Repiso o que aqui já realcei. Clássico do expressionismo alemão, dirigido por Fritz Lang, ‘M – O Vampiro de Dusseldorf’ conta a história de um assassino de crianças que coloca uma cidade em pânico. A polícia pressiona por todos os lados, mas ele parece inapreensível. Tanta pressão policial, no entanto, acabou por atrapalhar a vida de todos os outros bandidos da cidade. Pelo que então eles decidem que o melhor a fazer é procurar o assassino e dar cabo dele. O resultado é lapidar: capturado, o assassino é julgado por um tribunal composto por bandidos travestidos de juízes. Há queixas de que ele quebrou a “ética do submundo”. Existe, contudo, algo mais perturbador no filme: não só criminosos e autoridades são duas faces da mesma moeda, mas as pessoas, os anônimos da rua, os que se colocam como “palmatória do mundo”, tendem, em precipitação de pensamento, de chofre, a brandir suas “verdades” com arrogância, para, ato contínuo, destilarem ódio. Sombras que estorvam o pensamento. A crise na qual o Brasil se encontra envolvido e o "espetáculo" que foi a sessão de ontem (17/04) na Câmara dos Deputados bem lembram 'M - O Vampiro de Dusseldorf'. O texto aí abaixo, de Leonardo Sakamoto, é paradigmático a esse respeito.
Foto de 'M - O Vampiro de Dusseldof' |
Por Leonardo Sakamoto
(Doutor em Ciência Política,
Professor da PUC-SP e Pesquisador Visitante no Departamento de Política da New
School, em Nova York)
Você pode ser a favor
ou contra o impeachment de Dilma Rousseff. Mas se tem, pelo menos, dois neurônios
funcionais irá concordar que grande parte da Câmara dos Deputados é composta de
semoventes incapazes de demonstrar empatia, quiçá exercerem aquela que deveria
ser a mais nobre das atividades, que é a política. Pelo contrário,
consideram-se a si mesmos o centro do universo e seus interesses como os
interesses do Estado. Se multiplicassem o seu bom senso pelo número de
conchinhas do mar e elevasse o resultado ao número de estrelinhas do céu, eles
ainda não veriam problema algum em agradecer ao seu poodle querido no microfone
de votação.
Pois o que leva um mamífero, cuja imagem está
sendo transmitida para o Brasil e o mundo (o deputado, não o poodle), em um dos
momentos mais importantes de sua vida política, achar que está no Show da Xuxa
e mandar um beijo para a família? Citar o nome de esposa, dos filhos, do gato
pelado, para justificar uma posição que vai ditar os destinos da nação pelas
próximas décadas? Teve gente que fez até versinho. VERSINHO! Sem contar, as
declarações de afeto: “Leliane, meu amor, Lorenzo, nosso filho, esse voto…''
Eu, que não creio, clamava a Deus que me sacrificasse. Mas, como podem ver, ele
não me ouviu.
E sabe por que não ouviu? Porque Deus estava
chapado! Depois de ver, com os próprios olhos, dezenas de votos serem
pronunciados em seu nome por pessoas de reputação tão ilibada, tomou uma caixa
de Frontal e apagou. Dizem os querubins que ele pediu para ser acordado apenas
quando o governo Temer acabar – se é que vai acabar. Ou seja, estamos por nossa
conta – e depois me perguntam porque sou ateu. Nem o capeta dá para acionar
neste momento porque já disse que não se mete com Eduardo Cunha. Tem medo. Vai
saber quantos deputados ele tem no bolso?
Toda vez que algum parlamentar ousava tecer
críticas ao presidente da Câmara dos Deputados, réu em ação penal pela Lava
Jato, sofria bullying de sua claque no plenário. Se o Brasil não fosse uma
republiqueta, ele estaria desqualificado para conduzir uma sessão de
impeachment presidencial. Mas o Brasil é uma republiqueta e, por isso, não
só estava lá como foi, diversas vezes, aplaudido. Cunha foi o homem
certo na hora certa, prestando os favores corretos para os grupos corretos.
Talvez por isso, ontem mesmo no plenário, já se debatia uma anistia a ele –
que, olha que bonito, pode vir a substituir Temer quando este precisar viajar
para fora do país. O Brasil não é para principiantes.
E a galera que citava os
“dez milhões de empregos perdidos''? A incompetência deste governo, que nos
jogou em uma situação econômica bizarra, deve ser lembrada até o final dos
tempos, bem como sua tentativa de rifar os direitos de trabalhadores para fugir
da crise. Mas considerando que o projeto de lei que amplia a terceirização legal,
precarizando ainda mais a vida dos trabalhadores (leia mais aqui), está para
ser votado e, se for, será aprovado, só posso crer que esses deputados
estavam untados de óleo de peroba ao dar essas declarações.
