sábado, 26 de janeiro de 2013

O sofrimento dos professores


A vida dos professores não tem sido fácil. Eles têm sido responsabilizados por uma série de problemas no campo educacional, tanto da parte macro (do sistema, digamos) como da micro, isto é, no quotidiano das escolas/salas de aula. Geralmente são responsabilizados por todos os problemas e insucessos na relação de ensino-aprendizagem. Determinado objetivo não foi atingido, culpa do professor! Evasão/desistência, culpa do professor! E quando ele procura levar realmente a sério o seu trabalho, deve também estar preparado para as incompreensões. No mínimo, poderá ser chamado de chato, exigente, etc. Daí não ser surpresa que aumente o número de pessoas na área sem compromisso profissional efetivo, que de fato se empenhem e façam acontecer aquilo que, de específico, se espera de um professor: ensinar os conteúdos da sua disciplina. O fato novo em relação ao sofrimento dos professores, é que ele começa discutido publicamente. Os debates a respeito da chamada síndrome bornout são ilustrativos disto. E também está aumentando o número de pesquisas tendo como objeto o sofrimento dos professores. Abaixo, um texto neste sentido, decorrente de um trabalho de mestrado. 


Professores sob pressão: sofrimento e mal-estar na educação1

Rosana Márcia Rolando AguiarI; Sandra Francesca Conte de Almeida

Sobre a escuta dos graduandos do curso de Pedagogia-séries iniciais
O presente trabalho pretendeu discutir o sofrimento psíquico de professores do Ensino Fundamental, as implicações desse fenômeno no processo pedagógico, bem como a impossibilidade de um sujeito "produzir" uma doença psíquica de forma individual, desvinculada das condições sociais de seu trabalho e das relações interpessoais com o outro.
Como docente do curso de formação de professores do Projeto Professor Nota Dez, desenvolvido pelo Centro Universitário de Brasília (UNICEUB), situado no DF, o sofrimento de alguns alunos em suas práticas pedagógicas pôde ser escutado pela primeira autora do trabalho. Esses alunos falavam de suas raivas, decepções e ressentimentos. Denunciavam o real da vida de professores: falavam sobre suas angústias e doenças em decorrência da pressão constante e do sofrimento por eles vivido na prática docente.
O curso – Formação de Professores para Séries Iniciais do Ensino Fundamental – Professor Nota Dez –aconteceu como um projeto implantado pelo UniCEUB, pelo curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências da Educação (FACE), financiado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, mediante contrato para atender em torno de 3.000 professores da rede pública, que se encontravam em exercício da docência nas séries iniciais do Ensino Fundamental, sem, no entanto, possuírem habilitação de nível superior.
Os alunos participantes desta pesquisa, todos eles professores de séries iniciais, apresentaram muitas queixas das quais se pode ressaltar que eram reclamações generalizadas: uma delas era a falta de compromisso das famílias para com a escola, pois muitos pais sequer acompanhavam seus filhos pequenos no processo educacional; quando eram chamados à escola para reuniões ou mesmo individualmente, para discutirem com os professores questões a respeito dos alunos, a grande maioria raramente comparecia. Na opinião dos professores havia um verdadeiro abandono das crianças pelos pais, e esse abandono era denunciado pelos alunos sob forma de indisciplina, violência e dificuldades das mais diversas ordens. Outra queixa bastante presente no discurso dos professores era a falta de apoio dos coordenadores e diretores das escolas. Os professores se sentiam inseguros, pois se viam sozinhos e despreparados quando precisavam tomar decisões pertinentes às dificuldades de seus alunos.
Bueno e Lapo (2002) afirmam que "por se encontrarem inseridos em uma sociedade que se transforma muito rapidamente e que exige constantes mudanças e adaptações, eles se sentem insatisfeitos ao não conseguirem dar conta das exigências que lhe são feitas no campo profissional. Essas exigências nem sempre são explicitadas e entendidas pelos professores, mas são sentidas através da percepção de que as coisas na escola não estão indo bem, de que por mais que se esforcem não conseguem atingir um nível de excelência exigido pela sociedade a ponto de reverter a situação de precariedade em que se encontram" (p.13).
Diante desses impasses, o professor se vê convocado a tomar decisões, desde estratégias para o ensino de alunos que não aprendem e crianças com dificuldades no comportamento, até decisões que visam facilitar a aprendizagem do aluno, como convocar os pais à escola e propor-lhes um trabalho em conjunto. Mas, ao perseguirem o ideal de realizar um trabalho de qualidade, se vêem frustrados, não acolhidos em suas demandas, o que os faz desistir, por vezes, desse mesmo ideal.
Infelizmente, pode-se afirmar que grande parte dos docentes se apresenta como profissionais frustrados, desanimados e impotentes diante da grande crise vivida hoje na educação; pais demitidos de sua função de cuidadores, crianças violentas, escolas públicas sucateadas, falta de programas governamentais que sejam realmente implementados e, portanto, cumpridos.
Essa realidade tomou um sentido importante, pois despertou-nos o interesse pelo sofrimento psíquico dos professores. Chamou-nos a atenção o grande número de alunos com atestados médicos, completando suas tarefas em casa.
Os participantes da pesquisa foram 16 professores do Ensino Fundamental da SEDF, regentes de sala de aula, de escolas públicas do DF, do sexo feminino e masculino, com idades entre 25 e 40 anos, graduandos em pedagogia-séries iniciais. Estes docentes foram individualmente convidados a participar da pesquisa, face às manifestações de mal-estar/sofrimento psíquico nas salas de aula (sonolência, desinteresse, apatia e relatos de estresse e depressão).
Assim, o estudo teve como objetivo investigar o sofrimento psíquico de professores como um dos principais sintomas do mal-estar na educação, considerando que o sintoma, em psicanálise, é entendido como "solução de compromisso (...) que o sujeito encontra para dar conta do conflito entre a problemática inconsciente e suas defesas" (Chemama, 1995, p.203).
Utilizou-se o recurso dos relatos autobiográficos da trajetória profissional como dispositivo de "escuta" do sofrimento dos professores ao mesmo tempo em que se lhes assegurava seu lugar de sujeito, ao resgatar sua palavra e implicá-los na sua história de vida.

