segunda-feira, 18 de abril de 2016

'M - O Vampiro de Dusseldof', a Câmara dos Deputados e o alçapão no fundo do poço

Repiso o que aqui já realcei. Clássico do expressionismo alemão, dirigido por Fritz Lang, ‘M – O Vampiro de Dusseldorf’ conta a história de um assassino de crianças que coloca uma cidade em pânico. A polícia pressiona por todos os lados, mas ele parece inapreensível. Tanta pressão policial, no entanto, acabou por atrapalhar a vida de todos os outros bandidos da cidade. Pelo que então eles decidem que o melhor a fazer é procurar o assassino e dar cabo dele. O resultado é lapidar: capturado, o assassino é julgado por um tribunal composto por bandidos travestidos de juízes. Há queixas de que ele quebrou a “ética do submundo”. Existe, contudo, algo mais perturbador no filme: não só criminosos e autoridades são duas faces da mesma moeda, mas as pessoas, os anônimos da rua, os que  se colocam como “palmatória do mundo”, tendem, em precipitação de pensamento, de chofre, a brandir suas “verdades” com arrogância, para, ato contínuo, destilarem ódio. Sombras que estorvam o pensamento. A crise na qual o Brasil se encontra envolvido e o "espetáculo" que foi a sessão de ontem (17/04) na Câmara dos Deputados bem lembram 'M - O Vampiro de Dusseldorf'. O texto aí abaixo, de Leonardo Sakamoto, é paradigmático a esse respeito. 


Foto de 'M - O Vampiro de Dusseldof' 


Por Leonardo Sakamoto
(Doutor em Ciência Política, Professor da PUC-SP e Pesquisador Visitante no Departamento de Política da New School, em Nova York)

Você pode ser a favor ou contra o impeachment de Dilma Rousseff. Mas se tem, pelo menos, dois neurônios funcionais irá concordar que grande parte da Câmara dos Deputados é composta de semoventes incapazes de demonstrar empatia, quiçá exercerem aquela que deveria ser a mais nobre das atividades, que é a política. Pelo contrário, consideram-se a si mesmos o centro do universo e seus interesses como os interesses do Estado. Se multiplicassem o seu bom senso pelo número de conchinhas do mar e elevasse o resultado ao número de estrelinhas do céu, eles ainda não veriam problema algum em agradecer ao seu poodle querido no microfone de votação.
Pois o que leva um mamífero, cuja imagem está sendo transmitida para o Brasil e o mundo (o deputado, não o poodle), em um dos momentos mais importantes de sua vida política, achar que está no Show da Xuxa e mandar um beijo para a família? Citar o nome de esposa, dos filhos, do gato pelado, para justificar uma posição que vai ditar os destinos da nação pelas próximas décadas? Teve gente que fez até versinho. VERSINHO! Sem contar, as declarações de afeto: “Leliane, meu amor, Lorenzo, nosso filho, esse voto…'' Eu, que não creio, clamava a Deus que me sacrificasse. Mas, como podem ver, ele não me ouviu.
E sabe por que não ouviu? Porque Deus estava chapado! Depois de ver, com os próprios olhos, dezenas de votos serem pronunciados em seu nome por pessoas de reputação tão ilibada, tomou uma caixa de Frontal e apagou. Dizem os querubins que ele pediu para ser acordado apenas quando o governo Temer acabar – se é que vai acabar. Ou seja, estamos por nossa conta – e depois me perguntam porque sou ateu. Nem o capeta dá para acionar neste momento porque já disse que não se mete com Eduardo Cunha. Tem medo. Vai saber quantos deputados ele tem no bolso?
Toda vez que algum parlamentar ousava tecer críticas ao presidente da Câmara dos Deputados, réu em ação penal pela Lava Jato, sofria bullying de sua claque no plenário. Se o Brasil não fosse uma republiqueta, ele estaria desqualificado para conduzir uma sessão de impeachment presidencial. Mas o Brasil é uma republiqueta e, por isso, não só estava lá como foi, diversas vezes, aplaudido. Cunha foi o homem certo na hora certa, prestando os favores corretos para os grupos corretos. Talvez por isso, ontem mesmo no plenário, já se debatia uma anistia a ele – que, olha que bonito, pode vir a substituir Temer quando este precisar viajar para fora do país. O Brasil não é para principiantes.
E a galera que citava os “dez milhões de empregos perdidos''? A incompetência deste governo, que nos jogou em uma situação econômica bizarra, deve ser lembrada até o final dos tempos, bem como sua tentativa de rifar os direitos de trabalhadores para fugir da crise. Mas considerando que o projeto de lei que amplia a terceirização legal, precarizando ainda mais a vida dos trabalhadores (leia mais aqui), está para ser votado e, se for, será aprovado, só posso crer que esses deputados estavam untados de óleo de peroba ao dar essas declarações.
Vamos ao ponto: raríssimos foram os casos em que parlamentares fizeram referência à questão dos decretos orçamentários usados como justificativa – insuficiente, diga-se de passagem – para dizer que Dilma havia cometido crime de responsabilidade. A bem da verdade, boa parte dos parlamentares não consegue explicar o que são decretos orçamentários, nem o que é uma “pedalada''. Não duvido que usem a Constituição como peso de papel ou rascunho em seus gabinetes.
Pouco depois de parabenizar Cunha, homenagear o açougueiro e torturador Brilhante Ustra (que se houvesse inferno, estaria tostando lá, neste momento) e cravar a ignomínia “perderam em 1964,  perderam em 2016″, Jair Bolsonaro foi ovacionado nas redes sociais por aquela legião de pessoas que cabulava aula de história ou pouco se importa com a dignidade alheia. Bolsonaro foi um dos principais beneficiados por todo o fundúnculo do ano passado – ao lado de Michel Temer, claro. De congressista caricatural, ele já tem 8% do eleitorado. Em 2018, como estimei aqui, vai partir de índices de 15% para a campanha presidencial.
Donald Trump ocupou um espaço de porta-voz de comentaristas de redes sociais nos Estados Unidos, público insatisfeito pelo fato de que seus queridos preconceitos estão sendo atacados. Bolsonaro tenta o mesmo, sem o mesmo charme ou conteúdo.
Ambos dizem que essa parcela não precisa se sentir dessa forma, nem se adaptar. Basta lutar contra a ditadura do “politicamente correto'' – o que é outro grande equívoco. Pois se essa ditadura existisse, não haveria sem-tetos, gente passando fome, mulheres negras ganhando menos do que homens brancos, nem pessoas mortas por amar alguém do seu jeito.
Como os principais partidos políticos não se esforçam para garantir mais participação popular, o governo e a oposição derraparam em dar respostas para a retomada do crescimento econômico e a vida do brasileiro (principalmente o mais pobre) foi piorando a olhos vistos, fomos assistindo ao crescimento de discursos que bradam que a democracia é questionável. PSDB e PT, os principais partidos após a redemocratização, perderam o bonde da construção de suas narrativas. Tanto a ideia de social-democracia naufragou no primeiro, quanto a importância da luta de classes desapareceu do segundo. Órfã, a população foi atrás de comprar o que estava disponível.
A verdade é que essa miríade de deputados, apesar dos discursos bizarros, sabe conversar com um público que quer saídas rápidas e fáceis para seus problemas. Conseguem entregar uma narrativa simples para que o público possa tocar suas vidas – coisa que não conseguem fazer intelectuais, líderes sindicais e parte da militância social que falam de um mundo complexo e cheio de tonalidades. A realidade realmente não é simples e, ao tentar simplificá-la, algo ou alguém sempre fica de fora. Nas narrativas coalhadas de ódio, por exemplo, exclui-se a dignidade humana.
A votação deste domingo deveria ser assistida de forma obrigatória por todo o eleitor antes das próximas eleições. Seria extremamente didático mostrar quem são as pessoas que discutem e constroem as leis que todos nós iremos seguir. Isso, é claro, se muitos dos eleitores não sentirem total empatia com aquele circo – afinal de contas, não podemos esquecer que jabuti não sobe sozinho em poste, nós os colocamos lá. Eles (os deputados, não os jabutis) também somos nós.
Desse clima atual de “que se vão todos'' pode brotar algo novo, baseado – por exemplo – na garotada que foi às ruas em junho de 2013. Eles não retornaram para pedir a saída ou a permanência de Dilma, mas impuseram uma rara derrota ao governo Geraldo Alckmin na questão da reorganização das escolas estaduais de São Paulo no ano passado. Estão por aí, debatendo, conversando.
Mas, se o descrédito na política continuar crescendo, esse clima pode abrir caminho para algum “salvador da pátria'', que não precisa de partidos, e promete botar ordem na casa sozinho, com a rigidez e o carinho de um Grande Pai. Que irá governar com um Congresso que pode ser igual ou pior do que esse que está aí. Afinal de contas, no fundo do poço, há sempre um alçapão.

