O texto aí abaixo vai para a publicação num periódico lusitano. Chega por aqui primeiro.
Por Ivonaldo Leite
No
clássico Cem Anos de Solidão, o
colombiano Gabriel García Márquez faz arte, através da escrita, para contar a
história da América Latina mediante a árvore genealógica de uma família. Uma
história marcada por golpes, ditaduras, guerras, guerrilhas e exílios. Uma
família – e uma região – a conviver com uma espécie de ‘eterno retorno’. Saga e
tragédia. Uma história cravada pela solidão. A parte final de Cem Anos de Solidão é emblemática: os
pergaminhos do cigano Melquíades são decifrados pelo filho bastardo de Meme (a
quinta geração da família) com Maurício Babilônia, isto é, Aureliano Babilônia
(pertencente à sexta geração). Nos pergaminhos está prevista uma maldição para
a família Buendía, qual seja, a de que duas outras pessoas dessa mesma família
não poderiam ter filhos juntas, dado que estes nasceriam com alguma
deformidade. José Arcádio Buendía e Úrsula eram
primos. A conseguinidade não se
poderia repetir. Aureliano Babilônia teve um filho
com Meme sem saber que ela era sua tia legítima. Repetiu-se a consanguinidade,
concretizando-se, dessa forma, a previsão do cigano: o rebento, Aureliano (da
sétima geração) nasceu com uma cauda de porco e morreu devorado por formigas. Desse
modo, chega ao fim a árvore genealógica dos Buendía, visto que, conforme estava
previsto nos pergaminhos do cigano, “era irrepetível desde sempre e para
sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma
segunda chance sobre a terra”.
Não há como não lembrar do livro de Gabriel García Márquez nesta
altura ao sul do continente latino-americano, na América do Sul. Após um
período de estabilidade política, no ciclo (curto, diga-se) pós-ditaduras,
países sul-americanos estão a viver, em maior ou menor intensidade, uma
situação de marcada tensão política.
São
exemplos disso, dentre outros fatos: a deposição do ex-bispo e Presidente do
Paraguai Fernando Lugo, em 2012, num ardiloso processo de impeachment pelo
senado do país; os sucessivos capítulos da crise venezuelana (aí contabilizado-se,
por exemplo, o fracassado golpe contra Hugo Chávez em 2002 e a sabotagem ao
abastecimento alimentar); a tentativa de golpe no Equador, em 2010, contra o
Presidente Rafael Correa; e os jogos de interesses ocultos que envolvem a crise
política que o Brasil vive. As veias da América Latina continuam abertas e a
sangrar. O que nos faz lembrar, agora, a trágica solidão latino-americana
presente no discurso proferido por García Marquez, em 1979, quando da cerimônia
em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura: “Não temos tido sequer um minuto de
sossego. Um prometéico presidente [Salvador Allende, do Chile], entrincheirado
em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho
(...). Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares [na região];
surgiu um diabólico ditador que está realizando, em nome de Deus, o primeiro
etnocídio da América Latina de nosso tempo (...). Várias mulheres presas
grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro
e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados
para orfanatos por ordem das autoridades militares. Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil
homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam
suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua,
El Salvador e Guatemala. Ouso dizer que é esta desproporcional
realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da
Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de
nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e
que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da
qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.
Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as
criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação,
porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar
nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.”
Nos
últimos anos, ao sul do continente, as marchas e contramarchas políticas
sucedem-se de modo intenso. As configurações do pós-ciclo de ditaduras e da
ascensão de governos não alinhados à hegemonia estadunidense na região vão
sendo refeitas. Países sul-americanos têm sido palcos de disputas e
enfrentamentos influenciados por fatores externos. Não se trata de uma
casualidade, pois a América do Sul constitui-se numa zona estratégica no pesado
jogo geopolítico global.
Especificamente, é de se assinalar que se é verdade que
possivelmente a América Latina seja uma das áreas estratégicas mais importantes
para os Estados Unidos, é de se ter em conta, por outro lado, que, nela, a
América do Sul ocupa uma posição de relevo. É constituída por doze países, num
espaço contíguo, da ordem de 17 milhões de quilômetros quadrados, isto é, o
dobro do território estadunidense (9.631.418 km2). Tem uma população que
corresponde a cerca de 70% da população de toda a América Latina, o equivalente
a algo em torno de 6% da população mundial, sendo de notar a sua integração
linguística, visto que a imensa maioria da sua população fala português ou
espanhol, línguas estas com acentuado potencial de iteração entre si. De resto,
a América do Sul possui imensas reservas de água doce e biodiversidade, enormes
riquezas em recursos minerais e energéticos (petróleo e gás), pesca,
agricultura e pecuária.
