sábado, 11 de março de 2017

Manifestações da invisível morada da memória

A Índia atrai a muitos por sua síntese de mistério, sabedoria, 'complexa configuração social' e, ao mesmo tempo, proporcionar quadros de referência para uma vida calma e em paz. É um país de diversas línguas e de uma relação bastante  singular com o fenômeno religioso, onde este, em muitos casos, está mais para imperativo ético/norma de conduta cotidiana do que para um investimento à espera de recompensas futuras (como ocorre em variantes religiosas ocidentais). No Mahabharata, texto clássico do hinduísmo, podemos ler, por exemplo, que "a alma é uma coisa que a espada não pode ferir, o fogo não pode destruir, que as águas não podem maltratar, que o vento do meio dia não pode secar". Lembrei disso ao assistir o filme Lion - Uma Jornada para Casa, a propósito da história real de um garotinho indiano que se perde aos cinco anos, é adotado por uma família estrangeira, mas, vinte anos depois, tem a sua alma tomada pelo desejo de regressar às origens e reencontrar os seus familiares.  Manifestações da invisível morada da memória. Aí abaixo, segue uma recensão do filme, com o seu trailer ao final. 

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Por Roger Lerina

O escritor Charles Dickens sabia das coisas: histórias sobre crianças órfãs têm um gigantesco potencial de comover o público. O tema, porém, é caborteiro: a mesma vocação para fazer as lágrimas jorrarem também pode afogar o juízo crítico e reduzir a experiência de ler um livro ou ver um filme a mera catarse de emoções.
Entraram em cartaz dois títulos que conseguem desviar desse estelionato narrativo : a animação Minha Vida de Abobrinha e o drama Lion – Uma Jornada para Casa. Em sua estreia no longa-metragem de ficção, o diretor Garth Davis arriscou embrenhar-se na duvidosa senda do cinema de bons sentimentos adaptando o relato autobiográfico escrito pelo indiano-australiano Saroo Brierley – o livro foi publicado no Brasil pela editora Record. Saiu-se bem. Lion abre mão de anabolizar a naturalmente já tocante trajetória do garotinho pobre que se perde da família no interior da Índia e acaba adotado por um casal da Austrália.
Lion é dividido em duas partes com a mesma duração de tempo. No primeiro ato, a trama acompanha o pequeno Saroo – vivido pelo adorável e carismático ator-mirim Sunny Pawar – desencontrar-se do irmão Guddu (Abhishek Bharate) enquanto ambos saem à noite para fazer biscates em uma estação ferroviária. Saroo termina dormindo dentro de um trem que vai para Calcutá, onde o menino de cinco anos tenta em vão retornar para casa. Sem saber o nome do local onde mora, distante cerca  de 1,2 mil quilômetros de casa, o mirrado protagonista passa por desventuras em série nas ruas da cidade grande. Depois de muito penar nas franjas da metrópole, Saroo vai parar em um orfanato, que posteriormente arranja sua adoção pelos australianos Sue (Nicole Kidman) e John Brierley (David Wenham).

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Na hora final de Lion, o enredo avança 20 anos, mostrando Saroo já crescido – interpretado agora por Dev Patel. Estudante de hotelaria, o jovem adulto tem um irmão problemático, o também adotado indiano Mantosh (Divian Ladwa), e namora a colega Lucy (Rooney Mara). O contato com estrangeiros, especialmente de seu país natal, desperta no protagonista a vontade de procurar a mãe e o irmão, dos quais nunca mais teve notícias. A trabalhosa pesquisa para descobrir seu lugar de origem mexe com Saroo, levando-o a questionar-se sobre sua identidade e a entrar em atritos com os pais adotivos e a namorada.
Além da sábia contenção da direção, que não manipula excessivamente a empatia do espectador, Lion tem a seu favor um excelente e homogêneo elenco, no qual desponta, além do moleque Sunny Pawar, a dupla Dev Patel e Nicole Kidman.
 Lion – Uma Jornada para Casa vai além do melodrama choroso de rotina e faz jus ao espírito de seu depoimento sobre a angústia e a eventual felicidade de dividir-se entre duas culturas, duas famílias e duas vidas.


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Fonte: http://zh.clicrbs.com.br