Quando alguém da estatura de Dermeval Saviani, uma referência histórica e central da educação brasileira, com significativas contribuições à área, escreve um texto como o que segue aí abaixo a propósito da crise que o país vive, é porque, de fato, a situação requer prudência, serenidade e reflexão de todos os democratas. A conferir.
Por Dermeval Saviani
Professor Emérito da UNICAMP e Pesquisador Emérito do CNPq
A crise
que se abateu sobre o país tem sido justificada em nome do combate à corrupção
e, por meio da insistente repetição dos diversos meios de comunicação, vem
induzindo a população a acreditar que foi o PT que, ao chegar ao governo,
institucionalizou a corrupção instalando uma verdadeira quadrilha empenhada na
apropriação privada dos fundos públicos. Mas a verdade é bem outra. O erro do
PT foi, ao assumir o governo, não ter tentado desmontar o esquema que já
existia e do qual se serviam todos os partidos que chegavam ao poder. Ao
contrário, para assegurar uma base de apoio no Congresso sem o que não
conseguiria governar, o PT lançou mão do esquema que já se encontrava em
funcionamento muito antes do seu surgimento. Portanto, o apelo atual à luta
contra a corrupção não passa de uma grande farsa. Como afirmou o delegado da
Polícia Federal Armando Coelho Neto, que se aposentou faz apenas dois anos e
foi presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, a PF na era FHC
estava desaparelhada e carecia de autonomia tendo havido, inclusive, um
empréstimo francês para seu aparelhamento que, embora recebido e o governo já
estivesse pagando juros, não foi utilizado por falta de planejamento. Em
contrapartida, a gestão Dilma tomou treze medidas que aparelharam a Polícia
Federal e lhe deram autonomia, assegurando-lhe condições de atuar fortemente na
investigação dos atos ilícitos, em especial no caso da corrupção. Mas ele
constata que, na verdade, não se está lutando contra a corrupção. Se isso
estivesse ocorrendo outras operações estariam em curso. A Operação Zelotes, por
exemplo, está abafada porque nela estão envolvidos grandes personagens da
política, grandes empresas e bancos, grupos de comunicação, à testa a Rede
Globo, num grande escândalo intermediado pelo Banco HSBC que, por conta disso,
acabou se retirando do país. Na própria Operação Lava-Jato as delações
trouxeram à baila nomes do PSDB e de outros partidos que, no entanto, são
blindados. A Conclusão do ex-presidente da Associação dos Delegados da Polícia
Federal é que o que está em curso não é uma luta contra a corrupção, mas uma
guerra contra o governo e o PT. Bresser-Pereira, por sua vez, que foi um dos
mais importantes ministros do governo FHC, tem evidenciado o ódio dos
endinheirados contra o PT e, num dos últimos vídeos ele afirma que nos governos
de Lula e Dilma os pobres ficaram menos pobres e os ricos mais ricos, sendo que
a classe média foi a menos beneficiada. Daí, o cultivo do ódio da classe média
contra o PT, ódio incentivado com a insistência da mídia que diariamente,
repetindo à exaustão, se dedica a esmiuçar denúncias não comprovadas contra
Dilma, Lula e o PT. E isso é muito perigoso porque está em curso uma onda
fascista que se manifestou explicitamente com saudações nazifascistas e incitação
ao armamento da população, como o fez o deputado Jair Bolsonaro. Este, segundo
consta, teria sido avisado previamente da condução coercitiva do Lula que,
segundo o plano seria levado preso de Congonhas para Curitiba num jatinho que
já estava pronto para decolar, quando a operação foi abortada pelo destacamento
da aeronáutica que faz a segurança do aeroporto de Congonhas. Mas Bolsonaro já
teria se dirigido a Curitiba para lá incitar a população a se manifestar em
apoio à prisão de Lula assim que ele chegasse à carceragem. É um quadro muito
preocupante que nos faz lembrar da Alemanha das décadas de 1920 e 1930 com a
ascensão de Hitler, apoiado pelo fanatismo que se apossou da população. Naquela
situação também a Justiça se revelou draconiana com as ações da esquerda e
complacente com a truculência da direita. Agora, no Brasil, está em curso
iniciativas que, como observou o jurista Fábio Conder Comparato, deixa o Estado
de Direito em frangalhos, com violações de normas constitucionais.
A
situação é muito grave e, ao que parece, o golpe irá se consumar porque todas
as instituições da República (Judiciário, Ministério Público, a própria OAB,
Parlamento, Partidos políticos, toda a grande mídia televisiva, escrita e
falada) encontram-se conspurcadas e obcecadas com o único objetivo de destruir
o PT e impedir Lula de voltar a se candidatar. E, para isso, não têm pejo em
violar as normas jurídicas relativas aos direitos mais elementares, inclusive
dispositivos constitucionais. A hipocrisia é tanta que jornalistas,
representantes do Judiciário e parlamentares repetem à exaustão que Lula não
pode ser ministro porque é investigado, ao mesmo tempo em que se posicionam a
favor do impeachment que vem sendo conduzido e manipulado por um parlamentar que
não apenas é investigado, mas é réu e se mantém como Presidente da Câmara dos
Deputados sendo, nessa condição, o segundo na sucessão da Presidência da
República. Então, a pergunta que não quer calar é: por que Eduardo Cunha, que é
réu em processo que corre no Supremo Tribunal Federal, pode continuar como
deputado e, mesmo, como Presidente da Câmara obstruindo a Comissão de Ética e
articulando todos os passos do processo de impeachment; e Lula, que apenas está
sendo investigado, não pode assumir a Casa Civil? Diga-se de passagem que esse
impedimento é também violação da Constituição a qual determina que a nomeação
de ministros no âmbito do Poder Executivo é prerrogativa exclusiva da
Presidência da República.
Sim, o
que está em curso é um golpe. Claro que o impeachment está previsto na
Constituição não podendo, pois, por si mesmo, ser caracterizado como golpe. Mas
quando esse mecanismo é acionado como pretexto para derrubar um governo
democraticamente eleito sem que seja preenchida a condição que a Constituição
prescreve para que se acione esse mecanismo, ou seja, a ocorrência de crime de
responsabilidade, então não cabe tergiversar. O nome apropriado nesse caso não
é outro. É, mesmo, Golpe de Estado, pois a Constituição não estará sendo
respeitada, mas violada. E até agora, nenhuma das alegações apresentadas para
justificar o impeachment caracteriza crime de responsabilidade. Aliás, Dilma
sequer está sendo investigada ao passo que a Comissão do impeachment tem mais
da metade de seus membros em investigação e, no conjunto da Câmara, 302
deputados encontram-se na mesma situação. A farsa está, pois, escancarada: um
bando de corruptos julgando e condenando uma presidenta que não cometeu crime
algum. E, como a oposição ensandecida deverá, engrossada pelo PMDB, conseguir
maioria para aprovar o golpe, restará ao Supremo, cumprindo seu papel de
guardião da Constituição, evitar esse desfecho. Se isso não acontecer, a farsa
se transformará em tragédia. E o Estado Democrático de Direito deixará de
existir no Brasil, vitimado por um Golpe de Estado
jurídico-midiático-parlamentar. É, pois, de suma importância uma grande
mobilização das forças democráticas, independentemente de partidos e da
avaliação positiva ou negativa do governo Dilma, para evitar essa tragédia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário