Por José Fanha
(Poeta e Escritor,
Comissário do I Encontro da Literatura Infanto-Juvenil da Lusofonia)
Sorrio
sempre que alguém diz: "Não gosto de ler."
Todo
o homem é um leitor. Lê imagens, sinais, signos e palavras. Lê a linguagem das
nuvens e sabe que vai chover. Lê a linguagem dos pássaros, a das cabras, a das
águas, lê todas as linguagens da natureza. Lê as linguagens que se lêem com a
vista, com o olfacto, com o sabor, com o ouvido, com a pele. Para sobreviver na
selva ou na tundra, os nossos antepassados dos tempos pré-históricos tinham que
ser muito bons leitores.
A
esta capacidade original de ler veio juntar-se a capacidade de nomear através
da palavra. Esse foi um primeiríssimo acto mágico e maravilhoso, fundador da
história da humanidade.
O
próprio mundo na tradição judaico-cristã é criado pela palavra. Segundo o Génesis:
"No
princípio, Deus criou os céus e a terra.
A
terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus
movia-se sobre a superfície das águas.
Deus
disse: 'Faça-se luz'. E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a
luz das trevas. Deus chamou dia à luz e noite às trevas."
O
criador do Homem e do Mundo disse: "Faça-se luz". Isto é, a palavra
gerou a coisa. Mais do que isso, a palavra e a coisa ficaram indissoluvelmente
ligadas. A coisa contém a palavra. Melhor, contém o nome. E o nome convoca a
coisa.
Aos
olhos de cada ser humano, aquela extraordinária descoberta que era a palavra
dita continha uma forma de poder sobre o objecto nomeado. Pelo menos cada
palavra era uma forma de um homem se aproximar da verdade nuclear daquilo que
era nomeado, da inteireza fragmentada entre céus e terra, água, fogo e ar.
Nomear seria uma forma de aproximação ao próprio acto primeiro dos deuses na
criação do mundo e das coisas.
Esse
era e é o poder dos analfabetos primários que são definidos desta forma pelo
poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Henzensberger: o analfabeto clássico
não sabe ler nem escrever, precisa da memória, e tem de exercer a capacidade de
narrar.
Foram
analfabetos que pegaram na palavra e inventaram a literatura nas suas formas
elementares, o mito, o conto, a canção, as rimas infantis. E é com esses
instrumentos que os analfabetos se relacionam consigo próprios, com os outros,
com o mundo, com o correr do tempo.
Sem
querer idealizá-los ou embarcar na
ilusão do bom selvagem, há que lembrar que sem tradição oral não haveria poesia,
não haveria livros. A escrita levou tempo a fazer a sua entrada em
cena. No entanto, inventada a escrita, durante muito tempo foi considerado
preguiçoso aquele que tivesse o hábito de recorrer ao livro, já que, segundo
Platão, a sabedoria na sua dialéctica tinha de ser oral.
O
escrito debilitava o pensamento e destruía a memória. Ao contrário do orador, o
texto escrito não era capaz de dar respostas nem se poderia defender quando
questionado.
A
verdade é que a escrita foi uma tecnologia que levou tempo a desenvolver-se e a
ser utilizada integral e proficuamente pelo pensamento filosófico e científico,
e bastante mais tempo ainda a entrar no quotidiano como um instrumento
generalizado de relação individual e, digamos, poética com o mundo, para além da
sua função de relatar o real.
No
seu excepcional romance Vinte anos e um dia, o escritor Jorge Semprún afirma
de uma forma simultaneamente definitiva e carregada de ironia que: “As
histórias completamente verídicas só interessam à polícia.”
De
facto, todos nós somos feitos do que vivemos, do que lemos, do que imaginamos e
do que escrevemos. Como leitores, preservamos pedaços do pensamento, da emoção
vivida ou escrita por outra pessoa para nos tornarmos nós próprios em
participantes de um acto de criação, uma forma de diálogo que desenvolvemos
connosco próprios, com o mundo e com o tempo.
É a
leitura e a escrita que nos permitem habitar o tempo para trás e para a frente,
no sentido da memória, ou da esperança.
Vivemos
um tempo dominado por uma economia que mata, como diz o Papa Francisco, uma
economia que reduz o entendimento da complexidade do mundo, que vê a cultura
como mercadoria e a ciência como estrito instrumento prático. Esta economia
reduz a vida dos homens a uma coisa sórdida e limitada em que o desejo é
estereotipado e a vida é uma prisão chamada tempo presente.
A
figura que há tempo domina a cena social é a do “analfabeto
secundário”. Pode ser um ministro, um gestor, uma empregada de caixa de
supermercado. Sabe ler e escrever mas diz com frequência que não tem tempo
para ler, tem coisas mais importantes para fazer. É activo, adaptável, tem
boa capacidade para abrir caminho, safa-se na vida. Está muito bem
informado sobre os importantíssimos assuntos do dia que amanhã
esquecerão. Sabe ler as informações de uso dos objectos que compra. Sabe
usar os cartões de crédito e sabe passar cheques. Vive dentro de um mundo que o
afasta hermeticamente de tudo quanto possa inquietar a sua consciência. A
atrofia da memória não o preocupa. Aprecia a sua própria capacidade para se
concentrar em nada. Vê a cultura como espectáculo ou mercadoria. Não tem a
menor ideia de que é um analfabeto, analfabeto secundário, mas
analfabeto.
A
sua escrita está reduzida ao mínimo. O seu meio ideal é a televisão, as redes
sociais, o SMS. Habita o território do lugar-comum e alimenta-se de doses
fartas das “reflexões” de comentadores, políticos, econômicos, desportivos e
outros produtores do pensamento único.
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Fonte: https://www.publico.pt/sociedade/noticia/meus-queridos-analfabetos-1682684
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