sexta-feira, 29 de novembro de 2013

'Alegria Breve'

E por falar em literatura, uma menção a um livro pouco lembrado do lusitano Vergílio Ferreira: 'Alegria Breve'. A estética existencial da obra, diz-me Leont Etiel, logo de início se faz notar. De fato, como já foi resenhado, é um livro "em que os sons e os silêncios são enaltecidos. 'Alegria Breve' é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante." (in Ousar Ler). Palavras do próprio Vergílio Ferreira: 

Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram.

Alegria Breve

terça-feira, 26 de novembro de 2013

'Apenas o Vento'


Pelo que divulgam os suplementos culturais de alguns jornais, uma inesperada surpresa cinematográfica, no Brasil, tem sido a película húngara 'Apenas o Vento'. Em cartaz há quatro meses no Rio de Janeiro, tem sido um sucesso de bilheteria. O tema em pauta é, digamos, o 'respeito à diversidade', a partir do foco na situação dos ciganos na Hungria. A direção é de Benedek Fliegauf, que foi auxiliar de Miklos Jancsó em 'Os Sem Esperança'. Abaixo, uma apreciação do filme feita por Léa Maria Arão Reis em Carta Maior. E um breve trailer aqui: http://youtu.be/UZaorBChWX0

Quando sobra apenas o vento: caminho da liberdade ou a 
própria liberdade?