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Fonte: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/. Título original: 'Por Deus, pela Família, por Cunha'. 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

As lentes da democracia



Por Michelangelo Bovero

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de “escola de Turim” tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual. A teoria analítica da democracia que foi elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada “concepção processual” da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções “substanciais”, concentrou a atenção sobre as “regras do jogo”. Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.

A tabela bobbiana das regras democráticas
1 – Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 – O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 – Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 – Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 – Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos;
6 – Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.
Essas seis regras são chamadas de “procedimentos universais”, ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o “quem” e o “como” da decisão política – e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos.
Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) “teoria deliberativa da democracia” atualmente em voga. Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de “deliberação” (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia “apenas” eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.

Critérios de democratização
A tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima “segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados”. Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse “conjunto de regras” pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as “regras do jogo” valem como condições da democracia. Aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de “condição”, pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática.
No capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: “Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático”. Em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: “Nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos”.
Começo observando que Bobbio considera “graus diferentes de aproximação do modelo ideal”. Devemos esclarecer que o “modelo ideal” que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em todas as experiências concretas de “realização” da democracia, não foi a “de ‘transformar’ um regime democrático em um regime autocrático”. A fronteira entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo grau.
O problema mais importante não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são “aquelas listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente”. Por isso, na análise de casos das democracias reais, “deve-se ter em mente o possível desvio entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são aplicadas”. E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984 Bobbio não hesitava: “mesmo a mais distante do modelo”, ou seja, do paradigma de uma aplicação correta das regras do jogo, “não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático”. Então, afirmava ele, apesar das secas réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna, “não se pode falar propriamente de uma ‘degeneração’ da democracia”.
Eu me pergunto: isso ainda é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos? Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a “era das tiranias”, os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém, podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações sofreu a democracia?
Vejamos: diante do problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa – ou, em outras partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a uma condição de existência miserável e sem resgate –, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela segunda regra? Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a condição de pluralidade da informaçãoexigida implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da administração do poder, da distorção das cúpulas e das “lideranças” da vida pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis, como ficam as condições de pluralismo políticorequeridas pela quarta regra? E diante da configuração da dialética política como um jogo de soma zero, no qual “quem ganha leva tudo”, não se poderia falar talvez de um abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das alterações na separação dos poderes, como ficam os “direitos das minorias” protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?
É supérfluo acrescentar que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade, fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o Bobbio “pessimista”, manifestava um quarto de século atrás.

