Um livro, uma música e tantos significados. Quem tem ou teve o seu avôhai como unidade indivisível, sabe daqueles pares de olhos profundos sempre a aconselhar - às vezes com um simples olhar. "Oh! Meu velho e indivisível, Avôhai!". A conferir o texto/música aí abaixo.
Por Euler de França Belém
Há
livros muito bons e, ao mesmo tempo, estranhos. É o caso de “Zé Ramalho — O
Poeta dos Abismos” (Madras, 342 páginas), de Henri Koliver. À primeira vista,
trata-se de uma biografia. Depois, percebe-se que é um longo depoimento do
cantor e compositor. Adiante, Koliver retoma o livro e comenta a música
do artista paraibano. Ainda que falte algum ajuste editorial, a obra é
absolutamente necessária para compreender tanto a música quanto a vida do
criador de “Avôhai”.
A música de Zé Ramalho pode ser compreendida por qualquer pessoa, mas, como é
recheada de “mensagens” — de um misticismo sincrético, por assim dizer — e de
histórias pessoais que não podem ser explicadas inteiramente numa música, ou em
algumas músicas, o livro é esclarecedor. Aqueles que querem compreender o
músico, de maneira mais ampla, devem consultar o livro. Agora, se esperam um
trabalho crítico, devem escarafunchar noutro lugar. É uma obra a favor, com a
própria voz do músico.
“Avôhai” é, sem dúvida, a música mais expressiva de Zé Ramalho, a que mais o
identifica, embora musicalmente talvez não seja a mais rica. O título
significa, obviamente, avô e pai, e, conhecendo a história, sabe-se que não
poderia ser “Haiavô” ou “Paiavô” (o avô é mais decisivo do que o pai). “A
revelação de ‘Avôhai’ aconteceu durante uma experiência com cogumelos
alucinógenos”, relata o compositor. Durante a beberagem, ele diz que escutava
uma voz dizendo “Avôhai, Avôhai”. A droga, de algum modo, funcionou como uma
sessão de terapia, na qual, por meio de associações livres, o sujeito vai se
descobrindo, se revelando para si mesmo.
Passados alguns dias do uso dos cogumelos, Zé Ramalho escreveu a letra. “Ela
chegou de uma vez. (...) Peguei papel e caneta e fiz a letra muito rápido, tudo
chegava em um turbilhão. Foi a única vez que isso aconteceu, uma forte e
intensa experiência espiritual. Muito estranho... totalmente mediúnica. Como o
velho Billy [William Shakespeare] dizia, ‘há muito mais coisas entre o céu e a
terra do que podemos imaginar’. Havia muita coisa de [Bob] Dylan pairando em
minha cabeça. Eu ouvi como se fosse a voz dele. Quando fiz a letra, já sabia
dos movimentos musicais; quando estava escrevendo, já sabia das passagens
todas. A letra chegou junto com a melodia, e descreve minha experiência”.
A experiência, no caso, é a própria vida de Zé Ramalho. “‘O brejo cruza a
poeira’ é minha origem, o lugar onde nasci, de onde vim. A cidade de Brejo da
Cruz situa-se no sopé da chamada ‘pedra de turmalina’. (...) ‘O brejo cruza a
poeira’ é uma referência ao êxodo realizado quando abandonamos a cidade e nos
dirigimos a Campina Grande. (...) Essa poeira que cruzamos representa a saída,
a passagem de uma condição para outra, a partida definitiva do Brejo. Eu tinha
uns 5 anos de idade. Tudo ficou para trás: as brincadeiras com os meninos, como
bonecos de barro — cavalinhos e boizinhos —, correr atrás de bode no meio da
rua. (...) O terreiro da usina é uma referência a um local existente na cidade,
onde eu brincava em minha infância.”