A crise na educação: escola e profissão docente na modernidade
A nomeada crise social e familiar, na sociedade moderna, tem se traduzido, freqüentemente, como uma crise da educação cujos efeitos têm sido devastadores no cotidiano escolar e na vida dos docentes, comparecendo como queixas e sintomas diversos, revelando o profundo mal-estar que acomete os professores. A crise na educação escolar e na educação familiar, bem como a crise na sociedade contemporânea, é advinda da crise moral e ética que permeia a sociedade, na atualidade.
Arendt (2003) discute a crise social e familiar e o papel da escola na conservação da tradição como forma de tentar amenizar os efeitos dessa crise em nossas crianças. A autora considera que há um papel de conservação da tradição que a escola deve exercer. Para ela, à escola cabe a função de proporcionar aos alunos acesso aos conhecimentos que estes não têm, e, neste aprendizado, há um componente de preservação do mundo. O assédio do novo é potencialmente destrutivo, sendo assim a criança deve ser protegida do mundo. A autora segue afirmando que o lugar de proteção da criança é a família, onde os membros adultos se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. É aí – na segurança da vida privada – que as crianças estão protegidas do aspecto público do mundo, dos perigos da sociedade moderna (ausência de valores morais, pessoais e éticos). Para Arendt, a família deve funcionar como um escudo contra o mundo moderno.
Assim, ao adulto é conferida a responsabilidade de educar suas crianças, ensinando-as a conviver em sociedade, pois na relação de um adulto com uma criança sempre há um componente de educação. A mesma autora salienta que o papel da escola é de ensinar às crianças como o mundo é, e não somente ensiná-las sobre a arte de viver. Defende a autoridade na sala de aula e acredita que o aluno deve ser apresentado ao mundo e, mais que isso, deve ser estimulado a mudar o mundo.
Para Arendt (2003), o educador está em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade. Esta responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. E afirma que "qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação" (p.239).
A mudança social acelerada e a crise na educação familiar constituem um problema que se reflete no cotidiano escolar. Os fenômenos sociais e a crescente mudança nos hábitos, costumes e valores são desafios que a sociedade impõe à escola. Há, portanto, um verdadeiro enfraquecimento, empobrecimento de aspectos que deveriam ser privilegiados na educação familiar, como o respeito e a consideração aos professores. Na sociedade moderna, as crianças não são mais ensinadas, em casa, sobre o valor de um mestre, sobre sua autoridade, nem mesmo a respeito da função do professor; esses valores não mais são passados de geração para geração.
Em Nóvoa (1999) lê-se que os valores que sustentavam a profissão docente caíram em desuso, em virtude da evolução social e da mudança nos sistemas educativos. Para o autor, os ideais da educação necessitam ser reexaminados, já que o velho modelo não serve mais à ação pedagógica e nem à profissão docente. E acrescenta que os professores se vêem em um enorme conflito, pois necessitam refazer suas identidades. Para ele é necessário aderir a novos valores, pois o que poderá contribuir para o fazer pedagógico é, justamente, uma reflexão crítica sobre a função de professor.
A respeito dos reflexos da crise na educação familiar e as conseqüências na educação escolar, Fleig (2000) chama a atenção para o fato de que, quando o homem abre mão da transmissão de saberes aos seus semelhantes e passa a agir como se fosse o último dos homens, passa também a desacreditar na geração seguinte, então ninguém pode usufruir o que herda.
Mas, o que constitui o futuro é justamente os saberes herdados, passados de pai para filho; diante da ausência desses, o presente se solidifica preenchido pelo vazio.
A tese do declínio da função paterna, na sociedade contemporânea, e seus efeitos no processo de subjetivação do sujeito – ausência de lei, de limites e de hierarquia de valores – tem sido atribuída à modernidade, responsabilizada pelo desinvestimento social da figura paterna e da família patriarcal, suposto sustentáculo do Complexo de Édipo. Lajonquière (2000), no entanto, relativiza alguns dos pressupostos dessa tese ao argumentar que, "ao contrário, a modernidade elevou o pai a ‘um nível superior de espiritualidade’ – conforme expressão de Freud em Moisés e a religião monoteísta –, a ponto de reforçar a potestade do reconhecimento simbólico, colocando o laço filiatório ao abrigo da arbitrariedade das vontades" (p. 58). O autor reconhece, não obstante, que a modernidade contribuiu "no processo paulatino de declínio da família patriarcal" (p.58). Polêmica à parte, se reconhecemos que o inconsciente é o discurso do Outro, portanto, que o sujeito é social, pode-se inferir que a escola e seus professores se deixam afetar tanto pela rede discursiva que denuncia a crise social de valores culturais e morais cada vez mais fluidos quanto por passagens ao ato, no cotidiano escolar, ambos dando testemunho que a autoridade devida ao professor é amplamente negada.

Mal-estar docente, cultura e subjetividade
O tema mal-estar docente, cultura e subjetividade, nesta proposta de trabalho, tenta elucidar os efeitos da cultura no processo de subjetivação do homem moderno, efeitos que se fazem presentes também na escola.
Enunciado por Freud (1930), o mal-estar na civilização foi usado, nesta pesquisa, para discutir a dor própria da condição do existir humano e para a compreensão do sofrimento de existir "na pele" de professor. O mal-estar docente foi abordado enquanto sintoma que aponta para um desconforto subjetivo e singular e não como uma doença orgânica. É por meio da queixa e da manifestação de sintomas, na escola, que os professores conseguem revelar ou denunciar o mal-estar na educação, pois demandam ser testemunhados pelos colegas e por toda a comunidade escolar e, com isso, alcançam cuidados e "benefícios secundários" (Almeida, 2000), sendo menos pressionados.
A este respeito, Freud (1913) confirma que as relações humanas bem como os costumes firmados na cultura suscitam no sujeito um intenso mal-estar e as mais severas defesas. Para Freud, essas devem ser aplicadas aos desejos incestuosos. Ao ser introduzido no código e na lei social, o sujeito (neurótico) se dirige contra a liberdade e o prazer seguindo em direção à renúncia das pulsões. Por meio das interdições, as proibições retiram o homem de sua natureza e animalidade, tornando-o social.
Para Freud (1924), as proibições morais e as convenções regulam as forças internas, mas as proibições não conseguem abolir a pulsão, ao invés disso, para o autor, esta é reprimida e se torna inconsciente. Disso depende toda a organização psíquica do sujeito, tudo o mais, em sua história, decorre do conflito entre a proibição, o interditado e as forças pulsionais. O homem sempre coloca o desejo em direção à possibilidade de realização do que julga torná-lo feliz, ou o que poderá de alguma forma levá-lo, imaginariamente, ao gozo supremo. Esse desejo permanece desde sempre oculto, mas não diminuído. Para fugir desse impasse, o homem "encontra" atos e objetos substitutos para realização de seu desejo. Nessa passagem de sua obra, Freud argumenta que toda a organização do sujeito humano é passada para gerações posteriores, como um dom psíquico herdado e vem junto em todo processo de educação. Sendo assim, todo o núcleo das neuroses e sua natureza associal têm, para o autor, também uma origem genética. O sujeito para viver na cultura tenta fugir de um mundo insatisfatório, que gera mal-estar, para uma realidade prazerosa e de fantasia, evitando o confronto com o real (a castração). Assim o homem, o tempo todo, tenta voltar-se contra essa verdade.
Diniz (1998) acrescenta que não há harmonia na passagem do estado de natureza para o de cultura. A cultura intervém, então, na natureza, para discipliná-la e regularizá-la. Desta forma, a entrada do humano na ordem simbólica, em desarmonia com a natureza, é paga com uma perda, uma falta que põe o sujeito a desejar.
Então, o mal-estar é próprio da condição humana, portanto não há como o sujeito humano dele escapar. Freud (1930) aponta o trabalho como uma das fontes do mal-estar na cultura, pois gera conflitos nos sujeitos e, portanto, uma sensação de estranhamento e infelicidade. Dentre as manifestações do mal-estar, o sujeito humano convive, também, com o sofrimento físico, pois está desde o nascimento condenado à decadência. Mas o corpo acaba por padecer de sofrimentos de outra ordem, pois há um mal-estar interior que assola o sujeito humano para que esse possa existir. E Freud alerta para a verdade de que o maior dos sofrimentos acontece quando há um comprometimento do relacionamento com os outros.
A felicidade e a completude são perseguidas, mas, contudo, sem nenhuma garantia de sucesso; esse vem por acréscimo. Neste sentido, há que se ter um "quantum" de resistência necessária para sobreviver na cultura.
O mal-estar presente no campo da educação é entendido por Cordié (1998) como um fenômeno que envolve aspectos exteriores ao sujeito, como os sociológicos e as condições mesmas do fazer pedagógico e as demandas diárias, os fatores profissionais e, também, a problemática do próprio sujeito, já que "ensinar não é uma atividade neutra" (p.44).
Zaragoza (1999) aponta para um dos fatores que leva o docente a um extremo mal-estar. Segundo o autor, a interação do professor em sala de aula pode levá-lo a adoecer, pois a ação do mestre em sala gera tensões, emoções e sentimentos muitas vezes negativos em relação aos alunos, às condições ambientais e em relação ao próprio contexto escolar. Esta situação é agravada pelo fato de que o professor, sempre, se depara com a necessidade de desempenhar papéis contraditórios, que lhe exigem manter um enorme equilíbrio psíquico. Exige-se do professor que este seja amigo, companheiro dos alunos ou que sempre lhes ofereça apoio, e até mesmo ajuda para o desenvolvimento pessoal.
Em uma reportagem publicada no Correio Braziliense do dia 15 de outubro de 2004, data em que se comemorava o dia do professor, lê-se a matéria Pouco a comemorar, que traz dados alarmantes sobre a saúde dos docentes, no Distrito Federal: "só na rede pública, faltam pelo menos 1,5 mil profissionais, que morreram, aposentaram-se ou pediram demissão, mas não foram substituídos definitivamente. A secretaria de Educação calcula que 800 educadores entram de licença médica todos os meses por problemas como tendinite, alergia ao giz, perda de voz e depressão. As doenças atingem 44% da categoria".
Parece haver, então, um mal-estar que comparece no não-dito, que não se expressa pela palavra, mas que se denuncia na saúde psíquica do professor. Trata-se, obviamente, de um adoecimento que não acontece isoladamente, pois há sempre uma relação entre o adoecer e o vivido e experienciado pelo sujeito, subjetivamente e em suas relações.
É importante observar que o sujeito moderno não pode se entristecer, nem se angustiar, também não lhe sendo permitido lidar com o sofrimento sem ser diagnosticado como "deprimido". Observa-se, no entanto, que há um uso indiscriminado do termo, que parece classificar e categorizar todos os tipos de sofrimento oriundo do mal-estar na cultura, embora se saiba que não há uma palavra que dê conta de abarcar a falta-a-ser do sujeito, à exceção do que a psicanálise nomeia castração. Não obstante, normatizar, medicalizar e classificar em uma mesma categoria todos os que sofrem a dor de viver parece hoje ser a saída. Vive-se em um tempo dos analgésicos e anestésicos em que sofrer não faz mais sentido. Em parte, por isso, os homens são cada vez mais incapazes de avaliar o sentido da dor.
Roudinesco (2000) aponta a utilidade dos medicamentos, mas, também, a incapacidade destes de curar o homem de seus males psíquicos. A autora discute a subjetividade do ser humano e sua relação com a morte, com as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e com o outro. Para Roudinesco, a fala, como importante componente da "cura" do homem, não se limita à sua condição biológica. Segundo a mesma autora, Freud, no final de sua vida, tinha consciência de que, "um dia os avanços da farmacologia imporiam limites à técnica do tratamento pela fala" (p.45). Para Freud, no futuro, as doenças da alma poderiam vir a ser tratadas com medicamentos, mas, contudo, seria necessário um equilíbrio entre os tratamentos medicamentosos e a psicanálise. Não foi o que aconteceu, pois há algum tempo a farmacologia e os saberes médicos dominam os tratamentos psíquicos e esses males são, na maioria das vezes, tratados como doença orgânica, onde a palavra do sujeito que sofre não é escutada.
No que diz respeito especificamente ao sofrimento psíquico de professores, existem inúmeras investigações tentando elucidar as causas do desconforto e do adoecimento na profissão docente.
O estudo de Codo (1999) pesquisou a chamada síndrome de desistência do educador, o burnout, termo inglês que significa algo como perder o fogo, perder a energia. Para o autor, esta síndrome afeta frontalmente os professores e constitui o principal problema dos profissionais da educação. O burnout surge quando o professor esgota seus recursos pessoais ou estes são insuficientes para atender ao excesso de demandas existentes na escola. A esses docentes faltam estratégias de enfrentamento das situações do cotidiano escolar. No estudo, o autor enfoca desde os determinantes macroeconômicos até os conflitos mais subjetivos que são apontados como causa do adoecimento do professor. Segundo o autor, somente na década de 70 é que foram construídos modelos teóricos e instrumentos capazes de compreender o desânimo crônico, a apatia e a despersonalização dos professores. O estudo aponta para um professor que está cansado, abatido, sem mais vontade de ensinar, um docente em franco processo de desistência.
Em Souza (2002) lê-se que "todos os que são professores conhecem essa experiência devastadora: ser profissional e psiquicamente demolido por crianças ou jovens que os destituem do lugar de professores, não pelo fracasso, mas pela ausência, pela recusa em entrar no jogo da escola" (p.109). E tanto Souza quanto Almeida (2000) alertam para o fato de que ao se sentir socialmente abandonado, o professor não renuncia facilmente aos seus sintomas, que adquirem o estatuto de um mal-estar assistido, com todas as "vantagens" e "benefícios" daí advindos e deles fazendo uso.
Falta à escola uma maior reflexão a respeito do envolvimento pessoal do professor no exercício da docência. Só muito recentemente pesquisadores da área de educação começaram a se debruçar sobre as histórias de vida dos docentes e sua relação com as trajetórias profissionais, resgatando experiências subjetivas, memórias educativas, ações, posturas, opções, conflitos pessoais, dentre outros aspectos capazes de auxiliar na compreensão do processo pelo qual os sujeitos se tornam professores. Assim, é necessário considerar que os aspectos profissionais e os pessoais, na maioria das vezes, se confundem durante o exercício do magistério.