A relevância da América do Sul para o jogo geopolítico ficou
bastante evidenciada na Segunda Guerra Mundial, conforme já assinalou o
cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Os Estados Unidos necessitavam
não só assegurar as fontes de matéria-prima (ferro, manganês e outros minerais
imprescindíveis à sua indústria bélica) como também manter segura a sua
retaguarda no Atlântico Sul. Por exemplo, o Brasil municiava os Estados Unidos
com produtos agrícolas, borracha, manganês e outros minerais estratégicos, mas,
além disso, a sua posição no subcontinente revestia-se de grande interesse para
os propósitos estadunidenses, por causa do seu imenso espaço territorial e pelo
fato de ter fronteiras com todos os países da região (exceto Chile e Equador),
ocupando grande parte do Atlântico Sul, defrontado com a África Ocidental. O
fato é que “os Estados Unidos temiam que as forças da Alemanha, a
partir da costa do Senegal, avançassem em direção das Américas, atravessando o
estreito Natal-Dakar, ocupassem o arquipélago de Fernando de Noronha, e
terminassem por conquistar o Saliente Nordestino, que abrangia o Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Daí a pressão para que o Brasil
permitisse a implantação de bases navais e aéreas nas principais cidades
litorâneas do Nordeste, de onde os aviões da IV Frota americana, fundeada
em Recife, realizaram voos diários, através do Cinturão do Atlântico Sul
(Saliente Nordestino – ilha de Ascensão - África) com a missão de
patrulhar o oceano, entre as bases de Natal e Ascensão, visando a detectar
submarinos do Eixo e principalmente navios furadores de bloqueio, que
transportavam da Ásia, principalmente, matérias-primas estratégicas para o
esforço de guerra da Alemanha”.[1] Anote-se, ainda, que o Saliente Nordestino dista apenas
3.000 quilômetros do ponto mais ocidental da África francesa, e por aí passam
importantes rotas do tráfego marítimo, advindo do Golfo Pérsico e do
Extremo-Oriente, tendo como destino os portos localizados ao norte da América
do Sul, no Caribe e na América do Norte.
No
cenário do conflito, a base aérea de Parnamirim-Natal foi fundamental na
Segunda Guerra. Cedida aos Estados Unidos, juntamente com a base de Belém do
Pará, ela viabilizou o estabelecimento de uma ponte aérea fundamental para o
abastecimento das tropas inglesas que combatiam no norte da África e no Oriente
Médio, assim como para, posteriormente, a invasão da Europa – a partir da
Itália – e o apoio às ações militares no Extremo Oriente. “O patrulhamento
aéreo do Cinturão do Atlântico Sul, entre Recife e Ascensão, foi reforçado por
quatro grupos-tarefas e aviões Liberators,
e navios da IV Frota dos Estados Unidos, baseada em Recife, [que] afundaram
diversos submarinos de 1.200 t (U-848, U-849 e U-177) e os furadores de
bloqueio – Essemberg, Karin, Wesserland, Rio Grande e o Burgenland -, navios
que traziam mercadorias do Oriente para a Alemanha”.[2]
Do
fim dos anos 1990 aos dias atuais, alguns factores parecem ter se constituído
em pontos de reconfiguração da posição da América do Sul na arena da
geopolítica global. A esse respeito, podem ser referidos dois fatores.
O primeiro
diz respeito à reiteração da potencialidade da região como detentora de
recursos como petróleo, sendo, nesse sentido, a descoberta do pré-sal
brasileiro um exemplo paradigmático. Na mesma perspectiva, é de se acrescentar que
Venezuela,
Bolívia e Equador possuem importantes reservas de gás e também
de petróleo.
De acordo com a estadunidense Energy Information Administration, a Venezuela é um dos
dez maiores produtores de petróleo do mundo e possui
reservas comprovadas de 80 bilhões de barris. A Bolívia detém
a segunda
maior reserva de gás natural, na América do Sul, depois da Venezuela. Estima-se
que esse recurso, só na zona de Santa Cruz de la Sierra, é da ordem de 2,8
trilhões de pés cúbicos, sendo de 26,7 trilhões no país como um todo. De sua
parte, o Equador é o quinto maior produtor sul-americano de petróleo, com
reservas estimadas em 4,5 bilhões. Desses países, contudo, segundo a avaliação
de Stephanie Hanson, editora do Council
on Foreign Relations (think-tank sediado
em Nova York desde 1921), somente o Brasil tem potencial para se tornar um
produtor de petróleo com destacada projeção mundial na próxima década, graças à
descoberta das jazidas em águas profundas do Sul e Sudeste brasileiro[3].
O
segundo factor interveniente na reconfiguração geopolítica sul-americana
refere-se a uma diversificação das relações externas de países seus, com eles saindo
do raio de relação quase exclusiva com os Estados Unidos e se aproximando de um
outro bloco mundial de poder, capitaneado, por exemplo, pela Rússia e pela
China, sendo de ressaltar nesse sentido a participação brasileira nos chamados
BRICS.
