quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O que "é o certo": o ser humano na posse de si

Escrevi o texto abaixo para a revista lusitana A Página da Educação. Veio a lume na Primavera (europeia) de 2010. 
Sartre pelas ruas de Paris distribuindo La Cause du Peuple: A existência precede a essência 


CREPÚSCULO DA EXISTÊNCIA: OPÇÕES NAS FRONTEIRAS DA ACÇÃO

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. (...) Tento, há tantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranqüiliza. Tento descobrir a face última das coisas.
(Vergílio Ferreira, in Aparição)

IVONALDO LEITE
Por que se deve fazer o que é certo? E, o que é o certo? Ao realçar estas indagações, Kant lançou-se na busca por um fundamento racional para as questões ético-morais. A formulação que ele apresenta como resposta não é nada desprezível: uma regra de conduta moral certa é aquela que, sendo adotada universalmente por todos, torna o mundo mais feliz.

Por outro lado, as religiões se encarregaram de criar preceitos morais de tal forma que a pergunta “por que se deve fazer o que é certo?” não precisava de resposta lustrada pela razão. Aliás, nem mesmo haveria sentido em fazê-la. Uma única resposta podia ser dada: para agradar ou pelo menos não desagradar os deuses. Afinal, desrespeitar preceitos religiosos significa, conforme essa compreensão, provocar a reacção divina - por via dos mais variados tipos de castigos - e a condenação na suposta vida do pós-morte.

Embora não seja de se desconsiderar a formulação kantiana, há que se reter, entretanto, por outra parte, que o ad infinitum da metafísica não permite apreender que os conceitos variam no tempo e no espaço. Como bem realçou Leôncio Basbaum, a “questão do certo” relaciona-se à temática do humanismo, que deve, no entanto, ser adjetivado como concreto. Isto é, diferente do humanismo transcendente e vulgarmente compassivo, o humanismo concreto concebe o ser humano situado em contextos vivos, em situações concretas, nas quais ele vive, convive e intervém como ente em busca de superação. O humanismo concreto não se caracteriza apenas pelo reconhecimento do ser humano abstrato, genérico, mas é marcado pelo reconhecimento do ser total, dentro de uma determinada situação – historicamente variável – perante a qual ele se deve autonomizar.

Se as épocas e as situações são historicamente variáveis, a dimensão ético-moral – como esfera da indagação valorativa e de juízos normativos dessa valoração - deve ser concebida tendo ofactor contextual como um dos seus pressupostos de conceptualização. Dentre outros aspectos, a moral configura-se como uma forma de autodefesa das sociedades, em sua luta contra os instintos do ser individual e as ações colectivas de mudança – sociologicamente, poder-se-á dizer, a moral consubstancia-se em factos sociais, cuja transgressão requer um preço a ser pago.

A “questão do certo”, transcendendo o formalismo abstracto da metafísica, só ganha sentido se a sua inteligibilidade estiver conectada à efetivação do humanismo concreto - mesmo que, vá lá, admitamos, o humanismo concreto signifique o delineamento de um imperativo categórico, à maneira kantiana. Mas, dois de seus postulados superam o universo da mera abstracção, quais sejam: o redescobrimento e a valorização antecedente do ser humano; e a sua autonomização e totalização.

Ou seja, o humanismo concreto assume como condição básica a necessidade de integrar o ser humano na posse de si mesmo e devolver-lhe a capacidade autónoma de escolha. Compreende que o ser humano, como ser social, é antes de tudo um complexo de relacções, que não existe em si e por si, mas é o resultado de um processo histórico onde estão presentes relacções de poder, desigualdades, interesses em jogo, etc. Do ponto de vista analítico, parece, portanto, insuficiente chancelar proclamações ahistóricas como norma de conduta humana, do tipo “amai-vos uns aos outros”. Mais do que isto, importa ter presente imperativos de hominidade, das condições que produzem o ser humano e que o colocam em relacção no contexto em que ele está situado.

Os seres humanos não nascem bons nem maus. Esses são conceitos que adquiriram significação no decurso da história, e que foram internalizados pela consciência social a partir da vivência das pessoas em seu habitat. As ideias que as pessoas têm de si resultam da sua cultura. Variam de acordo com o patamar civilizacional, aqui e acolá, segundo as especificidades do meio natural e social, bem como de acordo com as convicções correntes nos grupos em que as pessoas estão integradas e conforme as crenças que lhes foram inculcadas espiritualmente.

A efetivação do humanismo concreto é um incessante devir. Uma totalização dialética. Algo que não é estranho às afinidades eletivas de Goethe. Incursão moral e psicológica no jogo da atratividade e repulsa. Alegoria química pela qual os elementos se separam para se unirem. Crepúsculo da existência, opções nas fronteiras da ação. Síntese de impossibilidades. A “questão do certo” potencializa-se pela práxis do humanismo concreto. Sem recusar enfrentar a face inusitada da vida e a grande insônia do mundo.

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