Sintoma, desamparo e narcisismo
O sofrimento oriundo das situações de trabalho traz em seu bojo a necessidade de se entender as posições subjetivas do sujeito e suas defesas diante do próprio adoecimento, sendo o sintoma depressivo e o sentimento de desamparo modalidades de manifestação desse sofrimento, na modernidade, e do mal-estar docente, na educação.
Sufocados pelas exigências que a realidade educacional lhes impõe e por ideais educativos inalcançáveis, os professores manifestam uma enorme angústia e grande sentimento de desamparo e muitos não encontram saídas a não ser pela via das queixas e do sintoma depressivo.
Em Freud (1925), lê-se a respeito do sintoma. Este surge como um sinal de um substituto de uma satisfação pulsional, que permanece em estado jacente e é conseqüência de um processo de recalcamento. Neste sentido, a idéia persiste como uma formação inconsciente destinada à satisfação da pulsão. E Freud chama a atenção, neste mesmo texto, que em virtude do processo de recalcamento, o prazer que se esperava da satisfação transforma-se em desprazer. Os professores que idealizam excessivamente o ato pedagógico sofrem, pois o prazer que esperavam ilusoriamente encontrar na docência acaba não correspondendo ao esperado. Sendo assim, acabam erguendo mecanismos de proteção que os retire, de alguma forma, da convivência diária com as situações que os fazem sofrer. Freud corrobora com esta idéia, pois relata que o organismo recorre a tentativas de fuga quando se vê ameaçado por perigos externos.
O sintoma, em psicanálise, é entendido de forma diferente da medicina, pois nesta ciência o mesmo é visto como sinal de doença orgânica, já que o organismo é de ordem estritamente biológica. A noção de sintoma, em psicanálise, aponta para a subjetividade do sujeito e para algo simbólico, que vem no lugar de outra coisa. Entretanto, no sintoma existe algo de biológico, que incide no real do corpo, quando há um não sentido que aprisiona o sujeito e não pode ser representado com palavras, não pode ser simbolizado.
O sintoma, diz Blanchard-Laville (2000), é sempre endereçado ao outro. No caso dos professores, o não reconhecimento por seu trabalho e a falta de acolhimento às suas demandas são sinalizadas pelo sintoma como uma mensagem endereçada ao outro, na tentativa de serem minimamente escutados.
Birman (2000) discute a escuta do sintoma na psicanálise e avalia que apesar dos avanços da medicina a sensibilidade relativa às novas formas de subjetivação, na atualidade, não foi, ainda, percebida pela ciência médica. O próprio corpo tomou novas formas de subjetivação na sociedade moderna e, mesmo assim, o sintoma continua sendo visto apenas como sintoma físico, pela medicina.
Na escola, os sintomas do mal-estar dos professores se manifestam na interface de problemas pessoais com os problemas escolares. Muitas vezes, aparecem junto a uma incapacidade de lidar com as frustrações advindas da própria função, bem como com as frustrações da própria vida, com o desamparo sentido no mundo moderno, quando não encontram um lugar para serem escutados e se deparam com a ausência de respostas aos ideais perseguidos desde a infância. Esses sujeitos parecem reprimir toda a agressividade neles contida, evitando o contato próximo com seus alunos e seus pares quando, por exemplo, se afastam do trabalho por licença médica. Pode-se notar que esta é mais uma das modalidades de formação de sintoma, o isolamento, pois é usado como recurso para evitar que certos conteúdos sejam tocados, conforme já previa Freud (1925).
A respeito da singularidade do sintoma, do modo de arranjo sintomático de cada sujeito, Zaragoza (1999) defende três formas do que ele chama de "produção da degeneração da eficácia docente", um dos arranjos psíquicos para dar conta da função pedagógica: a) a dos professores que deixam de atuar com qualidade porque sua personalidade ficou afetada; b) a dos professores que se inibem e rotinizam seu trabalho profissional como mecanismo de defesa face às condições em que exercem o magistério e c) a dos professores que traçam uma linha clara de atuação, operando com uma conduta flutuante, impregnada de contradições, que acaba por não responder às transformações exigidas pela mudança do contexto social do magistério.
Lacan, (citado em Quinet, 2003), considera que o sintoma "é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito" (p.123). Portanto, o significado de cada sintoma é singular a cada sujeito, dado aos seus mais variados arranjos fantasmáticos, traumas e experiências individuais. A respeito de sintoma, Lacan esclarece, ainda, que o homem segue seu percurso de vida desejando reconhecimento, mas tal desejo permanece desde sempre excluído, recalcado. O que adoece o humano, então, continua Lacan, é o sintoma, e este nada mais é que o sinal de uma disfunção orgânica, um funcionamento que vem do real do corpo, que deve ser atravessado e não curado. Para Lacan, "em nenhum caso poderia o tratamento consistir na erradicação do sintoma, enquanto efeito estrutural do sujeito" conforme aponta Chemama (1995, p. 203).
Uma das grandes contribuições de Freud, e até mesmo uma inovação, diz Birman (2000), foi pensar outras relações entre organismo e psiquismo pela mediação do corpo, pois este é atravessado por forças pulsionais e é permeado pelo organismo. O organismo está ligado às ordens da natureza e o corpo, em contrapartida, se constitui em uma ruptura com esta, pois o corpo é da ordem do sexual e do pulsional. Para o referido autor há, nesta perspectiva, um corpo sujeito.
Em Freud (1920) pode-se ler a respeito de um corpo imaginado, representado. Em sua teorização à respeito da histeria, Freud tentava estabelecer diferenças entre as paralisias motoras e histéricas, pois estas seriam fundadas em representações corporais, rompendo com o corpo biológico. Sendo assim, intencionou romper com este modelo puramente biológico, médico, proporcionando um outro tipo de escuta às histéricas.
Uma das conclusões de Freud, em seu texto de 1925, é a de que nas três grandes estruturas psíquicas (neurose, psicose e perversão), o que está em jogo é o horror à castração, pois para ele a angústia é uma reação a uma situação de perigo. Freud menciona que está inclinado a aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve ser análogo ao medo da castração e que, nesta situação o ego está reagindo ao temor de ser abandonado. Isto porque ele não dispõe mais de qualquer salva-guarda contra todos os perigos que o cercam. Deste modo, pode-se pensar que o sintoma é, então, uma reação à eminência da perda e da separação.
Freud (1925) chamou subjetividade de desamparo. Este se refere à angústia com as relações interpessoais, sociais e a toda a estrutura do sujeito. Para Birman (2000) "o desamparo seria aquilo que instaura o mal-estar na modernidade" (p.43). Mas, os humanos dependem de certa ausência, de algo que está fora, para existirem enquanto sujeito. O sentido sempre vai estar fora, vem sempre do Outro. De certa forma, o incômodo que a alternância entre presença e ausência traz na infância vai sendo atualizado por professores que não suportam a dor de não serem reconhecidos em sua função.
A respeito do desamparo existencial, Lasch (1983) aponta que a dor da separação tem sua origem na prolongada experiência de desamparo na infância, pois segundo o mesmo autor, "o bebê humano nasce muito cedo" (p.151). Este vem ao mundo com uma incapacidade de prover suas necessidades biológicas e, portanto, completamente dependente de seus cuidadores. A respeito destes, o bebê imagina-os com superpoderes e sobre-humanos, capazes de suprir-lhes todas as demandas. Segundo Lasch, a experiência de desamparo é muito dolorosa, pois é precedida do referido "sentimento oceânico", o qual todos procuram por toda a vida recuperar.
A separação primeira e o nascimento são sempre relembrados quando a criança é deixada só, ou quando sente necessidades biológicas não satisfeitas, como fome, sede, sono, dentre outras. Esta experiência é para a criança uma ameaça à sua própria existência. Para essas, não há maior ameaça à segurança quanto a ameaça do desamparo. Para Birman (2000), "o registro psíquico do desamparo é algo de ordem originária, marcando a subjetividade humana para todo o sempre" (p.37).
O referido sentimento de desamparo foi incrementado na modernidade, pois o distanciamento característico das relações sociais, na atualidade, mina as certezas do sujeito que necessita do outro para se constituir como tal.
Dejours e Abdoucheli (1994) trabalham com o conceito de psicopatologia do trabalho e o definem como "uma análise dinâmica dos processos psíquicos mobilizados pela confrontação do sujeito com a realidade do trabalho" (p.120). Na referida obra, os autores se ocupam em definir os conflitos que surgem de forma dinâmica no cotidiano de todo trabalho. Esses se devem ao fato de cada sujeito carregar consigo uma história particular que existe muito antes do encontro com as situações de trabalho e guarda consigo, muitas vezes, características independentes da vontade do próprio sujeito.
A psicopatologia do trabalho parte do pressuposto de que existe uma subjetividade anteriormente constituída que, quando exposta a certas condições, corre o risco de, no sujeito, ser modificada, e também modificar, no outro social, as características pessoais expostas no gerenciamento de situações de conflito no trabalho.
O sofrimento oriundo das situações de trabalho traz, para a sua compreensão, a necessidade de entender as posições subjetivas do sujeito e suas defesas diante do próprio adoecimento. Os trabalhadores, incluindo os da escola, permanecem sujeitos de seu trabalho, pensam a respeito de si mesmos, sobre sua organização, conduta e discurso, e também na repercussão de seus problemas no ambiente de trabalho. Deste modo, "penetramos então em uma problemática que não utiliza mais o esquema causalista: renunciamos à idéia de que o comportamento dos trabalhadores fosse determinado pela própria vontade ou pela força das pressões da situação" (Dejours & Abdoucheli, 1994, p.122).
Entre as pressões do trabalho e o adoecimento existe um sujeito que reage e se defende de acordo com sua estrutura mental, que é de certa forma, invariável e estável em cada um; deste modo, a estrutura determina o modo de cada sujeito lidar com seu sofrimento. A metáfora usada por Dejours e Abdoucheli (1994)2 é a de um cristal de rocha que em seu rompimento, sob o impacto de situações de pressão intensa, não se quebra de forma qualquer, mas segue as linhas de sua estrutura interna. Neste sentido, deixa claro que o impasse afetivo é singular a cada sujeito dotado de desejo e perpassado pelo inconsciente.
As demandas de perfeição e poder do mundo moderno, as exigências sociais que contornam a escola trazem ao professor uma angústia enorme, pois o docente que sofre diante de seus ideais inalcançáveis de perfeição está, justamente, fora da cultura do narcisismo, quando não assume o ideal narcísico da contemporaneidade e sucumbe diante da falta de respostas para muitas situações demandadas pelos pais, alunos e até mesmo pela direção da escola. O professor que adoece sofre uma ferida narcísica por não conseguir corresponder às demandas do cotidiano escolar. Assim, sente-se incompetente quando é frustrado em seu compromisso com a idealização do ato pedagógico.
Lasch (1983) afirma que a tentativa de restauração da unidade um dia perdida traz consigo certa impossibilidade de perceber as frustrações, o que dá origem a dolorosos temores de perseguição. O desamparo tem aí sua origem, fazendo sintomas psíquicos como, por exemplo, a depressão.
Em 1930, Freud já apontava para três grandes ameaças ao ser humano, sendo uma delas a falência do corpo. Desde então, o desamparo humano foi colocado em pauta, enunciado no discurso freudiano, que seguiu em direção à posição de fragilidade do homem ao relacionar essas ameaças vindas, além da corporeidade, também da natureza e das relações intersubjetivas. Freud aponta para o desamparo humano, afirmando que é justamente para se livrar deste que o sujeito, diante de sua fragilidade, finitude e mortalidade, necessita criar mecanismos para tamponar essas marcas, maquiando-as com onipotência e auto-suficiência.
Nota-se que na escola, hoje, todos querem suas demandas atendidas sem se importar com os custos, no outro, desse desejo. Os pais esperam respostas milagrosas da escolarização de seus filhos, mesmo diante de sua omissão. A direção escolar e os alunos querem, a todo custo, seus pedidos prontamente atendidos. Diante do caos de demandas em seu trabalho, o professor se sente imensamente ameaçado em sua integridade psíquica e física, já que o excesso de demandas torna insuportável a função docente.
Dejours (1994) corrobora com essa idéia e analisa que, para o trabalhador, há um conflito de desejos frente à realidade do trabalho. Assim, há uma "carga psíquica negativa" despendida na organização do trabalho, quando o sujeito tem que abrir mão de seu "livre arbítrio", em função das demandas do outro. O sujeito, nestas circunstâncias, é despossuído de sua saúde física e de seu desejo, sendo domesticado e forçado a agir da maneira que o outro quer. A carga psíquica do trabalho é resultante do confronto entre o desejo do trabalhador e as demandas do empregador e essa carga tende a aumentar quando a liberdade de ação no trabalho diminui, afirma o autor.
A questão aponta então, para a necessidade de que os professores tomem contato com sua dor, com a finitude, com a incerteza que a angústia de não saber tudo ou nada saber a respeito de si mesmo provoca. A possibilidade de confrontar-se com a dor da angústia da castração, colocando-a em palavras, na escola, em reuniões de equipe ou mesmo nas coordenações do trabalho pedagógico poderia ser um dos apoios ou suporte, que se traduz, nas queixas dos docentes, por falta de acolhimento. O que parece ser importante, no âmbito da instituição escolar, é que o professor seja escutado e acolhido por seus pares, não necessariamente ser escutado em um setting analítico, já que muitos professores não fazem análise ou não têm essa demanda. Uma escuta qualificada ou um suporte psicológico realizado por um profissional sensível ao sofrimento do outro pode auxiliar o professor a amenizar a sua angústia. Sentindo-se acolhidos e menos desamparados, os docentes poderão se implicar no seu desejo de "ser professor", barrando o gozo e buscando a realização pessoal e profissional possível.