Tolerância – debate livre – fraternidade
Pode parecer que uma teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma pergunta que ele mesmo reconhece como “fundamental”: “Se a democracia é principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com ‘cidadãos ativos’? Para que cidadãos ativos existam, não seria preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?”. Em suma: Bobbio nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, “que tão frequentemente zombaram das regras formais da democracia”, são o fruto de escolhas de valores, e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência desejável e aprovada com base em determinados valores.
Mas quais valores? Para simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro: tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e fraternidade. Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível, mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva, que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.
Isso significa talvez que as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito de democracia – tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos liberais e socialistas. Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria, e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem toda forma de igualdade é um valor. Aquelas que Bobbio chama de “as quatro grandes liberdades dos modernos” – a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação – são valores de tradição liberal que um bom democrata deve fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, “não são propriamente regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do jogo”. Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais da democracia. Que sentido teriam os direitos de participação política se não fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os indivíduos, como livres?
Para retomar, simplificar ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica, proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como “a democracia é o regime da igualdade e da liberdade política” deve ser considerada como um juízo analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do) sujeito. Uma proposição (dupla) como “a democracia é o regime das liberdades individuais e/ou das igualdades sociais”, que à primeira vista pode parecer extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações históricas da noção de democracia. Tal proposição deve ser considerada, feitas as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de seus defeitos.
A ideia de democracia também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia, direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico”. Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice vínculo é confirmada, em negativo, também pelo “movimento contra-histórico” que estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de “matéria bruta” do mundo opôs uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.

Crise da democracia
Que a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária, de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um neologismo: “antipolítica”. Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade “verdadeira” do “povo” àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de partidos e das instituições de representação. Na Europa muitos atores políticos de direita, expressões do “chauvinismo do bem-estar” produzido pela globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos. Na América Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo “antipolítica”, o termo mais explícito “antidemocracia”; também para sugerir que, apesar do consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.
A noção de antidemocracia contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais perigosos da política contemporânea.

Facismo pós-moderno
Ao risco de fazer tremer os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia caracterizar as diversas manifestações da “antidemocracia” que estamos observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo (depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a natureza essencialmente “subversiva” de ambos.
Em um dos artigos sobre a história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista. Com relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não a conheçam) a visão de certas imagens dos “jornais cinematográficos” da época, que nos passavam a figura do “líder” Mussolini na sacada do Palazzo Venezia, com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão da “massa oceânica”: eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o mapa-múndi. Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno, dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.
Um escritor do século 19, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia moral e cívica dos italianos. Nas mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos, que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na idiotização dos cidadãos pela mídia. Bobbio se acostumou a repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made in Italy demonstraram ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente aquilo que sai de nosso laboratório.
Tanto para o mal quanto para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo – e não me canso de repetir –, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar. Tanto é verdade que foi tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo, a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui, como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/


quinta-feira, 14 de abril de 2016

O comando de si: mente, corpo e emoções

Devemos ao francês Henri Bergson duas assertivas muito características envolvendo a mente, quais sejam: 1) "O olho vê somente o que a mente está preparada para compreender"; 2) "Se consciência significa memória e antecipação, é porque consciência é sinônimo de escolha." Seja como for, a pesquisa científica tem avançado bastante no estudo da mente (de forma interdisciplinar, envolvendo inclusive as ciências humanas), embora o cérebro ainda continue conservando os seus mistérios. Há, contudo, consistentes abordagens explicativas a respeito da mente, como a que aí abaixo reproduzo. Vale a leitura.



