um dos cinco outros
camaradas que seriam assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o
histórico de família, etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:
‘É verdade que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela
e, nesse caso, SE FOR POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução
final’.
Ao longo da minha vida e desde muito cedo aprendi a
metabolizar (sem perder a ternura, jamais) as tragédias. Mas fiquei durante
umas três semanas acordando à noite, pensando e tentando entender esse abismo,
essa voragem”.
Esse
crime contra Soledad Barrett Viedma é o caso mais eloquente da guerra suja da
ditadura no Brasil. Vocês entendem agora por que o livro é uma ficção que todo
o mundo lê como uma relato apaixonado. Não seria possível recriar Soledad de
outra maneira. No título, lá em cima, escrevi Soledad, a mulher do Cabo
Anselmo. Melhor seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens
brasileiros. Ou Soledad, a mulher que apredemos a amar.
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Título original: 'Soledad, a mulher do Cabo Anselo'
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