Por Léa Maria Arão Reis
Por que um filme modesto, de diretor desconhecido para a maioria das plateias, cinéfilos e espectadores leigos, vindo de um país sem um marketing convincente da sua indústria cinematográfica, e apresentando um tema distante de nós – a perseguição aos ciganos no leste da Europa – se mantém em cartaz há nada menos que quatro meses, no Rio de Janeiro, embora em cinemas pequenos e horários restritos?
O húngaro Benedek Fliegauf é o autor da proeza. Dirigiu Apenas o vento e integra o grupo de cineastas do jovem cinema magiar que está rodando o mundo. Foi assistente do mitológico diretor  Miklos Jancsó, de Os vermelhos e os brancos e Os sem esperança. Pouco tem a ver, do ponto de vista formal, com o cinema de outro compatriota de peso, Istvan Szabó, diretor de filmes clássicos, exibidos no Brasil: as obras primas Coronel RedlMefisto eTomando partido - O caso Furtwängler, que trata do interrogatório do genial maestro alemão Wilhelm Furtwängler por um oficial do exército de ocupação americano - Harvey Keitel faz o papel -, no imediato pós-guerra, em Berlim.
Seu cinema é quase experimental.
Bence, como Benedek é conhecido, tem 39 anos, vive e trabalha na Alemanha. Cancelou projetos em andamento para voltar a Budapeste onde fez este filme entre 2008 a 2009 depois de ler, na imprensa alemã, os casos de massacres de ciganos que ocorriam em zonas rurais da Hungria. Autor de um filme ambiente (como ele define), sem diálogos, chamado Via Láctea, que alcançou notoriedade na Europa, e de outro reconhecido no circuito dos melhores festivais, Dealer, agora, com Apenas o vento, ele levou o Premio Especial do Júri no Festival de Berlim e chegou a ser incluído na lista de pré-candidatos dos melhores estrangeiros do Oscar.
A história versa sobre a série de covardes ataques a famílias ciganas, pessoas desarmadas, adultos, velhos e crianças pequenas, abatidas a tiros de fuzil no meio da noite, nas casas de suas comunidades enquanto dormiam. Mais de cinquenta pessoas foram vítimas.
Baseado em documentação pública, Benedek criou essa história de uma família de ciganos vivendo em uma área afastada, na floresta. A mãe trabalha, a filha estuda, o menino - de cujo ponto de vista a trama é narrada - está envolvido em atividades escusas e o velho avô se mantém em casa. São vizinhos de uma das famílias massacradas. O pai, ausente, se encontra no Canadá, à espera de reunir dinheiro suficiente para retirar a família desta vida sórdida e paupérrima.
A narrativa de Fliegauf é naturalista, a câmera é ofegante e trêmula, e não deixa em qualquer momento de seguir e vigiar o pequeno grupo de personagens, atores amadores, alguns ciganos, durante os 86 minutos da produção que pode ser cansativa ao espectador. Ao contrário, no entanto, o ritmo ansioso pode, em alguns casos - e eles são muitos, visto o sucesso comercial do filme - garantir a atenção e segurar o interesse no suspense deste thriller sombrio - uma das marcas do cinema de jovens diretores e escritores escandinavos, do norte europeu, dos Bálcãs e da Europa oriental, estes, herdeiros da tradição artística da região na qual se misturam à depressão um travo de melancolia, de tédio, racismo e brutalidade.
Aos jornalistas que o entrevistaram no Festival de Berlim e indagaram se Fliegauf se reconhece nesta tradição específica, de Bela Tarr, dos russos, Kieslowski, Tarkowski, de Stieg Larsson (o autor da série Millenium), fazendo filmes obscuros e com certa melancolia, ele resumiu a sua linha de trabalho como resultado de pertencer a uma geração que, ao nascer, encontrou “este mundo de hoje, consumista e conformista.”
Para Fliegauf, o racismo e o empobrecimento da população húngara transformam os ciganos em bodes expiatórios da crise econômica do continente e oferecem um retrato explosivo da situação no seu país que não é bem visto pela União Europeia embora faça parte dela, mas não da zona do euro. Governado pela direita, por conservadores, ex-comunistas hoje liberais, o governo nacionalista sonha com uma nova “grande Hungria”, liderada por um inflexível Viktor Orbán.
Durante dois anos, o diretor entrevistou grupos de ciganos em diferentes regiões de seu país. A intenção era filmar exclusivamente com atores ciganos. Não foi possível e garante que há mais racismo entre eles próprios. “Os ciganos só queriam fazer o filme se fosse uma produção para a TV; queriam a celebridade fácil”.
Mas mesmo com este quadro étnico complexo em sua terra, o jovem cineasta húngaro oferece um retrato impressionista do que é uma comunidade marginalizada pelo racismo e pelo preconceito em um filme praticamente sem diálogos, com parca trilha musical e sons ambientes inquietantes.
A câmera de Benedek, com imagens insistentes beirando o abstrato, nos devolve uma Europa onde as diferenças, dentro de um cenário econômico difícil, estão sendo cada vez menos toleradas. E nos sugere refletir sobre o mundo de hoje onde os indivíduos são substituídos com desenvoltura e abatidos sem piedade ao sabor do vento.
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terça-feira, 19 de novembro de 2013

João Pessoa: poesia na 'calçada'


“Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Com esta assertiva, Tolstói principia Ana Karênina, um clássico da literatura que, do particular, reflete o universal. Porque, na verdade, é isso: no mundo das letras (e possivelmente não só), o particular transubstancia-se em universal.  Assim, parece pouco sensato insistir numa linha demarcatória rígida acantonando uma literatura chamada de regional. Digo assim para falar sobre a obra do poeta potiguar Janduhi Medeiros.  Pela relação de amizade, cujas raízes remontam aos tempos dos bancos universitários em Pernambuco,  vi o advogado Janduhi ir transformando-se em poeta, tudo começando com o livro Carnavais e Outros Poemas. Agora ele faz vir a lume o seu Calçada de Bodega, numa incursão que, pela ‘prosa poética’, rememora reminiscências de um tempo que já se ausenta fazendo-se presente pela saudade que desperta. Pois bem, na próxima sexta-feira (22/11), Janduhi estará apresentando a sua ‘Calçada’ em João Pessoa, a partir das 19h00, no Sindicato dos Bancários. Vamos lá!
Janduhi Medeiros: memória, saudade e poesia 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Entrando numa bolha

Na Folha de São Paulo (versão online para assinantes), Mark Weisbrot, Diretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas de Washington, volta a tratar da 'questão das bolhas'. Desta feita, tendo como foco a situação do câmbio/dólar na Venezuela. Embora seja focado num caso específico, o artigo tem significativo valor para o entendimento do problema das bolhas, e assim é útil para entender o que tem sido realçado, como advertência,  para o Brasil, no tocante ao setor imobiliário. A seguir, o texto. 


Por Mark Weisbrot

As bolhas de ativos são tão antigas quanto o mercado. Podem ter origens e especificidades históricas diferentes, mas a dinâmica fundamental é relativamente simples.
As pessoas compram algo porque seu preço está subindo e elas acreditam que subirá mais. Isso empurra o preço ainda mais para cima e convence mais pessoas a comprar pela mesma razão. Até a realidade se impor, e a bolha desabar.
Os Estados Unidos tiveram as duas maiores bolhas de ativos da história mundial nas duas últimas décadas: a bolha do mercado de ações, que estourou em 2000-2002, e a bolha imobiliária, que se desfez em 2006. As duas tiveram consequências graves: ambas provocaram recessões ao estourar, tendo a bolha imobiliária desencadeado a Grande Recessão, nossa pior recessão desde a Grande Depressão.
As bolhas foram especialmente dolorosas para as pessoas que compraram os ativos quando estavam no pico ou perto dele. Milhões de pessoas perderam suas casas quando a bolha imobiliária estourou.
Olhemos agora para a bolha de ativos do momento: na Venezuela, vê-se uma bolha do mercado negro de dólares. De acordo com informações disponíveis, a cotação já chega a 59 bfs (bolívares fortes) por dólar, sendo que, em janeiro, era 18 bfs. A taxa de câmbio oficial é 6,3 bfs por dólar, e há outra taxa de câmbio determinada em leilões do governo e que estaria em torno de 12 bfs.
A que se deve essa alta recente tão rápida no preço do dólar no câmbio negro? A razão principal é que as pessoas preveem que o dólar continue a subir, assim como, em 2006, os americanos previam que os preços dos imóveis residenciais nos Estados Unidos continuariam a crescer.
Mas não há razão digna de crédito para que isso aconteça. É verdade que a inflação subiu no último ano, mas a alta não está ficando acelerada, nem mesmo é consistente. A inflação chegou ao pico em maio, a 6,1% no mês, e, em agosto, já tinha caído para 3%. Desde então, voltou a subir, chegando a 4,4% em setembro e 5,1% em outubro, mas é evidente que não se trata de um cenário de hiperinflação.
O governo diz que não tem planos de desvalorizar o bolívar forte, mas, mesmo que deixasse a moeda venezuelana flutuar livremente em relação ao dólar, ela nunca se estabilizaria a um nível que nem sequer chega perto da taxa no mercado negro.
Assim, um venezuelano que adquire dólares no câmbio negro agora porque pensa que é um ativo de valor ou uma proteção contra a inflação está comprando ativos de uma bolha. Seria como comprar no Nasdaq, nos Estados Unidos, quando estava a 5.050, em março de 2000. Em outubro de 2002, o Nasdaq caiu para 1.140 e ainda hoje, mais de dez anos depois, está em 3.860.
É claro que todas as bolhas têm explicações populares que justificam que se entre na onda. Quem não se lembra da "nova economia" nos Estados Unidos, usada para justificar preços que não guardavam relação alguma com a realidade no mercado de ações? Na Venezuela, muitas pessoas pensam que, ao comprar dólares, estão fazendo uma aposta na qual não têm como sair perdendo. Elas vão se surpreender quando a bolha estourar.
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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Economia dos imóveis: Brasil a caminho de uma bolha?