Sobre a análise e discussão dos dados
Na análise dos dados da pesquisa foram discutidas as queixas dos docentes e identificadas, nos relatos de histórias de vida dos sujeitos, as disposições subjetivas e as condições objetivas que se relacionavam ao sofrimento psíquico e, conseqüentemente, ao adoecimento do professor, de modo a traduzir os principais sintomas do mal-estar na educação. Assim, algumas categorias temáticas emergiram da análise de conteúdo dos relatos autobiográficos e foram discutidas à luz da teoria psicanalítica, visando apreender os sentidos particulares atribuídos pelos professores ao seu sofrimento e como este se articulava aos discursos social e educacional dominantes. Foram doze as categorias analisadas:
1. o descrédito em relação ao adoecimento dos professores; 
2. o preconceito contra os professores diagnosticados como deprimidos; 
3. as dificuldades de aprendizagem dos alunos e o mal-estar docente; 
4. a violência extra e intra-escolar; 
5. a indisciplina na escola; 
6. a educação familiar dos professores, a relação transferencial com os alunos e a atuação profissional; 
7. o sentimento de insegurança vivenciado pelos docentes; 
8. o absenteísmo como uma das modalidades de defesa contra o mal-estar docente; 
9. o desgaste emocional pelo excessivo envolvimento do professor com os problemas pessoais de seus alunos; 
10. as frustrações pelas condições de trabalho e a importância dada ao apoio institucional necessário à prática pedagógica; 
11. as queixas e a demanda de escuta; 
12. os sintomas de depressão e seu "tratamento".

