Faz
escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar (...)
porque a manhã vai chegar (...)
Quem
sofre fica acordado
defendendo o coração.
defendendo o coração.
(Thiago
de Mello)
Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim.
(Chico
Buarque)
Sou
Maria Garcia Meirelles, amazonense de Parintins, mãe de Thomaz Antônio da Silva
Meirelles Neto, ex-secretário geral da União Brasileira de Estudantes
Secundaristas (UBES), preso, torturado e assassinado na prisão. Escrevo-lhe
porque o senhor [deputado Jair Bolsonaro] matou meu filho outra vez no domingo
passado [17/04], em sessão da Câmara de Deputados, ao fazer uma apologia do
crime exaltando seu colega de armas, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
torturador e assassino reconhecido, responsável por 60 mortes e por mais de 500
casos de torturas cometidos no Doi-Codi entre 1970-1974.
Neste
período, capitão Bolsonaro, Thomazinho combatia o golpe militar que rasgou a
Constituição, derrubou o presidente eleito pelo voto popular, instituiu a
censura e suprimiu as liberdades democráticas. Por isso, em 1970, foi preso e
torturado no Doi-Codi. Condenado, cumpriu pena. Libertado dois anos depois,
teve que se esconder. Foi aí que viajei ao Rio para encontrá-lo, na
clandestinidade, levando um pouco do sabor de sua infância – uma paçoquinha que
eu mesma fiz no pilão e que ele gostava tanto.
Nosso
encontro foi numa noite de fevereiro de 1973 em Copacabana. Senti dor
imensurável ao ver o fruto das minhas entranhas machucado, lanhado, com marcas
de tortura e cicatrizes no corpo. Era um pedaço de mim que estava ferido.
Provou a paçoquinha e deitou a cabeça no meu regaço, sempre calado, discreto e
triste. Eu lhe fiz muito carinho, sem saber que era uma despedida. Essa foi a
última vez que o vi.
A
guerra suja
Meu
filho voltou a ser preso em 7 de maio de 1974, quando viajava do Rio a São
Paulo, conforme documentos do DOPS/SP e relatório do Ministério da Marinha
assinado pelo ministro Ivan Serpa. Cinco anos depois, o nome de Thomazinho
constava numa lista publicada pelo Correio da Manhã
(03/08/79) com 14 presos mortos pelos serviços secretos das Forças Armadas, mas
somente em 1995 ele foi considerado oficialmente desaparecido. O corpo até hoje
não foi localizado.
Durante
anos, não assumi o luto por meu filho, sempre com a esperança de reencontrar a
quem me fez mãe. É que quando ele nasceu, eu também nasci como mãe. Admitir sua
morte era, além de amputar uma parte de mim, matar minha maternidade. Meu filho
era muito inteligente, doce, educado, generoso. Um príncipe. Todos gostavam
dele. Eu não o esqueci nem um minuto, não podia imaginar um amanhã sem ele.
Nunca soube de seu paradeiro. Levou tempo para ter a certeza de seu
assassinato.
A
notícia foi confirmada quatro décadas depois pelo seu colega, capitão
Bolsonaro, o ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, atirador de elite, que
escreveu o livro “Memória de uma Guerra Suja” para exorcizar os demônios que o
atormentavam. Em entrevista a Alberto Dines, em junho de 2012, no Observatório
da Imprensa, ele contou histórias de assassinatos e torturas durante a ditadura
militar:
“Hoje
mais uma história triste para esclarecer é [do] desaparecido político Thomaz
Antônio da Silva Meirelles. É… recebi um chamado do coronel Perdigão e fui ao
quartel da Barão de Mesquita (…) Ali o coronel Perdigão me entregou um corpo
num saco preto, né, (…), quando chegou em Campos abri o saco, vi que se tratava
de um homem aparentando ter mais ou menos 40 anos. E muito machucado, ele
estava apenas vestido com um calção, não tinha as unhas das mãos, estavam
arrancadas, o rosto bem desfigurado pelas torturas, com sinais de
queimaduras…”.
Viva
a morte!
A
brutalidade da cena agride a humanidade. Quanta dor! Não desejo esse sofrimento
para ninguém, capitão Bolsonaro, nem para dona Olinda (a sua mãe), nem para
Michelle (sua esposa), nem para qualquer um de seus filhos – Eduardo, Flávio,
Carlos, Renan e Laura. Ninguém merece isso, nem mesmo um execrável torturador.
No meio da barbárie, luto para preservar minha humanidade. Vocês tiraram duas
vidas: a minha e a do meu filho.
Aconselhada
a pedir indenização, não o fiz. O que queria era a verdade, nada mais, saber o
paradeiro do meu filho em cujo túmulo em lugar desconhecido não pude colocar
uma flor ou acender uma vela.
Bolsonaro
Hitler
O
assassinato de Thomazinho como de tantos outros foi uma extrema covardia. Ele
estava preso, desarmado, legalmente sob proteção do Estado. Os assassinos, com
salários pagos pelo contribuinte, envergonham o Exército nacional por
praticarem um crime abjeto contra a humanidade, conforme definido pelo Direito
Internacional. Como pode um ser humano se degradar tanto a ponto de torturar ou
de apoiar a tortura?
O
senhor defendeu a tortura cometida por um coronel armado contra Dilma Rousseff,
uma mulher indefesa.
A
sua declaração de voto, capitão Bolsonaro, revela covardia, que não me
surpreende, pois o senhor é um notório agressor profissional de mulheres.
Ofendeu Maria do Rosário quando ela defendeu a Comissão da Verdade, insultou
Benedita da Silva, ameaçou a advogada indígena Joênia Wapichana, a cantora
Preta Gil, a ministra Eleonora Menucucci, a senadora Marinor Brito e até Marta
Suplicy quando ela defendia projeto de lei que criminaliza a homofobia. Tudo
isso escancaradamente, publicamente.
Racista,
homofóbico e fascista, a sua declaração em favor da tortura ecoou como o grito
necrófilo e insensato de “Viva la Muerte” do general espanhol José
Millán-Astray, em 12 de outubro de 1936, criticado por Miguel de Unamuno,
reitor da Universidade de Salamanca, para quem só um mutilado mental carcomido
pelo ódio é capaz de gritar “morra a vida”.
Capitão
Bolsonaro, no Congresso do Cunha comandado por um réu no STF, o senhor votou e
declarou que votava “sim” porque era a favor da tortura.
Mais
claro não canta um galo. Sua declaração de voto a favor da tortura me deu a
certeza de que aquilo que está acontecendo no Brasil é mesmo um golpe. O Fora
Dilma equivale a um Fora Thomazinho e Fora todos aqueles que combateram o outro
golpe, o de 1964.
Tenho
pena do senhor pela besta-fera em que se transformou. Morro de vergonha de
vê-lo representando parcela do povo brasileiro no Congresso Nacional.
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PS – Texto do Professor José
Ribamar Bessa Freire (Professor da Pós-graduação em Memória Social da UNI-RIO),
a partir da entrevista de Maria Garcia Meirelles (já falecida) concedida a
Jocilene Chagas, em 1995.
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