Chama-se Robert Shiller, é Professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e foi um dos três laureados, este ano, como o Prêmio Nobel de Economia. Um dos seus focos é a economia comportamental e dos imóveis. Em recente passagem pelo Brasil, deixou o alerta, a meu ver consistente, segundo o qual o país pode se encontrar a caminho de uma bolha imobiliária. Fala com propriedade, pois, a respeito de tal assunto, fez a mesma previsão nos Estados Unidos, que de fato se confirmou, levando o país a uma profunda crise. É uma boa opção comprar um imóvel neste momento? Da análise de Shiller, infere-se que é necessário ter cautela. De forma mais direta, ele tem em conta sobretudo o Rio de Janeiro e São Paulo. Contudo, o alcance da sua análise tem dimensão nacional. E, cá entre nós, desconfio que ela apanha, "em cheio", João Pessoa. É simplesmente irracional, empiricamente falando, a configuração das variáveis econômicas do mercado de imóveis na cidade. Em questões assim, vemos a relevância que tem, para a sociedade, fazer ciência social. Abaixo, extratos de uma entrevista concedida pelo referido economista à Revista Exame.  

O professor de Yale Robert Shiller, especialista em mercado imobiliário, debate a crise dos subprime em 2007
Schiller (ao centro) e os imóveis: alugar pode ser melhor que comprar 

