sábado, 5 de novembro de 2011

Sexualidade e sociedade

A ciência social brasileira tem progredido significativamente na abordagem de temas que, num passado recente, estiveram à margem de sua apreciação. Neste sentido, a tradução do livro de Michel Bozon é um aporte relevante ao enfoque sociológico sobre sexualidade. Reproduzo uma resenha do mesmo.
Resenha: Sociologia da sexualidade, de Michel Bozon (In Revista Brasileira de Educação, nº 29). 

Capa

Por Leandro Castro Oltramari - Professor da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Michel Bozon é tido como um dos maiores pesquisadores sobre sexualidade dentro do campo das ciências sociais. Como sociólogo, realizou enquetes de grande escala sobre o comportamento sexual na França e mantém uma relação bastante próxima de pesquisadores no Brasil, como Maria Luiza Heilborn, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Esta obra recentemente traduzida traz como questão central a problemática da inexistência de uma sociologia da sexualidade. Esse problema já foi discutido por outros autores, como Carole Vance (1995), em texto já publicado no Brasil. Bozon promove, ainda, uma discussão sobre ma démarche sociológica do fenômeno da sexualidade. A perspectiva desse autor é de uma construção social da sexualidade, que é uma das vertentes de explicação que Vance aborda em seu texto. Para Bozon, o ser humano não se relaciona sexualmente sem dar sentido aos seus atos, e estes são construídos culturalmente. Com isso, expõe o caráter de mutabilidade cultural, histórica e social da sexualidade. Segundo o autor, a sociologia da sexualidade deve ser uma forma de compreensão das representações da sexualidade.

A obra ora analisada é dividida em três partes, que necessariamente não são complementares, mas que apresentam importantes pontos de interesse para a sociologia e outras áreas do conhecimento. Pelo fato de existir uma certa autonomia entre as suas três partes, o livro demonstra ser mais um apanhado sobre aspectos importantes da sexualidade do que uma obra que realmente avança na teoria sobre o assunto.

Na primeira parte do livro, que se intitula "Transformações da sexualidade e emergência da subjetividade moderna", Bozon aborda as transformações ocorridas na sexualidade através da história. Afirma que o surgimento, no século XIX, da ciência que passou a estudar a sexualidade mudou o rumo das relações com o corpo e o prazer. Nesse ponto o autor cita Foucault e as contribuições trazidas por ele na História da sexualidade (1999), principalmente o volume I, "A vontade de saber". Bozon levanta, nessa parte de sua obra, uma das suas teses sobre a sexualidade no mundo ocidental, que é a da individualização. Dialoga com Bourdieu, citando seus estudos antropológicos sobre o lugar do homem dentro da relação sexual, assim como importantes pesquisadoras antropólogas francesas, citando principalmente Françoise Heritier e sua tese sobre a classificação dualista que justifica as diferenças entre homens e mulheres.

As discussões voltam-se principalmente para o lugar que homens e mulheres ocupam dentro das relações sexuais através dos séculos e como isso irá se configurar como um "contrato entre os gêneros" dentro do casamento monogâmico cristão. É uma revisão interessante, mas, como já foi assinalado, trata de temas que foram abordados em outras obras editadas no Brasil, como as de autoria de Foucault (1999) e Vainfas (1986).

No segundo capítulo, o autor segue a descrição da longa caminhada de homens e mulheres até a configuração do amor conjugal. Talvez uma das principais contribuições dessa parte da obra seja descrever a dicotomia que passou a ocorrer, no Ocidente, entre amor-sentimento e amor-sexo. Essa temática e sua contribuição para as pesquisas em AIDS foram bem descritas por Apostolidis (1993), que demonstrou que a prevenção da AIDS está atrelada às pessoas que estão envolvidas em relacionamentos sexuais não possuidores de afeto, diferentes daqueles que, quando estão em uma relação amorosa, desconsideram o risco de transmissão do HIV em suas relações sexuais. Como pode-se perceber, uma discussão bastante importante para o campo da saúde coletiva.

Nesse capítulo, Bozon afirma que as pessoas possuem um repertório de significações da interação sexual que faz com que se comportem de uma determinada forma ou não. Para isso, discorre sobre as mudanças de comportamento e relacionamentos sexuais ocorridos com o passar da idade. Problematiza também o quanto as diferenças sexuais podem estar atreladas a situações de envelhecimento ou juventude das pessoas. O autor revela que o envelhecimento relaciona-se com as etapas ou estágios dentro do relacionamento conjugal, defendendo, dessa forma, a existência de processos pelos quais todas as pessoas que estabelecem relações de conjugalidade passam. Ele defende que esses passos acontecem com as pessoas independentemente da idade e da quantidade de relacionamentos conjugais que estabelecem em sua vida. Essas fases são iniciadas com uma vida sexual intensa, até culminar com o nascimento dos filhos, o que faz a atividade sexual diminuir de proporção.