Por Ana Macarini 

O cérebro humano é uma ferramenta maravilhosa, cuja capacidade de armazenamento, interpretação, interação e adaptação parece ser ilimitada. O mais misterioso órgão do nosso corpo, embora possa ser visualizado, estudado, tocado, e até manipulado, é ainda fonte inesgotável de questionamentos e perguntas. O que sabemos é que se trata da nossa central de funcionamento e fonte administrativa do comportamento. Uma usina de substâncias químicas hormônios e enzimas passíveis de mensuração e análise. Uma estrutura intrincada de células e vias neuronais, realizando milhares de sinapses a todo instante. Organizado por impulsos elétricos que comandam o funcionamento do nosso corpo e a configuração de nossos comportamentos. O cérebro, ainda que seja enigmático, em muitos aspectos, é orgânico, material e físico. Mas, o que podemos dizer da mente?
A mente é um completo mistério para nós. Chega a ser perturbador ter de admitir que mesmo passados séculos de estudos, interpretações filosóficas e inegáveis avanços na área das neurociências, da psicologia e da medicina, continuamos com hipóteses controversas acerca do conceito de mente. Teorias históricas antigas, baseadas em premissas de Platão, sustentam ser a mente uma entidade independente do corpo. Há, inclusive, proposições religiosas que relacionam o funcionamento da mente às tendências da alma, pressupondo a existência de um espírito que daria ânimo ao corpo.
Há tempos, bioquímicos, psicólogos, neurologistas, psiquiatras e neurocientistas vêm se debruçando sobre pistas dadas pelas funções mentais, que são responsáveis pela capacidade humana de pensar, sentir, lembrar, aprender, comunicar-se, criar ou destruir. Anos de pesquisa comprovam que o comportamento humano está intrinsicamente ligado ao funcionamento do cérebro. Isso posto, revela-se uma interpretação: a mente depende do cérebro para existir e só pode expressar-se pelas manifestações do comportamento que é constituído, em grande parte, pela química das células neuronais.
Assim, podemos entender o cérebro como um mapa para compreender (ainda que de forma tímida), os mistérios da mente. Neurocientistas, por meio de muito estudo e pesquisa, apontam para mecanismos cerebrais que podem estar implícitos em experiências infinitamente complexas nos processos de desenvolvimento e aspectos comportamentais do ser humano, tais como: o pensamento, a atenção e a consciência.
O cérebro, em si, é extraordinário. A começar por sua estrutura repartida em dois hemisférios, sendo cada uma das metades (direita e esquerda), uma imagem “em espelho” da outra, interligadas por feixes nervosos. Durante muito tempo apregoou-se que cada hemisfério teria suas próprias áreas de especialização mental. O hemisfério esquerdo, por exemplo, seria majoritariamente responsável pelas funções verbais, analíticas e de raciocínio lógico; enquanto que o direito estaria mais envolvido com as funções artísticas, capacidade de criação e habilidades espaço-visuais. Hoje sabemos que o que permite que sejamos tanto criativos, quanto analíticos é a eficiência das conexões entre todas as regiões do cérebro. Mediante a ocorrência de uma lesão no feixe de fibras nervosas que liga os dois hemisférios, as conexões são interrompidas em alguns espaços, o que pode ocasionar alterações impressionantes no comportamento.

Tantas descobertas nos colocam em um ponto no qual o fascínio pelo que já se sabe e a inquietação a respeito do quanto ainda falta compreender marcaram um encontro. Afinal, ao mesmo tempo, em as funções mentais são responsáveis pela evolução e desenvolvimento do nosso mundo; as disfunções da mente revelam-se como detentoras de um poderoso sistema de destruição do ser humano e do seu entorno.
Estudos de neurociência e genética apontam que disfunções mentais como: mania, distúrbios do humor, esquizofrenia, ansiedade, distúrbios de memória e déficits intelectuais têm sua origem em configurações anatômicas do cérebro, funções bioquímicas e hereditárias. Revelações desta natureza trazem uma luz importante ao tratamento social que se dá às doenças mentais. Infelizmente, uma grande parcela da sociedade (senão sua maioria), apresenta uma postura altamente preconceituosa em sua interpretação sobre o comportamento de portadores de disfunções psiquiátricas. As doenças da mente são tão reais quanto o diabetes, as cardiopatias ou o câncer. No entanto, como seus sintomas e consequências revelam-se por meio do comportamento destoante, julga-se que o indivíduo doente pode controlar seu comportamento; e, em não o fazendo está sendo fraco, melindroso ou, até, malicioso. Sim! Há quem acredite que é possível fingir uma depressão, por exemplo. Pode acreditar!
O comportamento compulsivo é um exemplo perfeito para ilustrar este fato. Compulsões são representadas por ações repetitivas que, em sua essência, são danosas ao equilíbrio físico, social e mental do indivíduo. Os compulsivos, em geral, são portadores de natureza ansiosa ou insegura, cuja origem pode estar relacionada às relações familiares na infância. A pessoa compulsiva adquire um hábito que se perpetua na tentativa desesperada de fazer parar uma dor emocional por meio de um comportamento repetitivo, sobre o qual não tem controle.
As compulsões trazem um prazer momentâneo, ilusório e danoso à já frágil estrutura emocional de quem está sujeito a elas. Em busca de saciar um ‘buraco afetivo’, aplacar uma situação aflitiva ou mesmo, escapar de um sentimento opressivo, a vítima embarca num túnel de atos repetitivos e sem nenhuma reflexão possível, perde o controle de suas ações. Há gente que rói as unhas, até que comece a roer a própria carne. Há aqueles que arrancam os próprios cabelos, até que tenha conseguido uma enorme falha expondo o couro cabeludo. Há quem compre compulsivamente coisas aleatórias, até que se veja atolado em dívidas impossíveis de serem pagas; e, nem assim conseguem parar de comprar.
Compulsões alimentares, por exemplo, são caracterizadas pela ingestão de grandes quantidades de comida, num curto espaço de tempo. A pessoa coloca na comida a cura momentânea para sensações de desamparo e incompletude às quais se submete todo santo dia. O mais desesperador é que o anestésico dura pouquíssimo tempo. Em geral, dura o tempo em que a pessoa se empanturrou de qualquer coisa que tenha no armário ou na geladeira e sequer trouxe o alívio que ali fora buscado. O mais triste é que na sequência do surto compulsivo, a pessoa é tomada por um enorme sentimento de culpa e sensação de incompetência por não ter conseguido resistir ao impulso (como se fosse possível resistir!).
Essa categoria de compulsão está intimamente ligada à aquisição de vícios. Os vícios se instalam graças ao fortalecimento das conexões neuronais presentes nos hábitos. O cérebro cria trajetos de rotina, por meio dos quais, sempre que se apresentar uma situação de angústia ou aflição, fará a pessoa recorrer ao comportamento compulsivo. Os compulsivos enfrentam dificuldades absurdas para conseguir desinstalar o processo da compulsão, justamente porque no início, esse comportamento provoca imenso prazer e as consequências negativas só aparecem com o tempo. E quando elas aparecem, a compulsão já se estabeleceu, invertendo a ordem das coisas.
A compulsão é o avesso da situação equilibrada das emoções. Aqui não é a mente que manda no comportamento. Aqui a mente está subjugada por uma repetição de comportamentos cuja causa é nebulosa, mas a natureza é psíquica. Compulsão é doença! Não é falta de vergonha na cara! Não é fraqueza! Portanto, antes de sairmos por aí apontando nossos dedinhos perfeitos a julgar o desequilíbrio alheio, muita cautela! Por trás de um comportamento anormalmente repetitivo há sempre uma pessoa que sofre!