Considerações finais
A formação inicial e continuada de professores desconhece, ainda hoje, as manifestações psíquicas presentes na sala de aula e na escola. Os efeitos negativos dessas manifestações são visíveis na prática, quando os professores não conseguem atender aos seus ideais educativos e às demandas escolares e, por isso, adoecem. Assim, repensar o papel da formação docente é fundamental para a (re)construção da identidade profissional.
O mal-estar relatado pelos professores, nesta pesquisa, evoca as angústias vividas por eles no cotidiano escolar, efeito das circunstâncias aversivas com que se deparam todos os dias no trabalho. Muitas vezes, as queixas revelam uma expectativa de melhoria dos problemas levantados.
A angústia dos professores deverá, assim como a de um analisando, ser atravessada por meio do resgate de sua palavra e não eliminada, como se pode, equivocadamente, pensar. "Consideramos que a angústia na escola deve ser abordada sob esta mesma perspectiva. Isto é, não há nada que possa curar a angústia do professor, mas pode-se buscar atravessá-la e, nesta travessia, é interessante que ele possua algum suporte" (Prioste, 2006 p.150).
Neste caso, pensa-se que um dos principais suportes ao professor poderia acontecer no percurso de formação, na medida em que esta acolha a criação ou a abertura de um espaço onde o docente possa, de maneira efetiva, endereçar sua palavra a um Outro, ser escutado e se escutar em relação a seus medos, inseguranças e dúvidas que comparecem na prática pedagógica e, ainda, interrogar-se sobre sua escolha profissional e nela implicar-se como sujeito de desejo.
Para este suporte, a escola poderá conferir ao psicólogo escolar um espaço concreto para o desempenho dessas funções. Este profissional estaria, assim, autorizado pelos sujeitos e pela instituição a funcionar como o Outro que escuta, um lugar para onde o docente pudesse dirigir a palavra e ouvir-se a si mesmo. A palavra seria recolocada em circulação, por meio da transferência.
Um psicólogo orientado pela teoria psicanalítica pontuará, em seu trabalho de escuta, o discurso, a palavra e não o comportamento dos sujeitos. Dessa forma, operando com as leis de funcionamento do inconsciente, presentificado na linguagem, poderá extrair dela a eficácia de sua ação. Com a circulação da palavra existirá certa "oxigenação" na instituição. Os efeitos da verdade dos sujeitos a respeito da prática docente poderão beneficiá-los, para transformar a práxis por meio das falas e questionamentos singulares. Neste caso, o resultado será a possibilidade de criação de novos discursos, conforme sugere Kupfer (1997).
Com relação à formação de professores, Almeida (2003) sugere algumas modalidades ou dispositivos de ação que, mesmo partindo do modelo clínico, têm se mostrado eficazes como ferramentas para as indagações e angústias presentes nas práticas educativas: "a) a atitude clínica, compreendendo o fazer falar o outro e a escuta clínicadessa fala; b) os relatos escritos (...) memórias educativas, registros da prática, estudos de caso, histórias de vida; c) (...) a prática reflexiva; a mudança nas representações e nas práticas; a observação mútua; a metacomunicação com os alunos; a escrita clínica; a videoformação; a entrevista de explicitação; a história de vida; (...) (p.174)". Para a autora, o trabalho de formação deve ser remetido à dimensão da ética e, nesta perspectiva, a ética pode indicar a dimensão de um juízo crítico, buscando compreender o sentido da ação, podendo ser também tomada, juntamente com o desejo, conceito fundamental em psicanálise, naquilo que de singular e de inconsciente a ação comporta.
Em referência ao mal-estar docente, ou dito de outra forma, ao modo como cada um goza de seu sintoma, o "tratamento" seria, então, no âmbito da instituição escolar, possibilitar que cada docente se implique eticamente na sua ação e busque dar sentido aos seus atos, falando e questionando-se a respeito de sua práxis e de seus efeitos subjetivos e profissionais, no exercício cotidiano de suas funções educativas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ALMEIDA, S. F. C. de (2003). A ética do sujeito no campo educativo. Em S. F. C. de Almeida (Org.). Psicologia Escolar: ética e competências na formação e atuação profissional (179-194). São Paulo: Alínea.
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1. Este trabalho é uma versão, resumida e simplificada, da Dissertação de Mestrado em Psicologia, intituladaSofrimento psíquico de professores: uma leitura psicanalítica do mal-estar na educação, de autoria da primeira autora, sob a orientação da segunda, apresentada em 2006, na Universidade Católica de Brasília, com financiamento da CAPES/UCB. 

2. Os autores não fazem referência a Freud, mas a metáfora do cristal foi usada por Freud, em 1932-33, para explicar que a estrutura psíquica organiza-se, “cristaliza-se" tal como um corpo químico complexo, a exemplo do cristal, com linhas de clivagem originais e que não podem variar ulteriormente. Assim, a descompensação da estrutura psíquica (a quebra do cristal) não se realizará de uma forma aleatória, mas segundo e seguindo essas linhas e pontos de clivagem pré-estabelecidos em toda a ontogênese e que perfazem as fragilidades individuais de cada um de nós.




terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Livro - A Educação na Contemporaneidade

Com a chancela da Editora CRV (Curitiba), chega à praça o livro A Educação na Contemporaneidade, cujo âmbito de germinação foi a estimada Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Produção coletiva, organizada pelos professores Messias Dieb (agora na UFC), Arilene Maria Soares de Medeiros e Francisca de Fátima Araújo Oliveira, o livro debruça-se sobre questões centrais da pesquisa educacional na atualidade. Participo do mesmo com um ensaio, correspondente ao primeiro capítulo, que, em princípio, foi texto-base de uma conferência que pronunciei como aula inaugural no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPB - denomina-se A Escola em Perspectiva: Novos Fenômenos, Reconfigurações e Desafios à Pesquisa. Somando-se a outras produções no âmbito da instituição, o livro contribui para realçar o papel da UERN nas discussões empreendidas no contexto da pesquisa educacional e, ao mesmo tempo, coloca em evidência a relevância da sua pós-graduação em educação - o POSEDUC. Abaixo, em forma sinopse, um recorte do prefácio da obra, feito pelo Prof. Antônio Cabral Neto (UFRN). 

