segunda-feira, 25 de abril de 2016

A sombra do passado e o futuro como possibilidade



Por Ivonaldo Leite

Num livro de já algumas décadas, um budista zen nos disse, em palavras aproximadas, mais ou menos o seguinte: “vós, ocidentais, quando pretendem entender uma flor, dividem as suas partes e analisam a sua composição química; entendê-la, para vós, é destruí-la; para nós, entender uma flor, é sentir-se flor, procurar observar o mundo com os olhos de flor”.
Nos albores da juventude, quando fui atingido pelos resquícios do lixo autoritário da ditadura militar - que me afastou do meu curso universitário por trinta dias, por causa das minhas posições político-ideológicas, com base em dispositivos do decreto 477, o AI 5 dos estudantes -, sempre estive a pensar na referida afirmação budista. O que, de imediato, me remetia para os sentidos da história.  
Conforme escreveu o César Benjamin num artigo de 2010 (‘Reminiscência: 1968 e depois’, na Revista Caros Amigos), há duas assimetrias que devem ser levadas em consideração quando se compara passado e presente. A primeira é que o passado aparece como um tempo condensado, pois já foi “decantado e filtrado pela ação seletiva da memória, que só retém os momentos e aspectos mais marcantes e decisivos. O presente, por sua vez, decorre no tempo estendido do quotidiano. Com as tintas mais carregadas por aquela seleção, fica aberto o caminho para idealizações e caricaturas. O passado tende a parecer muito melhor ou muito pior do que, de fato, foi para os que viveram ele”. A outra assimetria é em relação ao futuro. Como futuro do passado ele já está encerrado em uma trajetória que, vista do presente,  parece ter sido a única possível. “Nada sabemos do amanhã, mas, ao olharmos para trás, já sabemos o que aconteceu depois. Por isso, muitos livros de memórias, implícita ou explicitamente, atribuem um sentido predefinido aos acontecimentos vividos, como se o presente, tal como ele é, fosse um ponto de chegada natural: tudo aconteceu para que estivéssemos aqui, do jeito em que estamos. Assim, o passado é reduzido à condição de um ‘presente incompleto’, o ‘presente imaturo’, o que não tem sentido nenhum”.
Sob determinadas circunstâncias, o passado sobrevive como uma sombra a encobrir e obstruir o presente. Todavia, em última instância, é sempre o indivíduo que, pelas frestas das probabilidades, traça o seu percurso. Resignar-se ou superar desafios. É neste último caso que faz sentido falar sobre o futuro como possibilidade. Compreender as situações, em suas totalidades, e agir.
Os antigos gregos denominavam épokhé o procedimento que deveria ser buscado para  se entender uma dada situação, isto é, a procura de um estado de repouso mental que permitisse captar/observar todos os seus ângulos. É de se dizer que o valor dessa perspectiva é mais instrutivo do que operacional em si mesmo, mas exatamente por isso ela tem, digamos, uma função metodológica. Abre-nos caminho para uma ideia de futuro como plano aberto, em construção, e talvez ajude as pessoas a entenderem a vida sentindo a vida, a entenderem a flor sentindo-se flor.
   

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