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Fonte: http://www.contioutra.com/voce-comanda-a-sua-mente-ou-e-ela-que-comanda-voce/




sábado, 9 de abril de 2016

A (des)educação e as raízes da intolerância, do desrespeito e dos problemas éticos

Vale a pena uma vista de olhos no vídeo aí abaixo, é  do escritor estadunidense Jacque Fresco. Entre as interpretações várias a seu respeito, pode dizer-se que calha bem ao momento que vivemos no Brasil, ao que se deve ter em conta inclusive a intolerância e o desrespeito em determinados ambientes universitários. O título original do vídeo é: 'Are we educated yet?' 


Do importante

Por Leont Etiel

Pode-se não concordar com a descida dos corações à terra dura, mas assim o é desde que o mundo é mundo. Seguem pelo desconhecido, os sábios e os belos. O que é importante, resta por ser o que deve ser retido. O corpo que anseia; a alma que acalma. A suposta beleza, vulgar, da aparência exibida pela exposição corporal; a beleza de alma, de pensamento. O vazio que é a existência apenas da primeira.
Agostinho de Hipona sabia das coisas. Afinal, como ele diz, a indigência, sobretudo mental, encarrega-se de  se (auto)nivelar à infelicidade. A sabedoria, contudo, não concede abrigo à indigência, visto que ela é alma, onde se encontra a vida feliz, e assim não sofre de indigência. O sábio não teme as mortes do corpo, nem as dores que não pode suprimir ou adiar.  Ele evita a morte e a dor, na medida em que for possível ou conveniente, mas se de nenhum modo as evitar, não será infeliz por aquilo que acontece. 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

A grande farsa

Quando alguém da estatura de Dermeval Saviani, uma referência histórica e central da educação brasileira, com significativas contribuições à área, escreve um texto como o que segue aí abaixo a propósito da crise que o país vive, é porque, de fato, a situação requer prudência, serenidade e reflexão de todos os democratas. A conferir.