A Educação na Contemporaneidade: Políticas e Gestão dos Sistemas e da Escola Pública 
Editora CRV - 176 págs. 

Esta obra, ao desenvolver análises sobre vários ângulos das políticas educacionais na contemporaneidade, ganha relevância porque vem a público em uma hora oportuna, considerando que estão sendo realizadas discussões sobre a elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE), cujo teor vai definir os horizontes da educação brasileira para essa segunda década do século XXI. Outra importância fulcral da obra reside no esforço empreendido pela maioria dos autores na análise de políticas locais, o que pode contribuir para uma compreensão mais adequada dos processos educacionais, desenvolvidos no âmbito do sistema, e indicar possibilidades de melhoria na educação […]. Esse é o aspecto mais relevante do livro porque, embora o local esteja em articulação com o global, é importante procurar evidenciar as particularidades do que ocorre na esfera local, para explicitar as suas especificidades, sem, contudo, perder de vista as determinações gerais da política. A referida obra, com essas características, trará contribuições inestimáveis para a produção do conhecimento na área […]. Demarca-se, por último, que o livro contém reflexões desafiadoras sobre temas que estão na agenda das políticas educacionais e das práticas pedagógicas e de gestão que se materializam no âmbito do sistema educacional, em todos os níveis. A sua leitura é recomendada, portanto, a todos os profissionais que defendem uma educação pública de qualidade e fundada em princípios democráticos.








sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O educador, o ser e o graal a conquistar: na senda dos sinais do tempo

Texto retirado do baú. Escrevi-o para a Revista Portuguesa A Página da Educação. 




Trinta raios rodeiam um eixo,
mas é onde os raios não raiam
que a roda roda.
Vaza-se a vaza e se faz o vaso,
mas é o vazio que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas,
mas é onde não há nada que se está em casa.
Falam-se palavras e se apalavram falas,
mas é no silêncio que mora a linguagem.
O ser faz a utilidade,
mas é o não-ser que perfaz o sentido.

Do Tao-te King, de Lao Tsé


                                                                                                                                Ivonaldo Leite  
“Senhoras e Senhores, vamos começar moderadamente. Mas também com vigor e ousadia. Vamos começar com os sonhos. Não sonhamos apenas durante a noite. Sonhamos também durante o dia, embora não se investigue com igual energia o sonho diurno. Chega-se mesmo a reduzi-lo a um simples prelúdio do sonho nocturno. Entre ambos há distinções consideráveis. No sonho diurno, o eu não desaparece. Mantém-se bem vivo e sem exercer nenhuma censura. A ponto de os desejos tanto mais funcionarem. Serem mais visíveis, do que no sonho nocturno. Apresentarem-se sem máscara nem vergonha. Livres de inibições. Corajosamente. As ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos”. 
Essas são as palavras iniciais de Ernst Bloch pronunciadas numa Conferência a respeito do ser humano como possibilidade. De Bloch, entre muitas coisas, pode dizer-se que foi um daqueles que, com palavras e com actos, pôs a descoberto o sentido quotidiano da utopia, da esperança, do sonho. Nasceu na Alemanha, em 1885, onde estudou filosofia, filologia, música e física. Em Berlim, conviveu com Simmel; em Heidelberg, tomou parte nos famosos círculos de conversas de Weber, dos quais também participava Lukács. Como pacifista que era, viu-se obrigado a passar o fim da Primeira Guerra Mundial na Suíça. Voltou à Alemanha em 1920, mas em 1933 os seus livros foram queimados em praça pública pelos nazistas. Exilou-se na Áustria, o que, claro, foi insuficiente. Seguiu-se a mudança para os Estados Unidos. Regressou à sua pátria em 1949.
O seu primeiro livro (Princípio da Utopia), publicado em 1923 na Suíça, já contém, em germe, toda uma concepção filosófica que será desenvolvida em sua obra principal, ou seja, o Princípio da Esperança. Na verdade, toda a reflexão filosófica de Bloch é uma busca de tematização ontológica do sujeito, dado que, para ele, é a subjectividade que atribui sentido ao mundo. E isto é deste modo porque, pela óptica blochiana, é ela, a subjectividade, que encarna as possibilidades de futuro que constituem a própria realidade. O futuro vem a ser a dimensão própria do sujeito, da consciência.
Bloch procura dissimular o poder criador da práxis do sujeito no pressuposto de uma materialidade avivada por um sentido que se desdobre através dos seres humanos e sua consciência. O que se tem, portanto, não pode ser outra coisa: Estamos perante uma ontologia que se constrói como justificativa de uma proposta ética da mudança, para que homens e mulheres venham a ser aquilo que ainda não o são. O seu conceito de utopia nasce dessa ontologia, e, desse modo, ele, o conceito, difere da conotação tradicional do termo. Nada mais, nada menos porque, na acepção blochiana, a primeira função da utopia é a de manifestar aos outros, ou a um outro, que o real não se esgota no imediato. Quer dizer, o real é mais do que o agora: ele aponta, pela via do possível, para o que ainda não existe. A utopia nega a realidade e mostra que o real está prenhe de possíveis. 
A démarche blochiana conduz-nos à busca de um ânimo subjectivo no interior da própria materialidade, como substrato ontológico da praxis e não como produto da praxis e da dialéctica ontológica que ela produz. A matéria é espiritualizada para ontologizar a dialéctica do sujeito. A qualificação da matéria apresenta-se como uma espécie de tradução da projecção da consciência.
Dessa maneira, o ser humano é entendido como devir, encarnado em possibilidades objectivas. A força do impulso que empurra o ser para o que ainda não é, torna-se a substância comum do mundo, dos homens e das mulheres. É assim. A esperança é uma forma de conhecimento da dimensão possível presente no próprio real. E se o possível é parte integrante da realidade, ele é objecto do conhecimento.  
O educador é alguém, portanto, a quem se demanda empenho na interpretação dos sinais dos tempos. Entre as suas incumbências, tem a tarefa de distinguir onde estão as possibilidades de realização dos seres humanos e para onde eles conduzem o nosso tempo, pois, mesmo perante conjunturas indecisas e adversas, os sonhos diurnos não desaparecem do quotidiano: o princípio da esperança. O não deste é um ainda-não, ao invés do não-nunca do niilista. Um graal a conquistar, poder-se-á dizer, à maneira da sabedoria dos surrealistas.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

António Nóvoa - 'Professores, imagens do presente futuro'


O lusitano António Nóvoa notabilizou-se no Brasil com trabalhos dos anos 1990,  a exemplo de Profissão Professor, editado no Porto há mais de vinte anos. O texto continua a ser citado em nosso meio como se tivesse sido escrito hoje, e sem tomar em conta a produção posterior do autor - a exemplo do  livro Professores: Imagens do Presente Futuro (Lisboa: Educa, 2009). Trabalho consistente analiticamente, e com significativos contributos à formação de professores e à prática docente. A seguir, reproduzo o  capítulo introdutório do livro.  

