Certa feita, em Londres, assisti uma conferência do filósofo István Mészáros, e confesso que tinha uma maior expectativa num realce ontológico do ser social, sobretudo tendo sido ele bastante próximo de Lukács e, possivelmente, sendo o principal representante contemporâneo do que foi chamado de a Escola de Budapeste. Ao ler o seu
Para Além do Capital, também confesso que me quedou uma certa impressão de 'demasiada amplitude' em algumas teses. Contudo, o livro é uma obra de envergadura e aporta uma reflexão extremamente fecunda para a abordagem do metabolismo social dos dias atuais. A resenha de Ricardo Antunes, que a seguir reproduzo, capta com pertinência o sentido geral do livro, e mostra que estamos diante de um pensamento da contracorrente.
Para além do capital e de sua lógica destrutiva
Por Ricardo Antunes
Enquanto escrevia sua última obra, a Ontologia do ser social, Lukács anunciou que gostaria de retomar o projeto de Marx e escrever O capital dos nossos dias. Esse projeto significaria investigar o mundo contemporâneo, a lógica que o preside, os elementos novos de sua processualidade, objetivando com isso fazer, no último quartel do século XX, uma atualização dos nexos categoriais presentes em O capital. Lukács chegou a indicar seus lineamentos gerais, mas nunca pôde iniciar essa empreitada. Foi outro filósofo marxista, o húngaro István Mészáros, grande colaborador de Lukács, que se se lançou a esse desafio monumental e certamente coletivo.
Radicado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, onde é Professor Emeritus, Mészáros já havia publicado obras de grande projeção intelectual, de que podemos destacar A teria marxista da alienação (1970), Filosofia, ideologia e ciências sociais (1986) e O poder da ideologia (1989), entre vários outros livros, publicados em vários países do mundo.
Para além do capital tornou-se, no entanto, o seu livro de maior envergadura e se configura como uma das mais agudas reflexões críticas sobre o capital em suas formas, engrenagens e mecanismos de funcionamento sociometabólico, condensando mais de duas décadas de intenso trabalho intelectual. Mészáros empreende uma demolidora crítica do capital e realiza uma das mais instigantes, provocativas e densas reflexões sobre a sociabilidade contemporânea e a lógica que a preside.
Como um dos eixos centrais de sua interpretação particular do fenômeno, Mészáros considera capital e capitalismo como fenômenos distintos. A identificação conceitual entre ambos fez com que todas as experiências revolucionárias vivenciadas no século passado, desde a Revolução Russa até as tentativas mais recentes de constituição societal socialista, se revelassem incapacitadas para superar o “sistema de sociometabolismo do capital”, isto é, o complexo caracterizado pela divisão hieráquica do trabalho, que subordina suas funções vitais ao capital. O capital antecede ao capitalismo e é a ele também posterior. O capitalismo, por sua vez, é uma das formas possíveis de realização do capital, uma de suas variantes históricas, como ocorre na fase caracterizada pela subsunção real do trabalho ao capital. Assim como existia capital antes da generalização do sistema produtor de mercadorias, do mesmo modo pode-se presenciar a continuidade do capital após o capitalismo, pela constituição daquilo que Mészáros denomina como “sistema de capital pós-capitalista”, que teve vigência na URSS e demais países do Leste Europeu, durante várias décadas do século XX. Estes países, embora tivessem uma configuração pós-capitalista, foram incapazes de romper com o sistema de sociometabolismo do capital.
O capital é, portanto, um sistema poderoso e abrangente, tendo seu núcleo constitutivo formado pelo tripé capital, trabalho e Estado, sendo que estas três dimensões fundamentais são materialmente constituídas e inter-relacionadas, sendo impossível supera-lo sem a eliminação do conjunto dos elementos que compreende esse sistema. Sendo um sistema que não tem limites para a sua expansão (ao contrário dos modos de organização societal anteriores, que buscavam em alguma medida o atendimento das necessidades sociais), o sistema de sociometabolismo do capital torná-se no limite incontrolável. Fracassaram, na busca de controlá-lo, tanto as inúmeras tentativas efetivadas pela social-democracia, quanto a alternativa de tipo soviético, uma vez que ambas acabaram seguindo o que Mészáros denomina de linha de menor resistência do capital.