Por Dermeval Saviani 
Professor Emérito da UNICAMP e Pesquisador Emérito do CNPq

A crise que se abateu sobre o país tem sido justificada em nome do combate à corrupção e, por meio da insistente repetição dos diversos meios de comunicação, vem induzindo a população a acreditar que foi o PT que, ao chegar ao governo, institucionalizou a corrupção instalando uma verdadeira quadrilha empenhada na apropriação privada dos fundos públicos. Mas a verdade é bem outra. O erro do PT foi, ao assumir o governo, não ter tentado desmontar o esquema que já existia e do qual se serviam todos os partidos que chegavam ao poder. Ao contrário, para assegurar uma base de apoio no Congresso sem o que não conseguiria governar, o PT lançou mão do esquema que já se encontrava em funcionamento muito antes do seu surgimento. Portanto, o apelo atual à luta contra a corrupção não passa de uma grande farsa. Como afirmou o delegado da Polícia Federal Armando Coelho Neto, que se aposentou faz apenas dois anos e foi presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, a PF na era FHC estava desaparelhada e carecia de autonomia tendo havido, inclusive, um empréstimo francês para seu aparelhamento que, embora recebido e o governo já estivesse pagando juros, não foi utilizado por falta de planejamento. Em contrapartida, a gestão Dilma tomou treze medidas que aparelharam a Polícia Federal e lhe deram autonomia, assegurando-lhe condições de atuar fortemente na investigação dos atos ilícitos, em especial no caso da corrupção. Mas ele constata que, na verdade, não se está lutando contra a corrupção. Se isso estivesse ocorrendo outras operações estariam em curso. A Operação Zelotes, por exemplo, está abafada porque nela estão envolvidos grandes personagens da política, grandes empresas e bancos, grupos de comunicação, à testa a Rede Globo, num grande escândalo intermediado pelo Banco HSBC que, por conta disso, acabou se retirando do país. Na própria Operação Lava-Jato as delações trouxeram à baila nomes do PSDB e de outros partidos que, no entanto, são blindados. A Conclusão do ex-presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal é que o que está em curso não é uma luta contra a corrupção, mas uma guerra contra o governo e o PT. Bresser-Pereira, por sua vez, que foi um dos mais importantes ministros do governo FHC, tem evidenciado o ódio dos endinheirados contra o PT e, num dos últimos vídeos ele afirma que nos governos de Lula e Dilma os pobres ficaram menos pobres e os ricos mais ricos, sendo que a classe média foi a menos beneficiada. Daí, o cultivo do ódio da classe média contra o PT, ódio incentivado com a insistência da mídia que diariamente, repetindo à exaustão, se dedica a esmiuçar denúncias não comprovadas contra Dilma, Lula e o PT. E isso é muito perigoso porque está em curso uma onda fascista que se manifestou explicitamente com saudações nazifascistas e incitação ao armamento da população, como o fez o deputado Jair Bolsonaro. Este, segundo consta, teria sido avisado previamente da condução coercitiva do Lula que, segundo o plano seria levado preso de Congonhas para Curitiba num jatinho que já estava pronto para decolar, quando a operação foi abortada pelo destacamento da aeronáutica que faz a segurança do aeroporto de Congonhas. Mas Bolsonaro já teria se dirigido a Curitiba para lá incitar a população a se manifestar em apoio à prisão de Lula assim que ele chegasse à carceragem. É um quadro muito preocupante que nos faz lembrar da Alemanha das décadas de 1920 e 1930 com a ascensão de Hitler, apoiado pelo fanatismo que se apossou da população. Naquela situação também a Justiça se revelou draconiana com as ações da esquerda e complacente com a truculência da direita. Agora, no Brasil, está em curso iniciativas que, como observou o jurista Fábio Conder Comparato, deixa o Estado de Direito em frangalhos, com violações de normas constitucionais.
A situação é muito grave e, ao que parece, o golpe irá se consumar porque todas as instituições da República (Judiciário, Ministério Público, a própria OAB, Parlamento, Partidos políticos, toda a grande mídia televisiva, escrita e falada) encontram-se conspurcadas e obcecadas com o único objetivo de destruir o PT e impedir Lula de voltar a se candidatar. E, para isso, não têm pejo em violar as normas jurídicas relativas aos direitos mais elementares, inclusive dispositivos constitucionais. A hipocrisia é tanta que jornalistas, representantes do Judiciário e parlamentares repetem à exaustão que Lula não pode ser ministro porque é investigado, ao mesmo tempo em que se posicionam a favor do impeachment que vem sendo conduzido e manipulado por um parlamentar que não apenas é investigado, mas é réu e se mantém como Presidente da Câmara dos Deputados sendo, nessa condição, o segundo na sucessão da Presidência da República. Então, a pergunta que não quer calar é: por que Eduardo Cunha, que é réu em processo que corre no Supremo Tribunal Federal, pode continuar como deputado e, mesmo, como Presidente da Câmara obstruindo a Comissão de Ética e articulando todos os passos do processo de impeachment; e Lula, que apenas está sendo investigado, não pode assumir a Casa Civil? Diga-se de passagem que esse impedimento é também violação da Constituição a qual determina que a nomeação de ministros no âmbito do Poder Executivo é prerrogativa exclusiva da Presidência da República.
Sim, o que está em curso é um golpe. Claro que o impeachment está previsto na Constituição não podendo, pois, por si mesmo, ser caracterizado como golpe. Mas quando esse mecanismo é acionado como pretexto para derrubar um governo democraticamente eleito sem que seja preenchida a condição que a Constituição prescreve para que se acione esse mecanismo, ou seja, a ocorrência de crime de responsabilidade, então não cabe tergiversar. O nome apropriado nesse caso não é outro. É, mesmo, Golpe de Estado, pois a Constituição não estará sendo respeitada, mas violada. E até agora, nenhuma das alegações apresentadas para justificar o impeachment caracteriza crime de responsabilidade. Aliás, Dilma sequer está sendo investigada ao passo que a Comissão do impeachment tem mais da metade de seus membros em investigação e, no conjunto da Câmara, 302 deputados encontram-se na mesma situação. A farsa está, pois, escancarada: um bando de corruptos julgando e condenando uma presidenta que não cometeu crime algum. E, como a oposição ensandecida deverá, engrossada pelo PMDB, conseguir maioria para aprovar o golpe, restará ao Supremo, cumprindo seu papel de guardião da Constituição, evitar esse desfecho. Se isso não acontecer, a farsa se transformará em tragédia. E o Estado Democrático de Direito deixará de existir no Brasil, vitimado por um Golpe de Estado jurídico-midiático-parlamentar. É, pois, de suma importância uma grande mobilização das forças democráticas, independentemente de partidos e da avaliação positiva ou negativa do governo Dilma, para evitar essa tragédia.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Ecologia da ideologia: o real invertido

Por Ivonaldo Leite

Na medida em que a questão ecológica e a crise ambiental foram ocupando um lugar de destaque na agenda contemporânea, foi surgindo, por outro lado, uma posição que, com origem nos Estados Unidos, tem se acentuado nos últimos tempos: a negação do aquecimento global, pelos chamados deniers, conforme a expressão original em língua inglesa.[1] Dessa forma, as discussões sobre a temática ambiental têm, ascendentemente, sido marcadas pela polarização entre deniers e - utilizando também o termo originário em inglês - belivers (os que afirmam a existência do aquecimento global).  
Sem menosprezo pelo debate e pela divergência no confronto de ideias, não nos parece, contudo, que a tese dos deniers encontre respaldo empírico e que a sua linha discursiva tenha sustentação lógico-argumentativa. Na verdade, o que a realidade evidencia é que provavelmente muitos dos cenários apresentados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)/ONU,  em relatórios mais recentes, terão lugar não no ano de 2100 ou mesmo 2050. Poder-se-ão efetivar antes disso, até porque já é possível verificar vários exemplos do colapso ambiental.  Acontecimentos como o furacão Catarina, que arrasou Nova Orleans/EUA, em 2005, assim como o primeiro ciclone tropical no litoral sul do Brasil, em 2004, bem como a subida dos níveis dos oceanos e o aumento das temperaturas são fenômenos concretos, e não invencionices de ambientalistas.
Isso não significa desconhecer que, por vezes, a crise ecológica tem sido apropriada por “grupos de interesses” com o nítido propósito de, a partir de um suposto discurso politicamente correto, fomentar a constituição de um “mercado sustentável”, onde a consciência ambiental é transformada em uma mercadoria que, no final das contas, termina por alimentar a insustentabilidade sistêmica, visto que não é possível existir sustentabilidade em sociedades insustentáveis. Muitas das perspectivas do chamado desenvolvimento sustentável estão por aí, com empresas estendendo a sua atuação a novos nichos de mercado sob o impulso do galope retórico a seu respeito.
Por outro lado, um elemento que depõe contra os negacionistas do aquecimento global, ou pelo menos parte dos deniers, diz respeito, sobretudo nos Estados Unidos, ao fato de eles terem o apoio de grandes corporações (interessadas em avançar sobre o meio ambiente a qualquer custo, em busca de lucro) na sua cruzada denegatória do aquecimento do planeta.





