Com a chancela da Ateliê Editorial, ganha tradução no Brasil o pertinente trabalho das francesas Chantal Horrellou-Lafarge e Monique Sergé sobre a leitura - na verdade, uma tematização histórico-sociológica da leitura. Intitula-se exatamente Sociologia da Leitura. Aí abaixo uma recensão da obra.
Por Débora Mazza
A ideia principal do
livro Sociologia
da leitura, de Chantal Horellou-Lafarge e Monique Segré (2010), assenta-se
na importância da leitura como atividade integrada à vida cotidiana, que se
tornou indispensável nas sociedades contemporâneas a ponto de
"parecer" natural. As autoras rompem com essa visão naturalista e
desenvolvem uma análise meticulosa e refinada da leitura como uma pratica
sócio-histórica que se configura na tensa relação com as culturas, os hábitos
dos diferentes grupos, os meios tecnológicos, as instituições, as políticas
públicas e a lógica do mercado.
Interessantemente, as
autoras problematizam: "O que é a leitura hoje? Quais as novas formas
adquiridas por essa prática [...] apesar da permanência da percentagem de
iletrados? De que maneira os(as) leitore(as) se apropriam da leitura, se
levarmos em conta sua classe social, sua idade, sua identidade sexual e seu
nível de instrução?" (p. 18).
A fim de explorar estas
questões, o livro se organiza em cinco capítulos. No Capítulo I –
"A leitura e seu suporte" –, as autoras abordam questões
relativas ao nascimento dos grandes sistemas de escrita há cerca de seis mil
anos. Em dissertação que perpassa da escrita para a leitura e da cultura oral
para a cultura escrita, apresentam, na sequência, o desenvolvimento das
técnicas de fabricação do livro, que foi da argila à imprensa e assim
subsequentemente até o surgimento do livro eletrônico; abordam a evolução e
especialização dos ofícios ligados à produção, circulação e consumo do livro,
evolução esta que tem início no livro como um objeto raro e reservado a poucos
e que é lentamente transformado em um produto de massa, disponível, como
qualquer outra mercadoria, nas prateleiras de livrarias, supermercados, bancas
de revistas, feiras e brechós.
No Capítulo II – "A
leitura e as instituições" –, as pesquisadoras vinculam o nascimento do
leitor ao papel desempenhado pela Igreja e pelo Estado na Antiguidade. A partir
deste quadro, o aprendizado da leitura é compreendido como uma ferramenta de
propaganda e difusão tanto das ideias religiosas, quanto dos assuntos do
Estado. Neste cenário de interesses contraditórios, a leitura vai se
constituindo como prática que concomitantemente emancipa, enquadra, cria
fronteiras sociais e é alvo de censura e de políticas públicas indutivas de
formas de pensar, agir, sentir, relacionar. Nesse tópico, torna-se claro que a
leitura, que inicialmente era privilégio reservado às elites e aos adultos, vai
lentamente se estendendo a outras classes, frações de classes e grupos etários.
No Capítulo III – "Ler,
um aprendizado escolar determinante" –, as autoras discutem o papel
específico da escola e dos métodos de ensino e aprendizagem da leitura na
França, tendo em vista o domínio da língua oral, da escrita e da leitura pela
criança. Se, por um lado, a escola se afirmou como a instituição que tem como
função "ensinar tudo a todos" (COMENIUS, 1996), por outro lado, os
resultados alcançados sugerem que a construção da leitura como um costume
compartilhado por todos chama uma ação conjunta da família e de outros espaços,
meios e agentes. Sobre este tema, as autoras apontam que:
A relação entre instituição
escolar e atividade de leitura é complexa: varia conforme os indivíduos e seu
meio social de origem, e conforme suas representações da instituição e dos
professores. A escola dá condições de adquirir as aptidões necessárias para
ler, é uma instância que dá legitimidade às leituras, mas, devido às normas que
transmite, às coerções diretas e indiretas que exerce, corre o risco, ao mesmo
tempo, de criar entraves para uma possibilidade de leitura como prazer e
distração. (p. 89)
Como conciliar, na instituição
escolar, a leitura prescrita e necessária – considerada como um dever, em todas
as atividades ensinadas – com a leitura-prazer, reconhecida como uma distração
e um gosto? São problematizações suscitadas pela leitura do livro.
No Capítulo IV – "Uma
prática cultural diferenciada" –, o livro realiza uma discussão que
relaciona o ato de ler, os leitores e os suportes de leitura de acordo com as
diferenças de classes sociais, grupos profissionais, sexo, faixa etária e nível
de escolaridade. A partir disso, sugere que hoje é mais difícil afirmar que uma
determinada classe, ou um grupo, seja herdeira ou detentora da cultura
considerada legítima, tal como afirmou Bourdieu e Passeron (1964) nas pesquisas
realizadas sobre os hábitos de leitura dos estudantes universitários franceses.