EXAME.com – Devido a motivações históricas, encarar imóveis como investimentos sólidos está em nosso DNA. Ter uma casa, no Brasil, é quase uma obrigação. Contudo, recentemente o senhor disse que acreditava que imóveis residenciais, como investimentos, são uma ilusão. Como então os brasileiros deveriam encarar o mercado de imóveis residenciais?
Robert Shiller – É difícil fazer previsões a respeito de mercados especulativos como o de imóveis residenciais. Atualmente, não só o Brasil, mas também muitos outros países estão passando por um “boom” no mercado imobiliário. Mas podemos esperar que essa alta continue? No Rio, os preços dos imóveis residenciais mais que dobraram, acima da inflação, nos últimos cinco anos. Ora, em Vancouver, que é a cidade mais próxima de uma bolha no Canadá, os preços também mais que dobraram nos últimos anos. O que está acontecendo em Vancouver? O investimento em imóveis está no DNA brasileiro, mas também está no DNA de outros lugares, como Canadá, Hong Kong e Índia. Eu tenho esse mau presságio em relação a todas essas pessoas em diferentes países com essa ideia de que imóveis residenciais são um ótimo investimento. Eu acho que está errado.
EXAME.com – O senhor acha que é um mercado mais especulativo, então?
Shiller – Bem, se você vê os preços dobrarem no Rio em apenas cinco anos, isso parece certo? O que está acontecendo? Pode haver uma razão para isso, o Brasil tem crescido bem, há uma classe média crescente e a indústria de concessão de crédito está ficando mais forte, mas eu não acho que isso justifica dobrar de preço tão rapidamente. O que eu acho  é que é uma bolha.
EXAME.com – O Rio vai sediar a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, e a cidade está em obras, por exemplo, de infraestrutura de transportes. Os níveis de violência estão diminuindo. O senhor acha que mesmo com essas melhorias na cidade, a elevação de preços foi rápida demais?
Shiller – Eu acho que sim. É algo que eu enfatizo em meu livro “Exuberância Irracional”, que começou falando de bolhas no mercado de ações e foi atualizado para incluir as bolhas imobiliárias. Uma coisa que acontece durante as bolhas é que as pessoas se apegam a alguma estória dramática como “as Olimpíadas estão chegando”, e aquela estória vai sendo enfatizada desproporcionalmente durante a formação da bolha. As pessoas gostam de ouvir esse tipo de estória, porque isso as encoraja. Antes dos Jogos Olímpicos de Atlanta, nos Estados Unidos, nos anos 90, houve gente dizendo que a cidade seria revitalizada e que os imóveis iam se valorizar. Bem, eles podem ter valorizado um pouco, mas não houve um efeito duradouro e permanente.
EXAME.com – OK, então como investimentos os imóveis não são tão eficientes. Mas comprar uma casa para morar é fundamental na vida de uma pessoa? É uma base importante para uma família?
Shiller – Para algumas pessoas, sim. A casa dá uma base estável, vizinhos estáveis e um senso de comunidade. Eu acho bom, eu tenho uma casa. É razoável para muita gente. Por outro lado, eu conheço famílias que vivem em apartamentos alugados e sim, talvez elas sejam espertas. Porque o aluguel, na verdade, liberta você. Você perde o senso de comunidade e de permanência, mas está livre do trabalho de manter uma casa e ganha mobilidade. Isso significa poder aceitar um novo emprego em outro lugar mais rapidamente, é só pegar suas coisas e ir. Além disso, se você mora de aluguel, você pode investir seu dinheiro em outras aplicações e diversificar muito melhor.