[1] Trata-se de uma posição assumida por políticos (nos EUA, sobretudo do Partido Conservador), empresários e até acadêmicos. A propósito destes últimos, aliás, já foi publicado até mesmo um manifesto deles, em The Wall Street Journal, afirmando que não há razão para preocupação em relação ao aquecimento global. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

'A serenidade é o princípio e o fim de todas as coisas'



Por Levi Kalque Ferreira 

Acredito que a grande maioria das pessoas saibam quem foi Confúcio ou ao menos já leu alguma de suas citações na vida, mesmo sem saber que eram de sua autoria. Para quem não o conhece, Confúcio é basicamente, um dos maiores pensadores/filósofos chineses, onde seus ensinamentos e pensamentos filosóficos deram origem ao Confucionismo, uma das mais antigas áreas da filosofia que moldaram o modo de vida oriental, tão invejado pelo ocidente.
Estava bastante entusiasmado para ler esse livro e também muito curioso com relação à forma de escrita dele. Eu costumo acumular frases, tanto minhas quanto de amigos, e as guardo como ensinamentos e reflexões sobre determinados assuntos. Por esse motivo conheço, mais do que ninguém, a importância do contexto. É claro que algumas frases e ensinamentos mantêm sua essência independente do contexto, porém contextualizá-las fornece um grau de detalhamento e até entendimento muito maior. Quando comecei a ler As lições do Mestre me impressionei por esse motivo. O livro começa com uma apresentação do Mestre (Confúcio) de forma tão bem contextualizada que não tive duvidas quanto à realidade do período em que ele viveu e da origem de seus pensamentos filosóficos. A introdução ainda justifica a tradução em português de alguns termos chineses, já que ele foi traduzido diretamente do chinês. O interessante dessa introdução é que, além da contextualização histórica e justificação de traduções de alguns termos, eu fiquei extremamente interessado em pesquisar mais sobre o mestre, mais detalhes sobre sua trajetória e sua vida e essa vontade apenas aumentou ao decorrer da leitura de seus ensinamentos.
O livro não possui uma história corrente, não possui contos, ele basicamente reúne alguns dos tantos ensinamentos de Confúcio. Como já citei, grande parte das lições são contextualizadas com breves descrições das situações e isso eu achei fantástico. Não é um livro que você lê de uma vez só…Muito pelo contrário.  Fiquei um pouco na dúvida com relação a forma de ”saborear” os ensinamentos do mestre, principalmente pelo grau de interesse que eu tenho no filósofo, e a disposição dos ensinamentos faz desejar ler mais e mais, porém seria uma forma ingênua de compreende-lo. Devo confessar que ainda não digeri todos os ensinamentos e depois de possuir o livro em mãos retomei a leitura de algumas lições de acordo com os acontecimentos do meu dia-a-dia. Não sou religioso, mas acredito que eu tenho a mesma sensação de leitura de um cristão com uma bíblia. O livro fica quase sempre comigo e sempre que tenho oportunidade, e tempo para pensar, eu leio um dos ensinamentos e procuro refletir sobre. A contextualização nos ajuda muito a assimilar as lições com os acontecimentos do dia a dia. Mais de uma vez durante a semana, fui pego pensando e analisando os ensinamentos de Confúcio, é incrível como nossas experiências pessoais fazem com que essas lições tomem significados diferentes em nossas vidas. Não é raro também eu me pegar citando alguma das frases do mestre em momentos do dia a dia, é algo meio que involuntário, quando você percebe aquela filosofia se encaixou tanto em determinado contexto e está tão bem aceita em sua mente que o natural seria aproveitar a análise do mestre e compartilhar com os demais.
A edição brasileira do livro foi traduzida diretamente do chinês, como eu já disse anteriormente, pelo tradutor André Bueno. O cuidado da editora Jardim dos livros (Geração Editorial) com a parte gráfica também é notável. Não se trata de uma edição luxuosa nem nada, mesmo assim todas as páginas possuem uma margem desenhada com adornos orientais que formam dragões chineses. A cada determinado número de páginas, uma face inteira é reservada para uma ilustração do mestre. Algumas representam situações de contextualização das frases, outras são gravuras ou fotografias de estátuas do mestre. Esse detalhe gráfico nos permite ainda mais imersão. Além disso, o livro possui algumas breves descrições do dia a dia e costumes do mestre e isso nos ajuda a compreender ainda mais suas lições e ensinamentos.
O livro não possui apenas ensinamentos de Confúcio, mas também poemas contemporâneos a ele e ensinamentos que inspiraram suas reflexões.
É o tipo de literatura que eu aconselho a qualquer pessoa.
“Escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia de sua vida.”
"A serenidade é o princípio e o fim de todas as coisas."


