segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Permanente solidão: interesses ocultos, poder e a América do Sul no centro da disputa geopolítica


O texto aí abaixo vai para a publicação num periódico lusitano. Chega por aqui primeiro. 



Por Ivonaldo Leite

No clássico Cem Anos de Solidão, o colombiano Gabriel García Márquez faz arte, através da escrita, para contar a história da América Latina mediante a árvore genealógica de uma família. Uma história marcada por golpes, ditaduras, guerras, guerrilhas e exílios. Uma família – e uma região – a conviver com uma espécie de ‘eterno retorno’. Saga e tragédia. Uma história cravada pela solidão. A parte final de Cem Anos de Solidão é emblemática: os pergaminhos do cigano Melquíades são decifrados pelo filho bastardo de Meme (a quinta geração da família) com Maurício Babilônia, isto é, Aureliano Babilônia (pertencente à sexta geração). Nos pergaminhos está prevista uma maldição para a família Buendía, qual seja, a de que duas outras pessoas dessa mesma família não poderiam ter filhos juntas, dado que estes nasceriam com alguma deformidade. José Arcádio Bu­endía e Úrsula eram primos.  A conseguinidade não se poderia repetir. Aureliano Babilônia teve um filho com Meme sem saber que ela era sua tia legítima. Repetiu-se a consanguinidade, concretizando-se, dessa forma, a previsão do cigano: o rebento, Aureliano (da sétima geração) nasceu com uma cauda de porco e morreu devorado por formigas. Desse modo, chega ao fim a árvore genealógica dos Buendía, visto que, conforme estava previsto nos pergaminhos do cigano, “era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra”.
Não há como não lembrar do livro de Gabriel García Márquez nesta altura ao sul do continente latino-americano, na América do Sul. Após um período de estabilidade política, no ciclo (curto, diga-se) pós-ditaduras, países sul-americanos estão a viver, em maior ou menor intensidade, uma situação de marcada tensão política.
São exemplos disso, dentre outros fatos: a deposição do ex-bispo e Presidente do Paraguai Fernando Lugo, em 2012, num ardiloso processo de impeachment pelo senado do país; os sucessivos capítulos da crise venezuelana (aí contabilizado-se, por exemplo, o fracassado golpe contra Hugo Chávez em 2002 e a sabotagem ao abastecimento alimentar); a tentativa de golpe no Equador, em 2010, contra o Presidente Rafael Correa; e os jogos de interesses ocultos que envolvem a crise política que o Brasil vive. As veias da América Latina continuam abertas e a sangrar. O que nos faz lembrar, agora, a trágica solidão latino-americana presente no discurso proferido por García Marquez, em 1979, quando da cerimônia em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura: “Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente [Salvador Allende, do Chile], entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho (...). Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares [na região]; surgiu um diabólico ditador que está realizando, em nome de Deus, o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo (...). Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares. Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.”
Nos últimos anos, ao sul do continente, as marchas e contramarchas políticas sucedem-se de modo intenso. As configurações do pós-ciclo de ditaduras e da ascensão de governos não alinhados à hegemonia estadunidense na região vão sendo refeitas. Países sul-americanos têm sido palcos de disputas e enfrentamentos influenciados por fatores externos. Não se trata de uma casualidade, pois a América do Sul constitui-se numa zona estratégica no pesado jogo geopolítico global.
Especificamente, é de se assinalar que se é verdade que possivelmente a América Latina seja uma das áreas estratégicas mais importantes para os Estados Unidos, é de se ter em conta, por outro lado, que, nela, a América do Sul ocupa uma posição de relevo. É constituída por doze países, num espaço contíguo, da ordem de 17 milhões de quilômetros quadrados, isto é, o dobro do território estadunidense (9.631.418 km2). Tem uma população que corresponde a cerca de 70% da população de toda a América Latina, o equivalente a algo em torno de 6% da população mundial, sendo de notar a sua integração linguística, visto que a imensa maioria da sua população fala português ou espanhol, línguas estas com acentuado potencial de iteração entre si. De resto, a América do Sul possui imensas reservas de água doce e biodiversidade, enormes riquezas em recursos minerais e energéticos (petróleo e gás), pesca, agricultura e pecuária. 
A relevância da América do Sul para o jogo geopolítico ficou bastante evidenciada na Segunda Guerra Mundial, conforme já assinalou o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Os Estados Unidos necessitavam não só assegurar as fontes de matéria-prima (ferro, manganês e outros minerais imprescindíveis à sua indústria bélica) como também manter segura a sua retaguarda no Atlântico Sul. Por exemplo, o Brasil municiava os Estados Unidos com produtos agrícolas, borracha, manganês e outros minerais estratégicos, mas, além disso, a sua posição no subcontinente revestia-se de grande interesse para os propósitos estadunidenses, por causa do seu imenso espaço territorial e pelo fato de ter fronteiras com todos os países da região (exceto Chile e Equador), ocupando grande parte do Atlântico Sul, defrontado com a África Ocidental. O fato é que “os Estados Unidos temiam que as forças da Alemanha, a partir da costa do Senegal, avançassem em direção das Américas, atravessando o estreito Natal-Dakar, ocupassem o arquipélago de Fernando de Noronha, e terminassem por conquistar o Saliente Nordestino, que abrangia o Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Daí a pressão para que o Brasil permitisse a implantação de bases navais e aéreas nas principais cidades litorâneas do Nordeste, de onde os aviões da IV Frota americana, fundeada em Recife, realizaram voos diários, através do Cinturão do Atlântico Sul (Saliente Nordestino – ilha de Ascensão - África) com a missão de patrulhar o oceano, entre as bases de Natal e Ascensão, visando a detectar submarinos do Eixo e principalmente navios furadores de bloqueio, que transportavam da Ásia, principalmente, matérias-primas estratégicas para o esforço de guerra da Alemanha”.[1] Anote-se, ainda, que o Saliente Nordestino dista apenas 3.000 quilômetros do ponto mais ocidental da África francesa, e por aí passam importantes rotas do tráfego marítimo, advindo do Golfo Pérsico e do Extremo-Oriente, tendo como destino os portos localizados ao norte da América do Sul, no Caribe e na América do Norte.