EXAME.com – Quais são os motivos certos para se comprar uma casa?
Shiller – Há certos tipos de propriedade que só costumam estar disponíveis para venda, que não são alugadas facilmente, como uma linda casa em um bosque, por exemplo. Ou então se você sonha com uma linda casa com jardim em um determinado lugar, que seus filhos e depois seus netos vão visitar. Pode ser que você viva pelo resto da sua vida naquela casa, e eu acho que isso tem grande apelo para as pessoas. O problema é que essa permanência pode não funcionar, porque você pode perder seu emprego, ou ter uma oportunidade em outro lugar, e aí você vai acabar tendo que vender a sua casa de qualquer forma. Não entrar nessa pode lhe garantir mais sucesso. Mas o importante é não comprar porque você acha que o imóvel vai se valorizar. Porque é isso que as pessoas pensam, especialmente agora, e eu acho que isso é um erro. O mercado de ações tem um histórico muito melhor de valorização e permite diversificação.
EXAME.com – O senhor acha que há problemas no mercado imobiliário residencial de São Paulo também? Ou só o Rio preocupa?
Shiller – São Paulo não teve uma alta tão forte quanto o Rio, mas está perto. As duas cidades são parecidas no sentido de que são cidades famosas. E cidades famosas tendem a ter mais bolhas, porque as pessoas acham que elas podem valer muito. Há uma boa chance de que São Paulo e Rio continuem se valorizando por mais alguns anos e que depois os preços desabem.
EXAME.com – Qual é o comportamento normal dos preços no mercado imobiliário residencial? É subir e descer como uma montanha-russa? Como seria uma alta de preços “normal” no mercado imobiliário?
Shiller – Ninguém sabe realmente. Na maior parte dos países, ninguém coletou dados sobre o comportamento do mercado imobiliário. Quando eu criei meus índices de preços de imóveis Case-Shiller, nos Estados Unidos, virtualmente não havia índices de preços. No Brasil, não havia nada até o lançamento do Índice FipeZap, não é incrível? Eu acho que a cultura está mudando, nós estamos ficando mais especulativos em relação a imóveis residenciais. Esse mercado geralmente não se movia como uma montanha-russa. Isso é tão novo que não dá para saber o que é padrão e usual.
EXAME.com – Eu gostaria de falar um pouco sobre o seu último livro, “Finanças para uma Boa Sociedade”. Quais são os limites do Capitalismo Financeiro e quem os estabelece? Onde a contribuição dele para a sociedade termina, e a ganância, a irracionalidade e o objetivo de ganhar dinheiro começam?
Shiller – O Capitalismo Financeiro agora varre o mundo, porque se descobriu que ele traz prosperidade a muita gente. O problema é que ele não parece dividir essa prosperidade igualmente, e nós temos visto uma elevação na desigualdade em muitos lugares ao redor do mundo. Quem trabalha com finanças costuma ter sucesso e ganhar muito dinheiro. Mas nós também precisamos de cientistas, médicos e professores, profissões críticas para uma sociedade bem-sucedida. Talvez os financistas venham recebendo recompensas altas demais, e pode haver uma certa bolha nos empregos nessa área, que pode sofrer uma correção. Se não, eu acho que os governos deveriam fazer algo para manter um certo nível de igualdade econômica. Nós não podemos deixar isso chegar longe demais. Deveria haver um plano para lidar com desigualdades crescentes.
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sábado, 9 de novembro de 2013

