Tela de Rob Gonsalves |
"Se o método racional e a própria vontade nos conduzissem ao porto do conhecimento, a partir do qual já nos encaminhamos para a região sólida da felicidade, não sei se eu não diria temerariamente que muito menos seres humanos lá chegariam, ainda que, já agora, conforme se vê, são muito raros e poucos os que lá chegam.
De fato, porque fomos
lançados para este mundo, como que ao acaso e sem orientação, ou pela natureza,
ou pela necessidade ou a nossa vontade, ou pela confluência de algumas ou de
todas estas causas – assunto este, decerto, muito obscuro -, quantos saberiam
para que local se dirigir ou por onde regressar, a não ser que, um dia, alguma
tempestade, considerada pelos ignorantes como algo adverso, contra a nossa
vontade e resistência, nos impelisse violentamente, viajantes ignorantes e
errantes, para a mais desejada terra.
Ora, parece-me haver três
classes, como que de navegantes, entre os seres humanos aos quais o
conhecimento pode acolher.
A primeira é a daqueles que,
quando a idade da razão se assenhora deles, com um pequeno esforço e a pulso
dos remos, se afastam da proximidade e se recolhem à tranquilidade donde
levantam um sinal luminoso de alguma sua obra para os outros cidadãos serem
advertidos e a ela se acolherem.
A segunda, ao contrário da
anterior, compreende aqueles que, desiludidos pelo aspecto muito enganador do
mar, optaram por avançar por adentro e atrevem-se a peregrinar longe da pátria,
dela se esquecendo muitas vezes. Se – não sei como ou por que modo oculto –
lhes bate o vento pela popa, vento que consideram favorável, adentram-se,
ufanos e regozijantes, nas profundezas da miséria. Que outra coisa, portanto,
se deve desejar para estes humnaos senão alguma contrariedade precisamente nas
coisas em que eles, como que lançados, se encontram envolvidos, e se isso não
for suficiente, uma tempestade muito feroz e
um vento que sopre em direção contrária e os conduzam, mesmo gemendo e chorando, até às
alegrias certas e sólidas?
Ainda existe, no meio, uma
terceira classe, formada por aqueles que, ou no limiar da sua adolescência, ou
vagueando pelo mar há já mesmo muito tempo, contemplam, apesar de tudo, alguns
sinais que os levam a recordar, ainda no meio das ondas, a sua dulcíssima
pátria. Então a ela regressam, sem se desviarem ou demorarem, quer por uma rota
adequada, a maior parte das vezes, ou errando pela neblina, ou avistando os
astros que as ondas submergem, ou presos por algumas ilusões, deixam passar o
tempo para uma boa navegação e erram durante um longo período, e, muitas vezes,
arriscam a sua própria vida."
(Agostinho de Hipona - Santo Agostinho. In: De beata uita' - Diálogo sobre a felicidade', edição bilingue - português e latim -, Coimbra, Edições 70, 2000, p. 21-23).
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