A música inclui “várias formas de cantoria”, diz Zé Ramalho, como “martelo
agalopado, embolada. ‘Na altura em que mandar’ é uma expressão utilizada pelos
emboladores de coco — aqueles que tocam com pandeiro. O ‘pra doutor não
reclamar’ é uma outra tirada de embolada, que os caras usam para sair dos
desafios. ‘Avôhai’ é quase um martelo agalopado, mas comporta muitas formas de
cantoria diferentes. Tem muita informação dentro da música: visual, modalidades
poéticas. ‘Avôhai’ é uma música que atrai a atenção das pessoas, pela forma
como descreve as situações e as imagens que sugere. Ao mesmo tempo em que ela
descreve certos acontecimentos, convida as pessoas a participarem dessa viagem,
em razão do clima místico no qual ela se encontra impregnada: a figura do
velho, que carrega tantos símbolos e significados. ‘Avôhai’ é uma espécie de
elo perdido, aglutinando tudo, de trás para a frente e da frente para trás”. Se
é uma espécie de biografia de Zé Ramalho, um relato imaginativo de sua
infância, é também, na visão do artista, um relato “das origens da humanidade”.
O que o indivíduo não pode ou não quer revelar, escondendo partes incômodas da
vida íntima, o músico desvela por meio de sua arte. Zé Ramalho conta que
prefere não saber muito sobre a razão de a mãe ter permitido que fosse criado
pelos avós. Em “Avôhai” a figura central é o avô de Zé Ramalho — José Alves
Ramalho. “Avôhai é a figura do avô. Fui criado por ele, depois da morte de meu
pai [afogou-se quando Zé Ramalho tinha 2 anos]. Ele fez a figura do avô e do
pai.
Avôhai
é a junção da trindade avô, pai e filho. É também a Santíssima Trindade, e a
continuidade da espécie. Mas foi tudo inspirado pela figura de meu avô, que me
ensinou a amar a natureza, a não maltratar os animais, a levar uma vida reta.”
O músico era católico devoto, como os avós. Liam a Bíblia “frequentemente”.
“Ela passava de mão em mão e cada um lia um trecho.”
José Alves Ramalho, que viveu 83 anos, era “tudo” para Zé Ramalho. “Eu o via,
às vezes, como um leão, parado, olhando as crias. (...) Meu avô era aquele cara
que arranjava tudo, resolvia tudo.” O Avôhai, homem preocupado com formação e a
informação, queria que o neto soubesse das coisas. Tanto que Zé Ramalho prestou
vestibular e entrou para a faculdade de Medicina.
“Avôhai”, além de “discutir” a continuidade da espécie, representa, para o
místico Zé Ramalho, o começo da carreira. “Tudo começa com essa música.
‘Cruzando a soleira...’, o cara está chegando. Ela abriu meu primeiro disco e
uma porta; comecei a montar uma história incrível com essa música”, anota o
artista.
Zé Ramalho diz que “a companheira que nunca dormia só” é a solidão. “A porteira
da letra é uma referência à Porteira do Tendó, uma enorme gruta onde meu avô me
levava no horário do pôr do sol, e de onde saíam milhares de morcegos em busca
de alimento, fazendo um barulho impressionante. Aquilo me fascinava e me
assombrava ao mesmo tempo.”
Salman Rushdie conta em “Joseph Anton”, suas memórias do período em que esteve
escondido para não ser assassinado por iranianos, que só se tornou um grande
escritor, com romances consistentes, depois que decidiu falar do que sabia —
sua vida e a vida dos indianos. Zé Ramalho fez o mesmo percurso: “Só depois de
ter absorvido muita coisa pop é que descobri e compreendi o quanto os valores
da minha terra eram importantes. Era isto que faltava em meu trabalho: o
universo de minha terra, a coisa milenar, ligada às raízes, esse mergulho. Foi
quando eu entrei na cultura de cordel, dos violeiros. ‘Avôhai’ reúne todas as
informações do universo dos violeiros e repentistas, da literatura de cordel e
entra como balada, como Dylan, como Pink Floyd”. É uma música-síntese.
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Fonte: http://www.jornalopcao.com.br/
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