'Contos do Nascer da Terra'


Diz Mia Couto que “acendemos paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre o vôo e a prisão do charco. No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara”. Pois bem, em Contos do Nascer da Terra, o autor não perde essa trilha. Livro que reúne 35 contos, nele fala-se de identidade, de raízes e de pés assentes na imprevista terra. Um rápido realce, como amostra, no que é encontrado na obra:
“Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte, pôs-se em bico de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma bola.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebenta mundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direções, para lá e para além, recolhendo pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
- Pai!
Então se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra.”



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sobre analfabetismo funcional, universidade e powerpoints vazios

O curto texto abaixo, de autoria de Thomaz Wood Jr. (Professor da Fundação Getúlio Vargas), é lapidar. De forma direta, trata de uma realidade cada vez mais presente no meio universitário. Tomara que não rumemos para um 'reino de invertebrados intelectuais', como ele suspeita. Contudo, a resistência à leitura e a 'cultura das apostilas' pavimentam o caminho. 

analfabetismo funcional

 Por Thomaz Wood Jr

A condição de analfabeto funcional aplica-se a indivíduos que, mesmo capazes de identificar letras e números, não conseguem interpretar textos e realizar operações matemáticas mais elaboradas. Tal condição limita severamente o desenvolvimento pessoal e profissional. O quadro brasileiro é preocupante, embora alguns indicadores mostrem uma evolução positiva nos últimos anos.
Uma variação do analfabetismo funcional parece estar presente no topo da pirâmide corporativa e na academia. Em uma longa série de entrevistas realizadas por este escriba, nos últimos cinco anos, com diretores de grandes empresas locais, uma queixa revelou-se rotineira: falta a muitos profissionais da média gerência a capacidade de interpretar de forma sistemática situações de trabalho, relacionar devidamente causas e efeitos, encontrar soluções e comunicá-las de forma estruturada. Não se trata apenas de usar corretamente o vernáculo, mas de saber tratar informações e dados de maneira lógica e expressar ideias e proposições de forma inteligível, com começo, meio e fim.
Na academia, o cenário não é menos preocupante. Colegas professores, com atuação em administração de empresas, frequentemente reclamam de pupilos incapazes de criar parágrafos coerentes e expressar suas ideias com clareza. A dificuldade afeta alunos de MBAs, mestrandos e mesmo doutorandos. Editores de periódicos científicos da mesma área frequentemente deploram a enorme quantidade de manuscritos vazios, herméticos e incoerentes recebidos para publicação. 
O problema não é exclusivamente tropical. Michael Skapinker registrou recentemente em sua coluna no jornal inglês Financial Times a história de um professor de uma renomada universidade norte-americana. O tal mestre acreditava que escrever com clareza constitui habilidade relevante para seus alunos, futuros administradores e advogados. Passava-lhes, semanalmente, a tarefa de escrever um texto curto, o qual corrigia, avaliando a capacidade analítica dos autores. Pois a atividade causou tal revolta que o diretor da instituição solicitou ao professor torná-la facultativa. Os alunos parecem acreditar que, em um mundo no qual a comunicação se dá por mensagens eletrônicas e tuítes, escrever com clareza não é mais importante.
O mesmo Skapinker lembra uma emblemática matéria de capa da revista norte-americana Newsweek, intitulada “Why Johnny can’t write”. Merrill Sheils, autora do texto, revelou à época um quadro preocupante do declínio da linguagem escrita nos Estados Unidos. Para Sheils, o sistema educacional, da escola fundamental à faculdade, desovava na sociedade uma geração de semianalfabetos. Com o tempo, explicou a autora, as habilidades de leitura pioraram, as habilidades verbais se deterioraram e os norte-americanos tornaram-se capazes de usar apenas as mais simples estruturas e o mais rudimentar vocabulário ao escrever, próprios da tevê.
Entre as diversas faixas etárias, os adolescentes eram os que mais sofriam para produzir um texto minimamente coerente e organizado. E o mundo corporativo também acusou o golpe, pois parte de sua comunicação formal exige precisão e clareza, características cada vez mais difíceis de encontrar. Educadores mencionados no artigo observaram: um estudante que não consegue ler e compreender textos jamais será capaz de escrever bem. Importante: a matéria da Newsweek é de 1975!
Quase 40 anos depois, os iletrados trópicos parecem sofrer do mesmo flagelo. Por aqui, vivemos uma situação curiosa: de um lado, cresce a demanda por análises e raciocínios sofisticados e complexos. E, de outro, faltam competências básicas relacionadas ao pensamento analítico e à articulação de ideias. O resultado é ora constrangedor, ora cômico. Nas empresas, muitos profissionais parecem tentar tapar o sol com uma peneira de powerpoints, abarrotados de informação e vazios de sentido. 
Na academia, multiplicam-se textos caudalosos, impenetráveis e ocos. Se aprender a escrever é aprender a pensar, e escrever for mesmo uma atividade em declínio, então talvez estejamos rumando céleres à condição de invertebrados intelectuais.
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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

