Há reparos a serem feitos no texto aí abaixo, mas, de modo geral, ele é um dos poucos com considerável grau de inteligência nos debates atuais sobre a conjuntura política brasileira, colocando-se para além dos meros lugares-comuns e dos estereótipos dicotômicos. Sobre os reparos a assinalar, dentre outros, destaco três: 1) necessidade de diferenciar direita e extrema-direita, como bem faz a ciência política no contexto europeu (a última é tributária do nazismo/fascismo); 2) distinção entre direita civilizada e direita dos costumes; 3) problematização de uma determinada 'esquerda oligárquica', dada aos enviesamentos da prática populista, esquerda que atua, em público, com falatório geral/fazendo 'espuma de palavas', e, nos bastidores, atua arquitetando, desdizendo em atos o que afirma em palavras, intolerante, agindo em benéfico próprio, manipulando, etc (trata-se de uma "planta", em muitos casos, que tem prosperando no campo das universidades). Segue o artigo, vale a leitura.
Por Flávio Moura
(Doutor em Sociologia; Editor na Companhia das Letras)
Antes da saída de Dilma
Rousseff do poder, o ambiente para a discussão de ideias no Brasil já estava
podre, mas ao menos era possível identificar o que estava em jogo. Com a
reeleição da presidente, em 2014, as forças represadas desde a chegada do PT ao
poder federal conquistaram força inédita.
O antipetismo, que já recebera combustível com o
mensalão, ganhou de presente a Lava Jato para se refestelar. O
anti-intelectualismo, alimentado por uma associação simplória entre a esquerda
governista e os departamentos de humanas das universidades, tomou fôlego com a
bandeira do programa Escola Sem Partido e se espraiou pelas redes sociais na
voz de arautos de compacta estupidez.
Em pouco tempo, roqueiros dos anos 1980 se transformaram
em ideólogos do Twitter. Garotos fãs dos Power Rangers ganharam status de
"voz da nova geração". Galãs bombados descobriram a palavra
"marxismo" e resolveram combater seu ensino nas escolas.
Até aí, ainda dava para entender. A vitória contra o
governo Dilma trazia consigo o grito represado de uma direita que saíra do
armário no início dos anos Lula, embalada pela legitimidade de que se revestem
os discursos de oposição e pelos incontáveis erros do PT.
Mas mesmo esse cenário desolador já se transformou.
Depois de escancarado o show de horrores do Parlamento, transmitido ao vivo na
votação do impeachment na Câmara, os papéis se alteraram.
A direita acadêmica inteligente recolheu o galho, parou
de falar em impeachment e foi discutir o ajuste fiscal. A direita articulada da
imprensa entrou em guerra fratricida, com cômica troca de sopapos entre vestais
que se acreditavam pioneiras na pregação neoconservadora.
As vozes que defendiam a permanência de Dilma se
desarticularam -seja pela dúvida sobre a viabilidade de sua volta ao poder,
seja pela esterilidade da discussão em torno da existência ou não de golpe. As
vozes vendidas do antigo governismo, expressas em blogs chapas-brancas
financiados pelo PT, perderam o soldo e saíram de cena.
As ruas não ecoam da mesma forma, como ficou claro pelas
manifestações recentes. Expulso o inimigo comum, Dilma e o PT, as diferenças
entre o conservadorismo fundamentado e a xucrice udenista voltam a falar alto.
À esquerda, a impopularidade de Dilma não ajuda -e quem segue ao lado dela
defende menos sua volta ao poder do que valores caros de sua gestão, como a
igualdade de gênero e a diversidade racial, solenemente ignorados pelo novo
governo.
O debate se esvaziou. A estridência que se notava nas
redes e nos jornais antes do afastamento de Dilma deixou de existir, como se os
dois lados da contenda se fragmentassem.
A lógica dos embates anteriores não serve de guia para
pautar a discussão. Boa parte dos que pareciam engajados resolveu jogar
Pokémon.
A se confirmar a permanência até 2018 do poeta interino,
os próximos tempos serão de reorganização das alianças ideológicas.
O pensamento progressista pode ganhar força com atores
que chegam com energia renovada. Vozes conservadoras podem reivindicar lugar
digno na discussão se deixarem de lado os brucutus obscurantistas a que se
associaram na luta pelo impeachment.
A esfera pública vive uma ressaca dos tempos
pré-afastamento de Dilma. A Olimpíada, Donald Trump e os atentados na Europa
dominam o noticiário e deixam em banho-maria as vozes da luta política. Vale
torcer para que as peças não demorem a se reorganizar no tabuleiro e tornem o
jogo menos tosco e polarizado.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 11/08/2016. Título original: 'A ressaca da esfera pública'.
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