quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O romantismo na contramão da modernidade

Publicado nos anos 1990 em França, o "Revolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant de la modernité", de Michael Löwy e Robert Sayre, ganhou tradução literal na edição brasileira - "Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade". A resenha que José Correia Leite elaborou do livro permite uma pertinente apreensão da sua perspectiva. Reproduzo-a abaixo.

 

Por José Correia Leite


Revolta e melancolia, de Michael Löwy e Robert Sayre, coroa um ambicioso esforço teórico, perseguido pelos autores há quase duas décadas: sistematizar a análise da visão social de mundo romântica. Numa erudita viagem por dois séculos de cultura ocidental, os autores constroem um novo conceito de romantismo. Este deixa de ser, conforme aprendemos na escola, uma corrente da cultura do século XIX e passa a ser entendido como uma estrutura mental coletiva co-extensiva à própria modernidade - o romantismo surge com a revolução industrial e perdura até hoje. A visão de mundo romântica é "por essência anticapitalista" (p. 30), é a "autocrítica da modernidade", o reconhecimento da perda que ela representou. O romantismo se manifesta em todas as esferas da sociedade e os autores destacam não apenas suas expressões artísticas, mas principalmente teóricas, filosóficas e políticas. Esta reconceituação oferece uma bússola importante para nos situarmos no universo cultural e teórico dos últimos 150 anos.

O romantismo sempre rejeita o mundo moderno como inautêntico, um retrocesso face a valores e ideais do passado, um passado real ou imaginário - a Idade Média idealizada dos cavaleiros, a Grécia clássica, o comunismo primitivo ou uma Idade do Ouro qualquer.

Os românticos investem contra aspectos centrais da civilização burguesa: o desencantamento do mundo, apontado no Manifesto Comunista e destacado por Weber; a sua quantificação, a perda dos antigos valores qualitativos o desenvolvimento do etos capitalista; a mecanização do mundo, a ruptura dos vínculos orgânicos que ligavam os seres humanos entre si nas comunidades pré-capitalistas e estas à natureza; a abstração racionalista, que ignora o concreto e tudo que não pode ser racionalizável; a dissolução dos vínculos sociais, o isolamento das pessoas por um individualismo cada vez mais desenfreado.

Estes valores permeiam posições que compreendem todo o espectro político. Löwy e Sayre desenvolvem uma tipologia indicativa das formas mais características de romantismo: os romantismos restitucionista, conservador, fascista, resignado, reformador e revolucionário e/ou utópico. Mesmo o romantismo revolucionário, que mais interessa aos autores, compreende diferentes tendências (jacobino-democrática, populista, socialista utópico-humanista, libertária, marxista).

A crítica romântica da modernidade capitalista surge na Inglaterra, na França e na Alemanha com a filosofia das luzes e desenvolve com ela uma relação complexa, usualmente (ainda que nem sempre) de oposição; um dos principais expoentes do início do romantismo foi Rousseau. Como afirmam os autores, "o romantismo também se apresenta como uma radicalização, uma transformação/ continuação da crítica social do iluminismo" (p. 89). A oposição entre eles se acentua no curso do século XIX na medida em que a civilização industrial se impõe, mas a referência a um passado pré-capitalista ainda é muito forte. No século XX, tivemos a globalização do fenômeno romântico e, em alguns casos, o seu reavivar como reação à "dialética do iluminismo" e às catástrofes da modernidade, apesar dele ter que enfrentar uma forte concorrência das formas de pensamento fascinadas pela vida moderna.

Marx se insere na trilha do iluminismo, mas o romantismo constitui "uma das fontes esquecidas" do seu pensamento (p. 135) - embora ele nunca tenha compartilhado com os românticos típicos a aspiração à volta ao passado. Suas idéias "não eram nem românticas nem modernizadoras, mas uma tentativa de Aufhebung dialético das duas, em uma visão de mundo nova, crítica e revolucionária, nem apologética da civilização burguesa, nem cega às suas realizações" (p. 148).

A constituição posterior de um "marxismo radicalmente anti-romântico, modernizador, evolucionista e incondicionalmente admirador do progresso capitalista-industrial" (p. 141) vai arrefecer a sua capacidade crítica. Face a essa corrente fria do marxismo, uma corrente quente vai ser permanentemente alimentada pelo impulso do romantismo revolucionário e/ou utópico - retomado, entre outros, por Rosa Luxemburg, Georg Lukács, William Morris, Ernst Bloch, Walter Benjamin, Marcuse, Henri Lefebvre, E. P. Thompson e Raymond Williams. A rejeição romântica da modernidade, que sustenta esta corrente quente, está presente também nos movimentos culturais de vanguarda (como o simbolismo, o expressionismo e o surrealismo) e em alguns novos movimentos sociais e religiosos: a ecologia, o pacifismo, a teologia da libertação etc.

No fundo está em jogo para os autores o futuro do marxismo e do pensamento socialista, que para eles reside na sua capacidade de dialogarem e incorporarem aspectos decisivos da crítica romântica da modernidade capitalista.

Eles apontam os pontos cegos do romantismo, como sua idealização do passado, seu repúdio em bloco da modernidade ou suas perigosas afinidades (parciais) com o modernismo reacionário que está na base do fascismo. Mas sustentam que face ao impasse da modernidade capitalista e ao colapso do socialismo realmente existente (que pretendia radicalizar a modernidade, desconhecendo o caráter de civilização global do capitalismo, e que terminou reproduzindo suas taras mais elementares), o romantismo tem revelado "força crítica e lucidez diante da cegueira das ideologias do progresso" - os românticos "foram os únicos a perceber os perigos inerentes à lógica da modernidade" (pgs. 321/2).

Entre "tradição e modernidade, retorno ao passado e aceitação do presente, reação obscurantista e progresso devastador, coletivismo autoritário e individualismo possessivo, irracionalismo e racionalidade burocrática" (p. 323), a saída é "a superação dialética dessas oposições em direção de uma nova cultura, uma nova unidade com a natureza, uma nova comunidade. Essas formas novas distinguem-se radicalmente das manifestações pré-capitalistas por integrarem determinados momentos essenciais da modernidade" (p. 324). Para Löwy e Sayre, "sem utopias deste tipo, o imaginário social seria limitado ao horizonte estreito do realmente existente e a vida humana a uma reprodução alargada do mesmo". E como "sem nostalgia do passado, não pode existir sonho autêntico de futuro... a utopia será romântica ou não será" (p. 326).

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