No cenário do conflito, a base aérea de Parnamirim-Natal foi fundamental na Segunda Guerra. Cedida aos Estados Unidos, juntamente com a base de Belém do Pará, ela viabilizou o estabelecimento de uma ponte aérea fundamental para o abastecimento das tropas inglesas que combatiam no norte da África e no Oriente Médio, assim como para, posteriormente, a invasão da Europa – a partir da Itália – e o apoio às ações militares no Extremo Oriente. “O patrulhamento aéreo do Cinturão do Atlântico Sul, entre Recife e Ascensão, foi reforçado por quatro grupos-tarefas e aviões Liberators, e navios da IV Frota dos Estados Unidos, baseada em Recife, [que] afundaram diversos submarinos de 1.200 t (U-848, U-849 e U-177) e os furadores de bloqueio – Essemberg, Karin, Wesserland, Rio Grande e o Burgenland -, navios que traziam mercadorias do Oriente para a Alemanha”.[2]
Do fim dos anos 1990 aos dias atuais, alguns factores parecem ter se constituído em pontos de reconfiguração da posição da América do Sul na arena da geopolítica global. A esse respeito, podem ser referidos dois fatores.
O primeiro diz respeito à reiteração da potencialidade da região como detentora de recursos como petróleo, sendo, nesse sentido, a descoberta do pré-sal brasileiro um exemplo paradigmático. Na mesma perspectiva, é de se acrescentar que Venezuela, Bolívia e Equador possuem importantes reservas de gás e também de petróleo. De acordo com a estadunidense Energy Information Administration, a Venezuela é um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo e possui reservas comprovadas de 80 bilhões de barris. A Bolívia detém a segunda maior reserva de gás natural, na América do Sul, depois da Venezuela. Estima-se que esse recurso, só na zona de Santa Cruz de la Sierra, é da ordem de 2,8 trilhões de pés cúbicos, sendo de 26,7 trilhões no país como um todo. De sua parte, o Equador é o quinto maior produtor sul-americano de petróleo, com reservas estimadas em 4,5 bilhões. Desses países, contudo, segundo a avaliação de Stephanie Hanson, editora do Council on Foreign Relations (think-tank sediado em Nova York desde 1921), somente o Brasil tem potencial para se tornar um produtor de petróleo com destacada projeção mundial na próxima década, graças à descoberta das jazidas em águas profundas do Sul e Sudeste brasileiro[3].
O segundo factor interveniente na reconfiguração geopolítica sul-americana refere-se a uma diversificação das relações externas de países seus, com eles saindo do raio de relação quase exclusiva com os Estados Unidos e se aproximando de um outro bloco mundial de poder, capitaneado, por exemplo, pela Rússia e pela China, sendo de ressaltar nesse sentido a participação brasileira nos chamados BRICS.  
Como decorrência, a China ampliou significativamente o seu intercâmbio comercial, dentre outras nações, com a Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia, Chile, Argentina e Brasil. Seu comércio com os países da América Latina, em geral, no ano de 2005, alcançava o montante de aproximadamente US$ 50 bilhões, dos quais os negócios com os países do Mercosul  (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai)  representavam 85% do total. E a  China Petro-Chemical Corp (Sinopec), considerando o domínio tecnológico que a Petrobras tem, desejava parceria com a estatal brasileira para atuação em outros países.
Tais (re)alinhamentos político e econômicos não passaram despercebidos ao governo estadunidense. A “crescente expansão econômica e comercial da China na América do Sul alarmou os formuladores da política exterior dos Estados Unidos, até então concentrados nos problemas do Oriente Médio[4]. Chamou-lhes a atenção também a aproximação com a Rússia e o estabelecimento crescente de relações comerciais, inclusive no plano militar, como no caso da Venezuela[5].
Sem ter em atenção os desdobramentos das variáveis geopolíticas, como as aqui mencionadas, não é possível entender adequadamente o que está em causa nas marchas e contramarchas que países sul-americanos estão a viver. Evidentemente que isso não dispensa a consideração de aspectos internos de cada país - de equívocos em torno de políticas às ilicitudes da corrupção.
Há de se tirar, no entanto, as devidas ilações do fato de, como ocorreu no Brasil, a crise política ser precedida por atos de espionagem levados a cabo pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) contra a então Presidente Dilma Rousseff e ministros seus. Da mesma forma, é revelador que o agora Presidente brasileiro seja apontando como tendo atuado na condição de informante dos Estados Unidos, conforme documentos tornados públicos pelo Wikealeaks, referentes ao envio de informes pela embaixada estadunidense em Brasília a Washington[6].
Navegando nas miragens de um deserto de ideias e atropelada pelos factos, a ‘Esquerda tradicional’ no Brasil mostra os seus limites e exibe as suas contradições. Deu expressão ao paradoxo ao bradar como golpe o processo de  deposição da Presidente Dilma Rousseff, mas aportou-lhe uma lufada de ‘correção legal’ ao participar de todas as suas etapas de tramitação, na Câmara dos Deputados e no Senado. Sem as lições da autocrítica e a efetiva compreensão das implicações do jogo geopolítico na América do Sul, provavelmente ela continue a ser atropelada pelos factos.
Seja como for, voltando novamente a Gabriel García Márquez para encerrar esta nossa incursão, é de se dizer que o cerne da solidão latino-americana tem-na tornado permanente na região. Em meio ao rodamoinho de poeiras e escombros, Macondo (como García Márquez chamou a América Latina) é centrifugada pelo jogo de interesses políticos. Populações reprimidas. Oligarquias agindo em interesse próprio. ‘Espumas de palavras’ para enganar. Discursos desmentidos pela prática. Pode-se, como Aureliano Babilonia, pular páginas e páginas, para não perder tempo com factos conhecidos demais. Porém, após isso, começa-se então a decifrar o momento que se está a viver, decifrando-se à medida que se vive, como se estivesse a ver a si mesmo num espelho falado. ‘O futuro dura muito tempo’. Mas não há de ser mais cem anos de solidão.  