Vamos ao ponto: raríssimos foram os casos em
que parlamentares fizeram referência à questão dos decretos orçamentários
usados como justificativa – insuficiente, diga-se de passagem – para dizer que
Dilma havia cometido crime de responsabilidade. A bem da verdade, boa parte dos
parlamentares não consegue explicar o que são decretos orçamentários, nem o que
é uma “pedalada''. Não duvido que usem a Constituição como peso de papel ou
rascunho em seus gabinetes.
Pouco depois de parabenizar Cunha, homenagear
o açougueiro e torturador Brilhante Ustra (que se houvesse inferno, estaria
tostando lá, neste momento) e cravar a ignomínia “perderam em 1964, perderam em 2016″, Jair Bolsonaro foi
ovacionado nas redes sociais por aquela legião de pessoas que cabulava aula de
história ou pouco se importa com a dignidade alheia. Bolsonaro foi um dos
principais beneficiados por todo o fundúnculo do ano passado – ao lado de
Michel Temer, claro. De congressista caricatural, ele já tem 8% do
eleitorado. Em 2018, como estimei aqui, vai partir de índices de 15% para a
campanha presidencial.
Donald Trump ocupou um espaço de porta-voz
de comentaristas de redes sociais nos Estados Unidos, público insatisfeito
pelo fato de que seus queridos preconceitos estão sendo atacados. Bolsonaro
tenta o mesmo, sem o mesmo charme ou conteúdo.
Ambos dizem que essa parcela não precisa se
sentir dessa forma, nem se adaptar. Basta lutar contra a ditadura do
“politicamente correto'' – o que é outro grande equívoco. Pois se essa ditadura
existisse, não haveria sem-tetos, gente passando fome, mulheres negras ganhando
menos do que homens brancos, nem pessoas mortas por amar alguém do seu jeito.
Como os principais partidos políticos não se
esforçam para garantir mais participação popular, o governo e a oposição
derraparam em dar respostas para a retomada do crescimento econômico e a vida
do brasileiro (principalmente o mais pobre) foi piorando a olhos vistos, fomos
assistindo ao crescimento de discursos que bradam que a democracia é
questionável. PSDB e PT, os principais partidos após a redemocratização,
perderam o bonde da construção de suas narrativas. Tanto a ideia de
social-democracia naufragou no primeiro, quanto a importância da luta de
classes desapareceu do segundo. Órfã, a população foi atrás de comprar o
que estava disponível.
A verdade é que essa miríade de deputados,
apesar dos discursos bizarros, sabe conversar com um público que quer saídas
rápidas e fáceis para seus problemas. Conseguem entregar uma narrativa simples
para que o público possa tocar suas vidas – coisa que não conseguem fazer
intelectuais, líderes sindicais e parte da militância social que falam de um
mundo complexo e cheio de tonalidades. A realidade realmente não é simples e,
ao tentar simplificá-la, algo ou alguém sempre fica de fora. Nas narrativas
coalhadas de ódio, por exemplo, exclui-se a dignidade humana.
A votação deste domingo deveria ser assistida
de forma obrigatória por todo o eleitor antes das próximas eleições. Seria
extremamente didático mostrar quem são as pessoas que discutem e constroem as
leis que todos nós iremos seguir. Isso, é claro, se muitos dos eleitores não
sentirem total empatia com aquele circo – afinal de contas, não podemos
esquecer que jabuti não sobe sozinho em poste, nós os colocamos lá. Eles (os
deputados, não os jabutis) também somos nós.
Desse clima atual de “que se vão todos'' pode
brotar algo novo, baseado – por exemplo – na garotada que foi às ruas em junho
de 2013. Eles não retornaram para pedir a saída ou a permanência de Dilma, mas
impuseram uma rara derrota ao governo Geraldo Alckmin na questão da
reorganização das escolas estaduais de São Paulo no ano passado. Estão por aí,
debatendo, conversando.
Mas, se o descrédito na política continuar
crescendo, esse clima pode abrir caminho para algum “salvador da pátria'', que
não precisa de partidos, e promete botar ordem na casa sozinho, com a rigidez
e o carinho de um Grande Pai. Que irá governar com um Congresso que pode ser
igual ou pior do que esse que está aí. Afinal de contas, no fundo do poço, há
sempre um alçapão.
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Fonte: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/. Título original: 'Por Deus, pela Família, por Cunha'.
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