Por Michelangelo Bovero
A tradição de pensamento
que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus
temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas
também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de
um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que
deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise
conceitual. A teoria analítica da democracia que foi elaborada dentro da escola
de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em
primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por
exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas
como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é
geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção
processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as
ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção
sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este
núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da
democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como
instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes
políticos contemporâneos.
A tabela bobbiana das
regras democráticas
1 – Todos os cidadãos que
alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e
sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de
expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 – O voto de todos os
cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 – Todas as pessoas que
desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com
sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma
concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 – Devem ser livres
também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou
seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 – Seja por eleições,
seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido
de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo
maior número de votos;
6 – Nenhuma decisão tomada
pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de
se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.
Essas seis regras são
chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de
acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da
decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados
democráticos.
Todas as regras enumeradas
por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que
caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons
argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e
democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um
sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à
atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo
a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns
promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em
voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal:
em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não
pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não
pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser
abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que
isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma
democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se
teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.
Critérios de
democratização
A tabela bobbiana das seis
regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de
normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas
a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático
se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões
coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível
dos interessados”. Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade
da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e
utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização,
simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que
estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de
democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem
como condições da democracia. Aplicando de um modo
elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que,
se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma
coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e
autodenominar democrática.
No capítulo da Teoria
geral da política que
assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras
como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes:
“Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras
para que um governo não seja democrático”. Em outro texto, Bobbio parece muito
mais flexível: “Nenhum regime histórico jamais observou completamente o
conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou
menos democráticos”.
Começo observando que
Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. Devemos
esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a
doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da
comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da
prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em
todas as experiências concretas de “realização” da democracia, não foi a “de
‘transformar’ um regime democrático em um regime autocrático”. A fronteira
entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as
regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo
grau.
O problema mais importante
não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que
um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau
de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são “aquelas
listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente”. Por isso, na
análise de casos das democracias reais, “deve-se ter em mente o possível desvio
entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são
aplicadas”. E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984
Bobbio não hesitava: “mesmo a mais distante do modelo”, ou seja, do paradigma
de uma aplicação correta das regras do jogo, “não pode ser de modo algum
confundida com um estado autocrático”. Então, afirmava ele, apesar das secas
réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna,
“não se pode falar propriamente de uma ‘degeneração’ da democracia”.
Eu me pergunto: isso ainda
é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos?
Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a
“era das tiranias”, os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém,
podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações
sofreu a democracia?
Vejamos: diante do
problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa – ou, em outras
partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de
cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a
uma condição de existência miserável e sem resgate –, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de
Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos
por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias
reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela
segunda regra? Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a
condição de pluralidade da informaçãoexigida
implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões
e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da
administração do poder, da distorção das cúpulas e das “lideranças” da vida
pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática
dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis,
como ficam as condições de pluralismo políticorequeridas
pela quarta regra? E diante da configuração da dialética política como um jogo
de soma zero, no qual “quem ganha leva tudo”, não se poderia falar talvez de um
abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição
simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante
das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos
direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos
das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das
alterações na separação dos poderes, como ficam os “direitos das minorias”
protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?
É supérfluo acrescentar
que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a
Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade,
fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da
democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos
concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com
relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o
Bobbio “pessimista”, manifestava um quarto de século atrás.
Tolerância – debate livre
– fraternidade
Pode parecer que uma
teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente
técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo
dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma
pergunta que ele mesmo reconhece como “fundamental”: “Se a democracia é
principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender
contar com ‘cidadãos ativos’? Para que cidadãos ativos existam, não seria
preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar
conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?”. Em suma: Bobbio
nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, “que tão frequentemente
zombaram das regras formais da democracia”, são o fruto de escolhas de valores,
e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência
desejável e aprovada com base em determinados valores.
Mas quais valores? Para
simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de
democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No
primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da
democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como
critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores
democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro:
tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e
fraternidade. Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo
democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros
dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a
igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível,
mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento
da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a
distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das
decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva,
que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas
próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.
Isso significa talvez que
as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões
econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a
ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo
hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores
democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito
de democracia – tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e
reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos
liberais e socialistas. Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como
tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria,
e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não
precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e
especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem
toda forma de igualdade é um valor. Aquelas que Bobbio chama de “as quatro
grandes liberdades dos modernos” – a liberdade pessoal, de opinião, de reunião
e de associação – são valores de tradição liberal que um bom democrata deve
fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades
como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, “não são propriamente
regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do
jogo”. Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da
democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas
pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não
políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das
tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais
da democracia. Que sentido teriam os direitos de participação política se não
fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre
reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de
reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações
livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder
concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos
sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os
indivíduos, como livres?
Para retomar, simplificar
ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica,
proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como “a democracia é o
regime da igualdade e da liberdade política” deve ser considerada como um juízo
analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do)
sujeito. Uma proposição (dupla) como “a democracia é o regime das liberdades
individuais e/ou das igualdades sociais”, que à primeira vista pode parecer
extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações
históricas da noção de democracia. Tal proposição deve ser considerada, feitas
as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade
e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de
um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as
condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte
normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de
seus defeitos.
A ideia de democracia
também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema
conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia,
direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de
implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: “Os
direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo
movimento histórico”. Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice
vínculo é confirmada, em negativo, também pelo “movimento contra-histórico” que
estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece
realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu
sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de “matéria bruta” do mundo opôs
uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não
apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.
Crise da democracia
Que a democracia hoje
esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma
afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de
mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária,
de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um
neologismo: “antipolítica”. Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo
designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e
movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas
neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade “verdadeira” do
“povo” àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de
partidos e das instituições de representação. Na Europa muitos atores políticos
de direita, expressões do “chauvinismo do bem-estar” produzido pela
globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos. Na América
Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que
viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da
antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de
pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo “antipolítica”,
o termo mais explícito “antidemocracia”; também para sugerir que, apesar do
consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma
caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que
reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.
A noção de antidemocracia
contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à
história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na
dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e
antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar
a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se
resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez
mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por
Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais
perigosos da política contemporânea.
Facismo pós-moderno
Ao risco de fazer tremer
os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo
fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da
Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que
abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia
caracterizar as diversas manifestações da “antidemocracia” que estamos
observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo
pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão
demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo
ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa
figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo
(depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de
maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem
consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de
sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista
e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a
natureza essencialmente “subversiva” de ambos.
Em um dos artigos sobre a
história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o
juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem
duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o
fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa
ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda
forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista. Com
relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários
exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não
a conheçam) a visão de certas imagens dos “jornais cinematográficos” da época,
que nos passavam a figura do “líder” Mussolini na sacada do Palazzo Venezia,
com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão
da “massa oceânica”: eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa
sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o
mapa-múndi. Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no
regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se
repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito
para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente
pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e
farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a
questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno,
dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores
não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século 19,
Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia
moral e cívica dos italianos. Nas
mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a
retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos,
que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não
satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do
apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na
idiotização dos cidadãos pela mídia. Bobbio se acostumou a repetir que a Itália
é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao
laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made
in Italy demonstraram
ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente
aquilo que sai de nosso laboratório.
Tanto para o mal quanto
para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo – e não me canso
de repetir –, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira
a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia
constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que
também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar. Tanto é verdade que foi
tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo,
a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de
muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente
política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui,
como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos
anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de
democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura
atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/
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