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[1] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Importância Geopolítica da América do Sul para os Estados Unidos, in Revista Espaço Acadêmico, nº 89, Outubro de 2008, p. 4-5

[2] Ibidem, p. 5.

[3] HANSON, Stephanie. News Editor - Energy Bottlenecks in South America”, in  Council on Foreign Relations, April 21, 2008.

[4] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Importância Geopolítica da América do Sul para os Estados Unidos, in Revista Espaço Acadêmico, nº 89, Outubro de 2008, p.14.

[5] Estima-se em mais de 11 bilhões de dólares o valor dos contratos militares assinados entre a Rússia e a Venezuela. Pequenos exemplos do resultado disso: a nação venezuelana já recebeu do país de Vladimir Putin  mais de 100 mil fuzis kalashnikov AK-103, 24 caças múltiplas funções Su-30MK2, 34 helicópteros Mi-17V-5, 10helicópteros Mi-26T e 3 helicópteros Mi-35M. Além disso, a Rússia participa da construção de uma fábrica de montagem licenciada de amas e munições na Venezuela. Cf. o Jornal Gazeta Russa – edição em língua portuguesa, reportagem ‘Cooperação entre Rússia e Venezuela ganha impulso’, de 06 de Junho de 2014, disponível em:

[6]  Wikileaks diz que Michel Temer atuou como informante dos EUA, in Folha de São Paulo, edição do dia 13/05/2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1771016-wikileaks-diz-que-michel-temer-atuou-como-informante-dos-eua.shtml.


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