'A longa brevidade da vida'

Autor de 'um texto denso', o lusitano António Lobo Antunes é um escritor bastante singular. Formado em medicina, com área de especialização em psiquiatria, leva a cabo, por vezes, uma 'obsessividade labiríntica' e mistura presente e passado em diferente narrativas que ocorrem em simultâneo. Não faz, portanto, uma literatura com concessões ao óbvio. Isso pode ser visto, por exemplo, no seu Manual dos Inquisidores. 'Merecia o Nobel', já foi dito. Mas, claro está, não é necessário conquistar esse galardão para só então o talento de um escritor ser reconhecido (não é mesmo). Lobo Antunes é uma demonstração nesse sentido. Abaixo, uma crônica de sua autoria, que, intitulada A longa brevidade da vida, é 'labiríntica' e 'intrigante' sobre determinadas rotinas configuradas por alguns tipos de sociabilidade que formatam modos humanos de viver. 


Por António Lobo Antunes 

O marido não falava: lia o jornal. Quando não lia o jornal olhava a parede em frente. Aos domingos, a seguir ao almoço, ia ao quarto pôr a gravata e ficava à espera, junto à porta, sem uma palavra, que ela mudasse de roupa, desse um jeito ao cabelo, e viesse ter com ele. Então desciam do segundo andar a pé, porque o elevador não era de confiança, e saíam para o cinema. O marido mostrava dois dedos à empregada que vendia os bilhetes, explicando-lhe que duas pessoas, e apontava o cartaz do filme mais perto. No intervalo permaneciam sentados, diante do écran vazio, sem conversarem, da mesma forma que não conversavam no regresso a casa. Em casa a mulher mudava de novo de roupa para fazer o jantar. Ao acabar estava escuro na sala, nenhum candeeiro aceso e, no meio do escuro, o marido sentado no sofá em silêncio, com a mesa já posta, o que surpreendia a mulher dado que não se ouvia nenhum ruído de loiça. A mulher ligava as três lâmpadas do tecto e trazia a sopa. Depois da sopa o borrego. Depois do borrego o arroz doce. Depois do arroz doce o digestivo. Depois do digestivo arrumava tudo na máquina e instalava-se no sofá também, com o crochet. Se uma ambulância aos gritos na rua o prédio estremecia. Se nenhuma ambulância na rua as vozes do andar de cima e de vez em quando uma criança a chorar, de vez em quando uma discussão até que uma voz de homem
- Acabou-se a conversa
e com o
- Acabou-se a conversa
paz de novo. Em certas alturas a mulher quase desejava que o marido
- Acabou-se a conversa
também, mas era difícil acabar uma conversa que não tinha começado. Passada meia hora ou assim o marido ia deitar-se, e a mulher ficava a ouvir a escova de dentes eléctrica, conforme ouvia o estalo das tábuas da cama protestando contra o peso do marido. Era uma cama antiga, de bilros, a mesma da época em que casaram, trinta e seis anos antes. Toda a mobília, aliás, existia desde há trinta e seis anos antes, oferecida pelos pais dele, que não seriam ricos mas tinham algumas posses. Mais recente, que a mulher se lembrasse, só o tapete da sala que de resto principiava a gastar-se, sobretudo nos sítios onde os pés da mesa de apoio se afundavam nele, e nos quais já se percebia a trama. Por vontade sua a mulher mudaria o tapete, chegou a sugerir
- Era capaz de ser melhor mudarmos o tapete
porém, como não houve resposta, não teimou. Pensou em mudar o tapete sem o informar, visitou várias lojas estudando preços, perguntou-se
- Para quê?
e desistiu. Para quê, de facto? E demais a mais a gente vai-se habituando aos objectos e acaba por ter saudades deles quando desaparecem. Teria saudades do marido se ele desaparecesse? Julgou que sim, julgou que não, julgou que sim, cessou de julgar. Em trinta e seis anos o marido não desaparecera nunca e, portanto, seria pouco natural que desaparecesse agora, perto dos setenta. Para mais afigurava-se-lhe que de há semanas para cá ele começara a arrastar um pouco umas das pernas e de perna arrastada ninguém vai muito longe. Para onde iria ele, de resto? Não possuía amigos, não frequentava cafés, não recebiam nem visitavam fosse quem fosse, nunca reparara num soslaio interessado para senhora nenhuma: lia o jornal, olhava a parede e acabou-se. Há quantos lustros não lhe tocava? Ao calcular há quantos lustros não lhe tocava chegou-lhe do andar de cima um
- Acabou-se a conversa
que a sobressaltou o bastante para deixar os cálculos de lado. Há assuntos em que é melhor deixar as questões como estão, e a mulher era uma criatura prudente. Aos sessenta e cinco anos vai-se ganhando bom senso, para quê arranjar maçadas agora? De modo que acabou por ir para a cama também, guiando-se pela claridade dos intervalos dos estores. Ao deitar-se nenhuma tábua estalou, o marido dormia numa respiração lenta, quando se preparava para se voltar para um dos lados percebeu-lhe um murmúrio
- Sissi
e ficou a repetir para dentro
- Sissi, Sissi
por acaso o nome da empregada que vinha uma tarde por semana ajudar nas limpezas, uma criatura baixa e gorda, viúva, com o filho preso por uma questão de drogas ou um problema no género. A criatura baixa e gorda não era de grandes expansões e o marido, estava certa disso, nem atentava nela. Nem atentava nela? Se nem atentava nela porque carga de água o
- Sissi
num soprozinho que classificou de enternecido? Decidiu sacudir-lhe o ombro
- Que história é essa da Sissi?
meditou com mais calma, não se atreveu, porém o facto é que não conseguia livrar-se daquele nome. Foi à cozinha beber água para acalmar os nervos, descalça, sujeitando-se a uma constipação ou uma gripe, o azulejos gelados, ela sensível do nariz, o médico, na última consulta
- Atenção aos pulmões que já não vai para nova
e a hipótese de uma pneumonia aterrou-a. Na bancada estavam algumas facturas por pagar e no meio das facturas uma página solta do bloco onde assentava as coisas a comprar no centro comercial, em que encontrou escrito
- Até para a semana meu ursinho rechonchudo, Sissi
e ficou séculos a reler aquilo, aparvalhada, Meu ursinho rechonchudo, Sissi, meu ursinho rechonchudo, Sissi, até que principiou a sentir-se cansada, estrangulou um bocejo e decidiu voltar para a cama. Ao fim de trinta e seis anos não era fácil substituir o marido mas podia muito bem substituir o tapete da sala. E, com um tapete novo na ideia, adormeceu quase contente.
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