Como
decorrência, a China ampliou significativamente o seu
intercâmbio comercial, dentre outras nações, com a Venezuela, Colômbia,
Equador, Bolívia, Chile, Argentina e Brasil. Seu comércio com os países da
América Latina, em geral, no ano de 2005, alcançava o montante de aproximadamente
US$ 50 bilhões, dos quais os negócios com os países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e
Paraguai) representavam 85% do
total. E
a China Petro-Chemical Corp (Sinopec), considerando
o domínio tecnológico que a Petrobras tem, desejava parceria com a estatal
brasileira para atuação em outros países.
Tais
(re)alinhamentos político e econômicos não passaram despercebidos ao governo
estadunidense. A “crescente expansão econômica e comercial da China
na América do Sul alarmou os formuladores da política exterior dos Estados
Unidos,
até então
concentrados nos problemas do Oriente Médio”[4]. Chamou-lhes a atenção
também a aproximação com a Rússia e o estabelecimento crescente de relações comerciais,
inclusive no plano militar, como no caso da Venezuela[5].
Sem
ter em atenção os desdobramentos das variáveis geopolíticas, como as aqui
mencionadas, não é possível entender adequadamente o que está em causa nas
marchas e contramarchas que países sul-americanos estão a viver. Evidentemente
que isso não dispensa a consideração de aspectos internos de cada país - de
equívocos em torno de políticas às ilicitudes da corrupção.
Há
de se tirar, no entanto, as devidas ilações do fato de, como ocorreu no Brasil,
a crise política ser precedida por atos de espionagem levados a cabo pela Agência
de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) contra a então Presidente Dilma
Rousseff e ministros seus. Da mesma forma, é revelador que o agora Presidente
brasileiro seja apontando como tendo atuado na condição de informante dos
Estados Unidos, conforme documentos tornados públicos pelo Wikealeaks, referentes ao envio de informes pela embaixada
estadunidense em Brasília a Washington[6].
Navegando
nas miragens de um deserto de ideias e atropelada pelos factos, a ‘Esquerda
tradicional’ no Brasil mostra os seus limites e exibe as suas contradições. Deu
expressão ao paradoxo ao bradar como golpe o processo de deposição da Presidente Dilma Rousseff, mas aportou-lhe uma lufada de ‘correção legal’ ao participar de todas as suas etapas de
tramitação, na Câmara dos Deputados e no Senado. Sem as lições da autocrítica e
a efetiva compreensão das implicações do jogo geopolítico na América do Sul, provavelmente ela continue a ser atropelada pelos factos.
Seja
como for, voltando novamente a Gabriel García Márquez para encerrar esta nossa
incursão, é de se dizer que o cerne da solidão latino-americana tem-na tornado
permanente na região. Em meio ao rodamoinho de poeiras e escombros, Macondo (como
García Márquez chamou a América Latina) é centrifugada pelo jogo de interesses
políticos. Populações reprimidas. Oligarquias agindo em interesse próprio. ‘Espumas
de palavras’ para enganar. Discursos desmentidos pela prática. Pode-se, como
Aureliano Babilonia, pular páginas e páginas, para não perder tempo com factos
conhecidos demais. Porém, após isso, começa-se então a decifrar o momento que se está a
viver, decifrando-se à medida que se vive, como se estivesse a ver a si mesmo
num espelho falado. ‘O futuro dura muito tempo’. Mas não há de ser mais cem
anos de solidão.
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[1] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Importância Geopolítica da América do Sul para os Estados Unidos, in Revista Espaço Acadêmico, nº 89, Outubro de 2008, p. 4-5
[1] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Importância Geopolítica da América do Sul para os Estados Unidos, in Revista Espaço Acadêmico, nº 89, Outubro de 2008, p. 4-5
[2] Ibidem, p. 5.
[3] HANSON, Stephanie. News Editor - Energy Bottlenecks in South America”, in
Council on Foreign Relations, April 21,
2008.
[4]
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Importância Geopolítica da América
do Sul para os Estados Unidos, in Revista Espaço Acadêmico, nº 89, Outubro de 2008, p.14.
[5]
Estima-se em mais
de 11 bilhões de dólares o valor dos contratos militares assinados entre a
Rússia e a Venezuela. Pequenos exemplos do resultado disso: a nação venezuelana
já recebeu do país de Vladimir Putin mais de 100 mil fuzis kalashnikov
AK-103, 24 caças múltiplas funções Su-30MK2, 34 helicópteros Mi-17V-5,
10helicópteros Mi-26T e 3 helicópteros Mi-35M. Além disso, a Rússia participa
da construção de uma fábrica de montagem licenciada de amas e munições na
Venezuela. Cf. o Jornal Gazeta Russa – edição em língua portuguesa, reportagem ‘Cooperação
entre Rússia e Venezuela ganha impulso’, de 06 de Junho de 2014, disponível em:
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