Pela perspectiva
sociológica, é possível apontar as regularidades e as singularidades que cercam
a leitura. As regularidades apontam que os leitores hoje se diferenciam pelo
conteúdo de suas leituras e que, "apesar de sua relativa banalização, o
livro continua sendo um bem reservado àqueles que gozam do beneficio da
cultura" (p. 105), que, "quanto mais se ascende na hierarquia social,
mais aumenta o número de livros lidos" (p. 105), que "as atividades
masculinas, em particular voltadas para o 'mundo das coisas materiais',
reclamam leituras técnicas e científicas" (p. 119), que as atividades das
mulheres "mais ligadas ao mundo das 'coisas humanas' [...] envolvem
leituras documentais sobre os problemas de saúde e doença, a educação, a infância,
a crise da adolescência" (p. 120). As singularidades sugerem que, pelo
contato e pela divulgação, os interesses de diversas categorias sociais e
grupos etários, em matéria de leitura, tendem a se assemelhar. Nesse sentido, a
leitura deixa de ser uma prática distintiva, se transformando em prática de
usos sociais diversos.
No Capítulo V – "As
modalidades da leitura" –, as autoras afirmam que o amor pela leitura não
é um dom inato, mas um exercício que vira necessidade na medida em que é
incorporado como hábito. O gosto pela leitura, a relação sensorial com o livro,
"a dor da vida sem os livros" (p. 122) são sentimentos ignorados
pelos não leitores. As maneiras de ler dependem das condições de leitura, dos
momentos e tempo que lhe são concedidos, e do papel simbólico que lhe é
atribuído. A leitura pode acontecer como um ato individual, particular, que se
efetiva no silêncio, e nos espaços secretos e íntimos, ou como prática
coletiva, comentada, realizada em reuniões em encontros públicos e serões. Pode
ser leitura de um livro do começo ao fim ou uma atividade fragmentada,
quebrada, descontínua. Pode ser leitura de texto, de figuras, fotos,
quadrinhos.
A modalidade de leitura que
se generalizou na atualidade enquadra-se no processo gradativo de recalque das
paixões e emoções e na passagem das coerções impostas de fora para a
autocoerção (ELIAS, 1969). Ela configura-se como ato solitário exercitado no
âmbito privado, segundo um padrão burguês. Ao mesmo tempo, é importante
considerar a leitura como "atividade dinâmica, em constante evolução; onde
as maneiras de ler, compreender e interpretar variam segundo as aptidões e
investimentos individuais e coletivos e os modos de apropriação dos textos são
frutos de criação, invenção e movimento" (p. 144).
Nesse sentido, a leitura é
um processo que alterna liberdade, criação e coerção. Liberdade, porque o texto
é sempre inacabado e aberto; criação, porque suscita o trabalho imaginário do
leitor e a cooperação ativa; coerção, posto que o texto emoldura-se em pontos
de ancoragem que induzem à compreensão (p. 139-140). Apesar disso, é possível
afirmar que a apropriação de um texto depende sempre dos horizontes e
expectativas do leitor.
Em paralelo, as autoras
apontam que o livro convive com uma profusão de suportes de leituras e resiste
a uma multiplicidade de tecnologias da comunicação e informação, tais como
cinemas, computadores, televisão, jogos eletrônicos, sites de buscas e de
relacionamentos. Ainda assim, a leitura continua se afirmando como uma
atividade errante que permite rotas de fuga, difusão de ideias e polissemia de
sentidos.
O livro faz-nos compreender
que a leitura se realiza nas fronteiras movediças dos determinismos sociais, da
cultura de massa, da lógica de produção, circulação e consumo do livro como
mercadoria, e, ao mesmo tempo, provoca voos que alimentam a reflexão crítica, a
imaginação criadora e os movimentos libertários.
Por fim, como afirma
Rancière (2010, p. 44):
[...] o livro é uma fuga
bloqueada: não se sabe que caminho traçará o estudante, mas sabe-se de onde ele
não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não
terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O estudante deve ver tudo
por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice questão:
o que vês? O que pensas? O que fazes com isso? E, assim, até o infinito.
Boa leitura!
Referências
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. Les héritiers. Les etudiants et
la culture. Paris:
Minuit, 1964. [ Links ]
COMENIUS, J.A. Didactica
magna: tratado
da arte universal de ensinar tudo a todos. Introd., trad. e notas de Joaquim
Ferreira Gomes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 .
[ Links ]
ELIAS, N. La
civilization dês moeurs. Paris: Livre de Poche, Pluriel, 1969.
[ Links ]
HORELLOU-LAFARGE, C.; SEGRÉ,
M. Sociologia
da leitura. Trad. de Mauro Gama. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. (Titulo
original: Sociologie
de La Lecture). [ Links ]
RANCIÈRE, J. O
mestre ignorante. Cinco
lições sobre emancipação intelectual. Trad. de Lilian do Vale. 3. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.
[ Links ]
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302013000200017
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