António Nóvoa: o devir da profissão docente 

Professores: o futuro ainda demora muito tempo?
António Nóvoa  
A
ssistimos, nos últimos anos, a um regresso dos professores à ribalta educativa, depois de quase quarenta anos de relativa invisibilidade. A sua importância nunca esteve em causa, mas os olhares viraram-se para outros problemas: nos anos 70, foi o tempo da racionalização do ensino, da pedagogia por objectivos, do esforço para prever, planificar, controlar; depois, nos anos 80, vieram as grandes reformas educativas, centradas na estrutura dos sistemas escolares e, muito particularmente, na engenharia do currículo; nos anos 90, dedicou-se uma atenção especial às organizações escolares, ao seu funcionamento, administração e gestão.
Já perto do final do século XX, importantes estudos internacionais, comparados, alertaram para o problema das aprendizagens. Learning matters. E quando se fala de aprendizagens, fala-se, inevitavelmente, de professores. Um relatório publicado pela OCDE em 2005 – Teachers matter – inscreve “as questões relacionadas com a profissão docente como uma das grandes prioridades das políticas nacionais”.
Paralelamente a estes estudos comparados, de grande difusão mundial, duas outras realidades se impõem como temas obrigatórios de reflexão e de intervenção.
Por um lado, as questões da diversidade, nas suas múltiplas facetas, que abrem caminho para uma redefinição das práticas de inclusão social e de integração escolar. A construção de novas pedagogias e métodos de trabalho põe definitivamente em causa a ideia de um modelo escolar único e unificado.
Por outro lado, os desafios colocados pelas novas tecnologias que têm vindo a revolucionar o dia-a-dia das sociedades e das escolas. Mas, como bem escreve Manuel Castells, o essencial reside na aquisição de uma capacidade intelectual de aprendizagem e de desenvolvimento, o que coloca os professores no centro da “nova pedagogia” (2001, p. 278).
Os professores reaparecem, neste início do século XXI, como elementos insubstituíveis não só na promoção das aprendizagens, mas também na construção de processos de inclusão que respondam aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias.
É este o pano de fundo do meu ensaio: o regresso dos professores ao centro das nossas preocupações e das nossas políticas. Adoptarei um tom propositadamente polémico, e até talvez excessivo, com o propósito de tornar mais nítidas as minhas posições, suscitando um debate que me parece inadiável sobre a concretização, na prática, de um futuro há tanto tempo anunciado.

1. Um largo consenso sobre os professores e o seu desenvolvimento profissional
Para preparar este ensaio recolhi a mais variada documentação: relatórios internacionais, artigos científicos, discursos políticos, documentos sobre a formação de professores, livros e teses de doutoramento, etc. Ao reler este conjunto díspar de materiais, produzidos pelas mais diversas instâncias, percebe-se a utilização recorrente dos mesmos conceitos e linguagens, das mesmas maneiras de falar e de pensar os problemas da profissão docente.
Parece que estamos todos de acordo quanto aos grandes princípios e até quanto às medidas que é necessário tomar para assegurar a aprendizagem docente e o desenvolvimento profissional dos professores: articulação da formação inicial, indução e formação em serviço numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida; atenção aos primeiros anos de exercício profissional e à inserção dos jovens professores nas escolas; valorização do professor reflexivo e de uma formação de professores baseada na investigação; importância das culturas colaborativas, do trabalho em equipa, do acompanhamento, da supervisão e da avaliação dos professores; etc.
Este consenso discursivo, bastante redundante e palavroso, para o qual todos contribuímos, foi-se tornando dominante no decurso da última década. Não estamos apenas a falar de palavras, mas também das práticas e das políticas que elas transportam e sugerem.
Dois grandes grupos contribuíram para produzir e vulgarizar este discurso.
O primeiro grupo inclui investigadores da área da formação de professores, das ciências da educação e das didácticas, redes institucionais e grupos de trabalho diversos. Nos últimos quinze anos, esta comunidade produziu um conjunto impressionante de textos, que tem como marca o conceito de professor reflexivo e que fez uma viragem no pensamento sobre os professores e a sua formação.
O segundo grupo é composto pelos especialistas que actuam como consultores ou que fazem parte das grandes organizações internacionais (OCDE, União Europeia, etc.). Apesar da sua heterogeneidade, eles criaram e difundiram, no plano mundial, práticas discursivas fortemente alicerçadas em argumentos comparados. A sua legitimidade funda-se sobretudo no conhecimento das redes internacionais e dos dados comparados e não tanto no domínio teórico de uma área científica ou profissional (Nóvoa & Lawn, 2002).
Estes dois grupos, mais do que os professores, contribuíram para renovar os estudos sobre a profissão docente. Ao fazer esta afirmação, não posso, todavia, deixar de recordar o aviso premonitório de David Labaree: os discursos sobre a profissionalização dos professores tendem a melhorar o estatuto e o prestígio dos especialistas (formadores de professores, investigadores, etc.) mais do que a promover a condição e o estatuto dos próprios professores (Labaree, 1992).
A inflação retórica sobre a missão dos professores implica dar-lhes uma maior visibilidade social, o que reforça o seu prestígio, mas provoca também controlos estatais e científicos mais apertados, conduzindo assim a uma desvalorização das suas competências próprias e da sua autonomia profissional. Se não atendermos a este paradoxo dificilmente compreenderemos algumas das contradições que atravessam a história da profissão docente (Nóvoa, 1998).
Nos últimos anos, houve uma expansão sem precedentes da comunidade da formação de professores, em particular dos departamentos universitários na área da Educação, dos especialistas internacionais e também da “indústria do ensino”, com os seus produtos tradicionais (livros escolares, materiais didácticos, etc.) acompanhados agora de uma panóplia de tecnologias educativas.
Nestas três esferas de acção produziu-se uma inflação discursiva sobre os professores. Mas os professores não foram os autores destes discursos e, num certo sentido, viram o seu território profissional e simbólico ocupado por outros grupos. Devemos ter consciência deste problema se queremos compreender as razões que têm dificultado a concretização, na prática, de ideias e discursos que parecem tão óbvios e consensuais.
Deixem-me retomar uma provocação que fiz há quase vinte anos e que me causou alguns dissabores. Em 1991, reagi ao insulto de Bernard Shaw, acrescentando-lhe duas máximas:
Quem sabe, faz.
Quem não sabe, ensina.
Quem não sabe ensinar, forma os professores.
Quem não sabe formar professores, faz investigação educacional.
Procurava, num raciocínio ab absurdo, chamar a atenção para certas derivas que legitimavam como figuras de referência especialistas e universitários sem qualquer ligação à profissão docente e ao trabalho escolar ao mesmo tempo que deslegitimavam os professores de uma intervenção no seu próprio campo profissional reduzindo-os a um papel secundário na formação de professores e na investigação educacional.
O excesso dos discursos esconde, frequentemente, uma grande pobreza das práticas. Temos um discurso coerente, em muitos aspectos consensual, mas raramente temos conseguido fazer aquilo que dizemos que é preciso fazer. Na segunda parte deste ensaio, argumentarei sobre a necessidade de construir políticas que reforcem os professores, os seus saberes e os seus campos de actuação, que valorizem as culturas docentes, e que não transformem os professores numa profissão dominada pelos universitários, pelos peritos ou pela “indústria do ensino”.

2. Como fazer aquilo que dizemos que é preciso fazer?
O que será necesário fazer para dar coerência aos nossos propósitos, materializando na prática o consenso que se vem elaborando em torno da aprendizagem docente e do desenvolvimento profissional? Talvez seja possível assinalar três medidas, que estão longe de esgotar as respostas possíveis, mas que podem ajudar a superar muitos dos dilemas actuais.

Primeira medida - É preciso passar a formação de professores para dentro da profissão
A frase que escolhi para subtítulo – É preciso passar a formação de professores para dentro da profissão – soa de modo estranho. Ao recorrer a esta expressão, quero sublinhar a necessidade de os professores terem um lugar predominante na formação dos seus colegas. Não haverá nenhuma mudança significativa se a “comunidade dos formadores de professores” e a “comunidade dos professores” não se tornarem mais permeáveis e imbricadas. O exemplo dos médicos e dos hospitais escolares e o modo como a sua preparação está concebida nas fases de formação inicial, de indução e de formação em serviço talvez nos possa servir de inspiração.
A este propósito, merece referência um apontamento recente de Lee Shulman, intitulado Uma proposta imodesta.
Lee Shulman explica que um dia acompanhou a rotina diária de um grupo de estudantes e professores médicos num hospital escolar. O grupo observou sete doentes, estudando cada caso como uma “lição”. Havia um relatório sobre o paciente, uma análise da situação, uma reflexão conjunta, um diagnóstico e uma terapia. No final, o médico responsável discutiu com os internos (alunos mais avançados) a forma como tinha decorrido a visita e os aspectos a corrigir. De seguida, realizou-se um seminário didáctico sobre a função pulmonar. O dia terminou com um debate, mais alargado, sobre a realidade do hospital e sobre as mudanças organizacionais a introduzir para garantir a qualidade dos cuidados de saúde. Lee Shulman escreve que viu uma instituição reflectir colectivamente sobre o seu trabalho, mobilizando conhecimentos, vontades e competências. E afirma que este modelo constitui não só um importante processo pedagógico, mas também um exemplo de responsabilidade e de compromisso. Neste hospital, a reflexão partilhada não é uma mera palavra. Ninguém se resigna com o insucesso. Há um envolvimento real na melhoria e na mudança das práticas hospitalares.
Advogo um sistema semelhante para a formação de professores:

(i) estudo aprofundado de cada caso, sobretudo dos casos de insucesso escolar;
(ii) análise colectiva das práticas pedagógicas;
(iii) obstinação e persistência profissional para responder às necessidades e anseios dos alunos;
(iv) compromisso social e vontade de mudança.
Na verdade, não é possível escrever textos atrás de textos sobre a praxis e o practicum, sobre a phronesis e a prudentia como referências do saber docente, sobre os professores reflexivos, se não concretizarmos uma maior presença da profissão na formação.
É importante assegurar que a riqueza e a complexidade do ensino se tornem visíveis, do ponto de vista profissional e científico, adquirindo um estatuto idêntico a outros campos de trabalho académico e criativo. E, ao mesmo tempo, é essencial reforçar dispositivos e práticas de formação de professores baseadas numa investigação que tenha como problemática a acção docente e o trabalho escolar.
Não se trata, escusado será dizer, de defender perspectivas de mitificação da prática ou modalidades de anti-intelectualismo na formação de professores (Ladwig, 2008). Trata-se, sim, de afirmar que as nossas propostas teóricas só fazem sentido se forem construídas dentro da profissão, se forem apropriadas a partir de uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho. Enquanto forem apenas injunções do exterior, serão bem pobres as mudanças que terão lugar no interior do campo profissional docente.

Segunda medida - É preciso promover novos modos de organização da profissão
A segunda medida que proponho aponta para a necessidade de promover novos modos de organização da profissão. Grande parte dos discursos torna-se irrealizável se a profissão continuar marcada por fortes tradições individualistas ou por rígidas regulações externas, designadamente burocráticas, que se têm acentuado nos últimos anos.
Quanto mais se fala da autonomia dos professores mais a sua acção surge controlada, por instâncias diversas, conduzindo a uma diminuição das suas margens de liberdade e de independência. O aumento exponencial de dispositivos burocráticos no exercício da profissão não deve ser vista como uma mera questão técnica ou administrativa, mas antes como a emergência de novas formas de governo e de controlo da profissão.
A colegialidade, a partilha e as culturas colaborativas não se impõem por via administrativa ou por decisão superior. Mas o exemplo de outras profissões, como os médicos, os engenheiros ou os arquitectos, pode inspirar os professores. A forma como construíram parcerias entre o mundo profissional e o mundo universitário, como criaram processos de integração dos mais jovens, como concederam uma grande centralidade aos profissionais mais prestigiados ou como se predispuseram a prestar contas públicas do seu trabalho são exemplos para os quais vale a pena olhar com atenção.
Não é possível preencher o fosso entre os discursos e as práticas se não houver um campo profissional autónomo, suficientemente rico e aberto. Hoje, num tempo tão carregado de referências ao trabalho cooperativo dos professores, é surpreendente a fragilidade dos movimentos pedagógicos que desempenharam ao longo das décadas um papel central na inovação educacional. Estes movimentos, tantas vezes baseados em redes informais e associativas, são espaços insubstituíveis na aprendizagem docente e no desenvolvimento profissional.
Pat Hutchings e Mary Taylor Huber (2008) têm razão quando referem a importância de reforçar as comunidades de prática, isto é, um espaço conceptual construído por grupos de educadores comprometidos com a pesquisa e a inovação, no qual se discutem ideias sobre o ensino e aprendizagem e se elaboram perspectivas comuns sobre os desafios da formação pessoal, profissional e cívica dos alunos.
Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática, reforça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudança e os transformem em práticas concretas de intervenção. É esta reflexão colectiva que dá sentido ao seu desenvolvimento profissional.
Mas nada será conseguido se não se alterarem as condições existentes nas escolas e as políticas públicas em relação aos professores. É inútil apelar à reflexão se não houver uma organização das escolas que a facilite. É inútil reivindicar uma formação mútua, inter-pares, colaborativa, se a definição das carreiras docentes não for coerente com este propósito. É inútil propor uma qualificação baseada na investigação e parcerias entre escolas e instituições universitárias se os normativos legais persistirem em dificultar esta aproximação.
As perguntas sucedem-se. Será que, hoje, muitos professores não são bem menos reflexivos (por falta de tempo, por falta de condições, por excesso de material didáctico pré-preparado, por deslegitimação face aos universitários e aos peritos) do que muitos dos seus colegas que exerceram a docência num tempo em que ainda não se falava do “professor reflexivo”? Numa palavra, não vale a pena repetir intenções que não tenham uma tradução concreta em compromissos profissionais, sociais e políticos.

Terceira medida - É preciso reforçar a dimensão pessoal e a presença pública dos professores
Em 1984, Ada Abraham escreveu esse belo livro, L’enseignant est une personne, que se tornou um símbolo de diversas correntes de investigação sobre os professores. Mas, apesar dos enormes avanços neste domínio, é preciso reconhecer que falta ainda elaborar aquilo que tenho designado por uma teoria da pessoalidade que se inscreve no interior de uma teoria da profissionalidade. Trata-se de construir um conhecimento pessoal (um auto-conhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica. Toca-se aqui em qualquer coisa de indefinível, mas que está no cerne da identidade profissional docente.
Este esforço conceptual é decisivo para se compreender a especificidade da profissão docente, mas também para que se construam percursos significativos de aprendizagem ao longo da vida. Recordo Bertrand Schwartz (1967), em texto escrito há mais de quarenta anos: a Educação Permanente começou por ser um direito pelo qual se bateram gerações de educadores, transformou-se depois numa necessidade e agora é vista como uma obrigação.
A aprendizagem ao longo da vida justifica-se como direito da pessoa e como necessidade da profissão, mas não como obrigação ou constrangimento. A crítica de Nikolas Rose à emergência de um novo conjunto de obrigações educacionais merece ser recordada: “O novo cidadão é obrigado a envolver-se num trabalho incessante de formação e re-formação, de aquisição e reaquisição de competências, de aumento das certificações e de preparação para uma vida de procura permanente de um emprego: a vida está a tornar-se uma capitalização contínua do self (1999, p. 161).
Muitos programas de formação contínua têm-se revelado inúteis, servindo apenas para complicar um quotidiano docente já de si fortemente exigente. É necessário recusar o consumismo de cursos, seminários e acções que caracteriza o actual “mercado da formação” sempre alimentado por um sentimento de “desactualização” dos professores. A única saída possível é o investimento na construção de redes de trabalho colectivo que sejam o suporte de práticas de formação baseadas na partilha e no diálogo profissional.
Os lugares da formação podem reforçar a presença pública dos professores. Tem-se alargado o interesse público pela coisa educativa. Mas, paradoxalmente, também aqui se tem notado a falta dos professores. Fala-se muito das escolas e dos professores. Falam os jornalistas, os colunistas, os universitários, os especialistas. Não falam os professores. Há uma ausência dos professores, uma espécie de silêncio de uma profissão que perdeu visibilidade no espaço público.
Hoje, impõe-se uma abertura dos professores para o exterior. Comunicar com a sociedade é também responder perante a sociedade. Possivelmente, a profissão tornar-se-á mais vulnerável, mas esta é a condição necessária para a afirmação do seu prestígio e do seu estatuto social. Nas sociedades contemporâneas, a força de uma profissão define-se, em grande parte, pela sua capacidade de comunicação com o público.

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Ao longo deste ensaio evitei ser redundante na afirmação de princípios que me parecem, hoje, bastante consensuais. Procurei antes transmitir, sem rodeios, a minha opinião sobre a distância que separa o excesso dos discursos da pobreza das práticas. A consciência aguda deste “fosso” convida-nos a encontrar novos caminhos para uma profissão que, neste início do século XXI, volta a adquirir uma grande relevância pública.
Falta-nos talvez, como diz Ann Lieberman (1999), ter a coragem de começar: “Apesar da urgência, é necessário que as pessoas possuam o tempo e as condições humanas e materiais para ir mais longe. O trabalho de formação deve estar próximo da realidade escolar e dos problemas sentidos pelos professores. É isto que não temos feito”.
É preciso começar. Parece que todos sabemos, e até concordamos, com o que deve ser o futuro da profissão docente. Mas temos dificuldade em dar passos concretos nesse sentido. Por isso, quis organizar este ensaio em torno da pergunta: Será que o futuro ainda demora muito tempo?