Mészáros demonstra como essa lógica incontrolável torna o sistema do capital essencialmente destrutivo. Essa tendência, que se acentuou no capitalismo contemporâneo, leva o autor a desenvolver a tese, central em sua análise, da taxa de utilização decrescente do valor de uso das coisas. O capital não trata valor de uso e valor de troca como separados, mas de um modo que subordina radicalmente o primeiro ao último. O que significa que uma mercadoria pode variar de um extremo a outro, isto é, desde ter seu valor de uso realizado, num extremo da escala, até jamais ser usada, no outro extremo, sem por isso deixar de ter, para o capital, a sua utilidade expansionista e reprodutiva. E esta tendência decrescente do valor de uso das mercadorias, ao reduzir sua vida útil e desse modo agilizar o ciclo reprodutivo, tem se constituído num dos principais mecanismos pelo qual o capital vem atingindo seu incomensurável crescimento ao longo da história.
E quanto mais aumentam a competitividade e concorrência intercapitais, mais nefastas são suas conseqüências, das quais duas são particularmente graves: a destruição e/ou precarização, sem paralelos em toda a era moderna, da força humana que trabalha e a degradação crescente do meio ambiente, na relação metabólica entre homem, tecnologia e natureza, conduzida pela lógica societal subordinada aos parâmetros do capital e do sistema produtor de mercadorias.
Expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolável, o capital assume cada vez mais a forma de uma crise endêmica, crônica e permanente, com a irresolubilidade de sua crise estrutural fazendo emergir, na sua linha de tendência já visível, o espectro da destruição global da humanidade, sendo que a única forma de evitá-la é colocar em pauta a atualidade histórica da alternativa societal socialista. Os episódios ocorridos em 11 de setembro e seus desdobramentos são exemplares dessa tendência destrutiva.
Emerge aqui outro conjunto central de teses na obra de Mészáros, com forte significado político: a ruptura radical com o sistema de sociometabolismo do capital (e não somente com o capitalismo) é, por sua própria natureza, global e universal, sendo impossível sua efetivação no âmbito da tese do socialismo num só país. Além disso, como a lógica do capital estrutura seu sociometabolismo e seu sistema de controle no âmbito extraparlamentar, qualquer tentativa de superar este sistema que se restrinja à esfera institucional está impossibilitada de derrotá-lo. Só um vasto movimento de massas radical e extraparlamentar pode ser capaz de destruir o sistema de domínio social do capital. Conseqüentemente, o processo de auto-emancipação do trabalho não pode restringir-se ao âmbito da política. Isto porque o Estado moderno é entendido por Mészáros como uma estrutura política compreensiva de mando do capital, um pré-requisito para a conversão do capital num sistema dotado de viabilidade para a sua reprodução, expressando um momento constitutivo da própria materialidade do capital.
Solda-se, então, um nexo fundamental: o Estado moderno é inconcebível sem o capital, que é o seu real fundamento, e o capital, por sua vez, precisa do Estado como seu complemento necessário. A crítica à política e ao Estado desdobra-se em crítica aos sindicatos e aos partidos, colocando o grande desafio de forjar novas formas de atuação capazes de articular intimamente as lutas sociais, eliminando a separação entre ação econômica e ação político-parlamentar.
Pode-se discordar de muitas de suas teses, quer pelo seu caráter contundente, quer pela sua enorme amplitude, abrangência e mesmo ambição – que por certo gerarão muita controvérsia e polêmica. Mas esse livro, já publicado em diversos países, é, neste início de século, o desenho crítico e analítico mais ousado contra o capital e suas formas de controle social, num momento em que aparecem vários sintomas de retomada de um pensamento vigoroso e radical. A síntese de Mészáros, inspirada decisivamente em Marx, mas tributária também de Lukács e da radicalidade crítica de Rosa Luxemburgo, resulta num trabalho original, indispensável, que devassa o passado recente e o nosso presente, oferecendo um manancial de ferramentas para aqueles que estão olhando para o futuro. Para além do capital.
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Sobre o autor:
István Mészáros é um renomado filósofo húngaro que colaborou diretamente com Luckács junto à Universidade de Budapeste nos anos que antecederam à intervenção soviética na Hungria, em 1956. Posteriormente, radicou-se na Inglaterra, junto à Universidade de Sussex, onde aposentou-se recentemente. Sua produção é vasta e significativa, tendo vários livros publicados em diversas línguas e também em espanhol e em português: Aspectos de la historia y la consciencia de clase, UNAM, México, 1973; La teoria de la enajenación en Marx, Ediciones Era, México, 1978; Marx: A Teoria da Alienação, 1981; El pensamiento y la obra de Georg Lukács, Editorial Fontanamara, Barcelona, 1981; A necessidade do controle social, 1987; Produção destrutiva e estado capitalista, Cadernos Ensaio, São Paulo, 1989; A obra de Sartre: Busca da Liberdade, 1991; Filosofia, ideologia e ciência social, 1993; O poder da ideologia, 1996.