Sobre a nova formulação das relações entre homens e mulheres dentro da sexualidade contemporânea, Bozon segue a linha iniciada por Giddens (1993) na obra A transformação da intimidade, que anuncia as modificações ocorridas na sexualidade de homens e mulheres na sociedade moderna. Nesse estudo, o autor enfatiza o importante papel dos movimentos feministas, coisa que Giddens não faz, ressaltando o quanto esse movimento foi importante para as transformações dos comportamentos tanto de heterossexuais quanto de homossexuais. No livro de Giddens, as transformações sociais parecem ter ocorrido sem um ator social específico, ou, pior, determinada mais pelos homens do que pelas próprias mulheres.

Bozon, ao final dessa parte, indica quanto os comportamentos sexuais são influenciados pelos cenários culturais que organizam as práticas relacionadas à sexualidade. Cita, por exemplo, o caso da prostituição no Ceará, ressaltando como é complexo o fenômeno da prostituição nesse estado, assim como em outros, não devendo ser visto apenas como uma relação comercial. Há vários desdobramentos que ocorrem posteriormente à relação comercial, que pode, muitas vezes, se transformar até mesmo em casamento. Por exemplo, as mulheres que se prostituem valorizam os estrangeiros como caracteristicamente melhores que seus compatriotas do sexo oposto. Elas procuram os estrangeiros valorizando seus atributos positivos e considerando os brasileiros violentos e machistas. Há, muitas vezes, uma supervalorização dos clientes estrangeiros, e não é incomum relacionamento afetivo não-comercial entre cliente e profissional.

A última parte da obra talvez seja a mais interessante, pois aborda a forma como se constituem o desejo e o prazer, por meio da teoria dos sexuals scripts com a qual o autor vem trabalhando. Bozon descreve o quanto a sexualidade se faz através de procedimentos rituais e de representações que indicam o que as pessoas fazem, fizeram ou irão fazer, assim dando sentido às suas ações. Nesse ponto, é notória a contribuição teórica de Gagnon e Simon, na obra Sexual conducts: the social sources of human sexuality, publicada em 1973 e ainda não traduzida para o português.

Bozon fornece uma boa compreensão da discussão sobre os sexuals scripts, relacionando a importância dos aspectos das seqüências de eventos na vida do sujeito, e de uma interiorização de modos de funcionamento de instituições que influenciam os relacionamentos sexuais das pessoas. Essa teoria relaciona, dentro de uma perspectiva dinâmica, o cenário cultural onde se encontram, histórica e culturalmente, os valores sexuais dos sujeitos.

A teoria dos sexuals scripts divide-se em três níveis: o primeiro, dos cenários culturais, que trata dos aspectos simbólicos produzidos pela cultura; o segundo, chamado de interpsíquico, aborda, de uma forma bem prática, como ocorrem os relacionamentos das pessoas dentro de uma determinada situação específica; e o nível intrapsíquico que remete aos elementos simbólicos que se organizam em esquemas cognitivos estruturados, que terão a forma de seqüência de narrativas, de planos e de fantasmas1 sexuais. Os níveis coordenam a vida mental e o comportamento sexual, e operam no reconhecimento das situações sexuais e dos estados de excitação corporal. A importância dos sexuals scripts é a possibilidade que ela oferece para que se possa entender como uma ação ocorre dentro de um conjunto de possibilidades sociais.

O autor defende que a conduta sexual não está associada a uma preocupação sanitária preventiva, mas a uma preocupação que é individualizada e privada em cada pessoa. Assim, a sua obra apresenta uma boa leitura sobre a sexualidade, principalmente sobre ossexuals scripts, mas ao mesmo tempo é uma recapitulação de outros autores que ressaltam como a categoria gênero tem se constituído fundamental para repensar a discussão sobre constituição da sexualidade para as pessoas e grupos.

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1 Bozon relata a idéia de fantasma para ressaltar situações recorrentes que nos provocam reações emocionadas no passado, presente ou futuro.

Referências bibliográficas
APOSTOLIDIS, Themis, (1993). Pratiques "sexualles" versus pratiques "amoreuses" fragments sur la division socio-culturelle du comportament sexuel. Sociétés: Revue des sciences humaines et sociales, Paris, Mas Son, nº 39, p.39-46.
FOUCAULT, Michel, (1999). História da sexualidade: a vontade de saber. 13ª ed. Rio de Janeiro: Graal. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque.
GAGNON, John, SIMON, Wiliam, (1973). Sexual conduct: the social sources of human sexuality. Chicago: Aldine.
GIDDENS, Anthony, (1993). A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades. 2ª ed. São Paulo: UNESP.
VAINFAS, Ronaldo, (1986). Sexo, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática.
VANCE, Carole, (1995). A antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico.Physis: Revista de Saúde Pública, Rio de Janeiro, UERJ, v. 5, nº 1, p. 7-31.

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