quinta-feira, 9 de março de 2017

Philia, Ágape e Eros: anatomia pensada do amor


Por Michel Aires de Souza (USP)

O amor em sua essência tem um duplo sentido. O mito do nascimento de Eros nos mostra a ambivalência do amor.  Esse mito foi contado por Diotina da Mantineia em um debate com Sócrates, no livro o Banquete de Platão, escrito no século IV antes de Cristo.  O mito mostra-nos os dois lados de Eros. Quando Afrodite a Deusa da beleza nasceu,  todos os deuses foram convidados, exceto Pênia (a Penúria).  A Deusa Pênia é a personificação da miséria. Por onde ela passa produz a escassez e a carência. Mesmo não tendo sido convidada para a festa, a Deusa dos desgraçados e miseráveis decide entrar para se alimentar dos restos de comida, pois estava morrendo de fome.  Ao perceber que todos os deuses estavam distraídos, se divertindo,  começa a comer.  No jardim encontra Poros (Abundância) embriagado, filho de Metis (A Prudência), personificação da riqueza.  Com isso faz amor com ele. Daí surge Eros, Deus do Amor.  Ao ser gerado no dia do nascimento de Afrodite, a Bela, Eros ama o belo, está sempre em busca da beleza. Mas sua vida é trágica. Como sua mãe,  Eros está sempre carente, mendigando. Ele sente-se infeliz e abandonado, sempre na penúria. Mas, por outro lado, por ser filho de Poros, é astuto, engenhoso e calculista. Está sempre em busca da beleza. Quando consegue conquistá-la sente plenitude e felicidade.
O amor é carência e plenitude ao mesmo tempo. Aquele que ama sente um vazio, uma falta, uma privação, que somente se dissipa através do outro.  O amor é uma busca constante para aplacar a dor da falta.  Nós amamos no outro a nossa incompletude. Como disse Marcel Proust, “só se ama o que não se possui completamente”. Por outro lado, o amor é pleno, belo, alegre e feliz. O outro nos preenche na medida em que satisfaz o nosso vazio interior. Nesse sentido,  o amor é uma linha tênue entre a carência e a abundância, a tristeza e a felicidade, o vazio e a plenitude. Quando dois indivíduos transcendem através do amor, eles se tornam plenos de felicidade, de abundância.
Contudo, é perigoso o amor que pensa encontrar no outro um pedaço de si mesmo. Amar no outro a si mesmo é poder perder-se a si mesmo. A pessoa apaixonada afirma: “Eu e você somos um só”. No auge do sentimento do amor as fronteiras entre o eu e a pessoa amada ameaçam desaparecer. O indivíduo se despersonifica, se desindividualiza, torna-se outrem. Os sentimentos e emoções afetam o indivíduo independentemente de seu consentimento.   É nesse sentido que podemos entender o conceito de paixão. A partir de sua etimologia, paixão vem de pathos, que, em grego, tem a mesma raiz de sofrer, suportar, deixar-se levar por. O amor intenso, fulminante e perturbador da alma,  impede o homem de perceber os acontecimentos com clareza. Também é nesse sentido que o amor, entendido como uma paixão arrebatadora, é doentio e perigoso, portanto, deve ser controlado. O verdadeiro amor consiste em doar-se, sem se anular. Amar é preservar a individualidade e a diferença do outro, sem perder de vista nossa própria individualidade. Amar é admirar e estar comprometido com a realização do outro. O ato de amar implica cuidados, responsabilidade, lealdade e autoconhecimento.
Os Gregos tinham três palavras para definir o amor: Philia, Ágape e Eros.  A palavra Philia refere-se à amizade.   A amizade é um amor incondicional, pois não impõe condições ou limites para se gostar. O amor entre amigos é desinteressado.  A confiança é o seu fundamento. Na amizade compartilham-se os pensamentos e os segredos, pois amigos são francos, nada se esconde um do outro.  O companheirismo, a preocupação, o respeito, a lealdade, o carinho são as características fundamentais de toda amizade. A palavra Ágape, por sua vez, refere-se ao amor fraternal. Surge do preceito cristão “amai uns aos outros como eu vos amei”. Era usada nos textos antigos para designar uma boa refeição em ritos de ação de graça. Daí surge à noção de eucaristia e caridade. É um tipo de amor universal ligado ao desprendimento, à filantropia, à generosidade e à fraternidade entre os homens. É o amor pela humanidade. Por último, Eros é o amor romântico e tem um caráter sexual.  Ele está ligado à atração e ao desejo, pois é fisiológico. No amor erótico duas pessoas são atraídas, se apaixonam e buscam a felicidade mutuamente. Contudo, Eros é ambivalente e tem uma influência fundamental na personalidade humana.  Ele produz grande satisfação e felicidade, mas pode desorientar o indivíduo mais conservador, pode destruir relações de amizade, interromper tarefas e destruir a vida de uma pessoa.
A partir desses três conceitos, podemos compreender melhor  a essência do amor. A relação amorosa é fundamental  para a felicidade dos indivíduos. O amor é um desejo de unidade e indivisão, de completude e de satisfação plena. O amor preenche a existência. A vida sem amor não vale a pena ser vivida. Por esta razão,  os três conceitos sobre o amor se tornam fundamentais para a vida amorosa.   O amor de Eros se desvela como um impulso de reprodução da espécie. Ele busca a satisfação do desejo, do prazer e da alegria. Contudo, o amor não se realiza apenas eroticamente, não se satisfaz apenas pela satisfação do prazer e da sexualidade.  A vida amorosa começa com Eros, pela apreciação da beleza, mas transcende a mera sexualidade. Por isso, é necessário o amor de Philia, para gerar a amizade, a reciprocidade, o companheirismo, a lealdade. O amor de Philia valoriza a confiança, os projetos compartilhados, o cuidado pelo outro. Contudo, não há amor sem Ágape, pois a generosidade, a preocupação e a doação de si também são fundamentais para a vida amorosa. Nesse sentido, a vida feliz no amor só pode existir através de Eros, Philia e Ágape.   Se faltar um desses três ingredientes não há amor. No amor não há interesses, mas somente afeição entre duas pessoas. A gratidão, a tolerância, o zelo, a amizade, o desejo, a paixão, a generosidade, a doação de si são produtos e ingredientes do amor.