terça-feira, 1 de novembro de 2011

O guru improvável da política surrealista

Como bem nos diz o sociólogo britânico Anthony Giddens, no final dos anos 1960, Marcuse era referido como "o guru improvável da política surrealista". Por quê? Ora, porque, já contando 70 anos, diferente de outros integrantes da Escola de Frankfurt, Marcuse tinha trabalhado em relativa obscuridade. O seu livro One-Dimensional Man, contudo, viria a mostrar outra história. No texto abaixo, escrito sob o grafo do português luso, passo em revista a abordagem de Marcuse sobre as tecnologias.  


Herbert Marcuse
Herbert Marcuse: atualidade 

 Para Além da Unidimensionalidade: Marcuse e a Tecnologia

Há no seio da ciência social um denso debate sobre o que representam as tecnologias. De forma pioneira e clássica, deve-se reconhecer a Max Weber a abordagem do assunto, pois foi ele quem introduziu o conceito de racionalidade para definir a maneira da actividade económica capitalista, o tráfico social regido pelo direito burguês e a dominação burocrática. 

Quer dizer, a racionalização significa a ampliação das esferas sociais, sendo estas submetidas aos critérios de decisão racional, ao que corresponde a industrialização do trabalho social, tendo como consequência a penetração dos critérios de acção instrumental noutras esferas da vida, a exemplo da urbanização das formas de existência, da tecnização do tráfico e da comunicação. Contudo, isto não se atinge sem a institucionalização do progresso científico e técnico, o que leva estes a invadirem as esferas institucionais da sociedade, transformando instituições e fazendo desmoronar antigas legitimações. A secularização e o desencantamento das cosmovisões orientadoras da acção, da tradição cultural em sua totalidade, é o reverso de uma racionalidade ascendente da acção social. 


A discussão sobre tecnologia foi intensificada no âmbito da Escola de Frankfurt: A crítica daquela é uma característica dos escritos dos teóricos desta, sendo o seu alvo a dimensão instrumental. Adorno e Horkheimer afirmam que a instrumentalização da tecnologia é, ela própria, uma forma de dominação, que controlando objectos, viola a sua integridade, suprimindo-os, destruindo-os. Herbert Marcuse, no entanto, foi mais longe. 


Ele tomou como ponto de partida as análises weberianas para demonstrar que o conceito formal de racionalidade que Weber extraiu da acção racional do empresário capitalista e do trabalhador industrial, da pessoa jurídica abstracta e do funcionário moderno, e que relacionou a critérios da ciência e da técnica, tem implicações determinadas com conteúdo próprio. A tese marcuseana é que, naquilo que Weber chamou de racionalização, não se implanta a racionalidade como tal, mas, em nome da racionalidade, uma forma determinada de dominação política oculta. Donde formula a sua crítica a Weber, frisando que o conceito de razão técnica é talvez também em si mesmo ideologia, na medida em que não só a sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante sobre a natureza e sobre o ser humano. Isto é, determinados fins e interesses da dominação não são outorgados à técnica apenas posteriormente e a partir de fora: eles estão já inseridos na própria construção do aparelho técnico, sendo a técnica, em cada caso, um projecto histórico-social, nele se projectando o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens, as mulheres e as coisas. 


A tecnologia, conforme as anotações marcuseanas, desempenha um papel central naquilo que foi chamado de sociedades capitalistas avançadas. Ela contribui para que a dominação tenda a perder o seu carácter explorador e opressor, tornando-se “racional”, sem que por isso se desvaneça a dominação política. Ou seja, a racionalidade da dominação mede-se pela manutenção de um sistema que pode permitir-se converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associado ao progresso técnico-científico, embora, por outro lado, o estado das forças produtivas represente precisamente também o potencial pelo qual, medidas as renúncias e as incomodidades impostas aos indivíduos, estas surgem cada vez mais como desnecessárias e irracionais. Paradoxalmente, porém, esta repressão desvanece-se na consciência da população, pois a legitimação da dominação assume um novo carácter. 


É neste quadro que se produz um ser humano unidimensional, e que actualmente, com o fetiche em torno das novas tecnologias – e não só -, é uma hipótese a merecer uma consideração acrescida. Como também uma consideração acrescida parecem merecer as indicações fornecidas por Marcuse para a superação do aludido quadro. Elas advogam uma mudança nas bases da ciência e da técnica. Para tanto, preliminarmente, destaca-se que a ciência e a técnica, em virtude do seu próprio método e conceitos, projectou e fomentou um universo no qual a dominação da natureza se vinculou a dominação dos seres humanos: a natureza, compreendida e dominada pela ciência, surge de novo no parelho de produção e de destruição, que mantém e melhora a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, os submete aos senhores do aparelho, com a hierarquia racional fundido-se com a social. 


Daí tem-se a necessidade de uma reconceptualização da ideia de progresso, pondo-se ênfase na mudança de sua direcção, como uma condição que, rompendo com a instrumentalização, influencie também a própria estrutura da ciência. Disto decorre que as suas hipóteses desenvolver-se-iam num contexto experimental essencialmente diverso – de um mundo libertado -, com a ciência chegando a conceitos sobre a natureza profundamente distintos e estabelecendo juízos também profundamente diferentes. 


Nos dias presentes, ao que Marcuse formulou – bem como outros frankfurtianos -, tem sido acrescentado outras elaborações semelhantes. O que só vem evidenciar que hoje, talvez mais do que em seu tempo, faz-se necessário conceber as tecnologias numa perspectiva que se situe para além da unidimensionalidade. 


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