domingo, 3 de abril de 2016

Universidade pública e gratuita em risco: cobrança de mensalidades

Há não muito tempo, o economista Samuel Pessôa (Fundação Getúlio Vargas), na condição de assessor do PSDB, causou polêmica ao defender abertamente que o ensino superior, nas universidades públicas, fosse pago. Defendeu essa posição num artigo na Folha de São Paulo, o qual reproduzo aí abaixo. Diante das críticas, ele ele fez 'inversão de marcha' e procurou disfarçar a sua proposta.  Agora, com o processo de impeachment da presidente aberto, ele volta a defender enfaticamente a ideia de 'universidade paga', no que é apoiado por Moreira Franco, braço direito de Michel Temer, o substituto de Dilma Roussef em caso de sua deposição.  A posição de Samuel Pessoa está inteiramente em sintonia com o programa que vem sendo apresentando por Temer, denominado 'Ponte para o Futuro'. Era suposto que esse risco (real) de acabar a gratuidade nas universidades públicas estivesse a ser discutido. Mas nada. A sociedade brasileira parece dopada pela irracionalidade e pelas manifestações de intolerância que ressuscitam comportamentos fascistas. Nem na própria universidade a questão está a receber a atenção devida. Tenha-se em conta, por exemplo, o caso da UFPB, que se encontra em meio a um processo eleitoral para Reitor e, portanto, num momento privilegiado para fazer esse tipo de debate. Contudo, sem espaço, pois, mesmo existindo quem deseje discutir questões como essa, o baixo nível, a lógica agressiva como de torcidas de futebol e a política pequena, que têm marcado a campanha, não permitem, a ponto de não se ter condições sequer de realizar um debate, como ocorreu no Campus do Litoral Norte. Difícil ver compromisso com a universidade pública, gratuita e de qualidade em quem assim procede ou estimula esse tipo de comportamento. Segue o artigo de Samuel Pessoa, do qual discordo nas teses básicas, mas que deve ser divulgado, para que se tome conhecimento dos riscos que corre a universidade pública e gratuita no Brasil. 



Por Samuel Pessôa

O TEMA da cobrança de mensalidade para serviços de educação superior tem a mesma natureza do pedágio urbano.
O pedágio urbano justifica-se porque um bem econômico público, as vias públicas, torna-se um bem econômico privado quando se congestiona. A natureza econômica das vias públicas altera-se de acordo com a intensidade do seu uso.
As universidades públicas oferecem dois serviços de natureza distinta, apesar de haver complementaridades entre eles. A atividade de pesquisa constitui um bem público no sentido econômico, enquanto a atividade de ensino constitui um bem privado.
O que se chama de "bem econômico público" na literatura econômica é aquele que tem a propriedade técnica da "não rivalidade": o fato de uma pessoa utilizar o bem não impede que outra(s) pessoa(s) também o utilize(m) simultaneamente. A circulação de um automóvel em uma rua não impede que outro a utilize simultaneamente enquanto não houver congestionamento.
As vias públicas, portanto, são bens públicos imperfeitos, pois estão sujeitas à congestão. O conhecimento é o exemplo mais puro de bem público. O fato de uma pessoa estudar aritmética não impede que outra pessoa estude a mesma disciplina. Assim, a aritmética é um bem público.
O conhecimento produzido pela pesquisa universitária é um bem público. É não rival. Adicionalmente, a natureza do conhecimento produzido na universidade -de interesse geral e normalmente sem aplicação direta - dificulta que patentes sejam um recurso possível para garantir geração de renda que financie a estrutura da universidade.
Ou seja, a pesquisa descompromissada de maiores interesses econômicos conduzida nas universidades tem que ser financiada por recursos de natureza pública. Note que não há necessidade de a universidade ser pública no sentido legal. Muita pesquisa descompromissada nos EUA é produzida em instituições privadas. O importante é que essas instituições, sejam as legalmente públicas, sejam as privadas, financiem a pesquisa com receitas de natureza pública.
O ensino universitário é um bem de natureza privada. As competências, as técnicas e o conhecimento transmitido ao aluno nas universidades aumentarão a produtividade dele. Ele conseguirá recuperar privadamente o valor do investimento na forma de maiores salários.
O ganho para a sociedade de um novo profissional graduado, cujo conhecimento foi adquirido em universidade, é bem medido pelo ganho de renda desse profissional.
Esse fato não é verdadeiro para o ensino fundamental. Há ganhos sociais em escolarizar a população que não são apropriados diretamente pelo estudante. Essa é a natureza pública da transmissão de conhecimento.
Educação fundamental é de fato fundamental para que a sociedade funcione bem. O exemplo mais direto é a alfabetização. A comunicação entre as pessoas é muito mais difícil em uma sociedade de analfabetos.
A educação fundamental melhora o funcionamento da democracia, aumenta a autonomia do indivíduo e eleva sua capacidade de discernimento. Parte desses benefícios não redundará em aumento direto de salário dos que hoje estudam.
Faz todo o sentido, portanto, que a educação básica seja gratuita e não faz sentido que a educação universitária seja gratuita.
O ensino universitário deve ser pago. Note que esse fato independe de a instituição de ensino superior ser legalmente pública ou privada.
Para os alunos que não podem financiar as mensalidades da universidade, há o recurso ao crédito educacional. Para as famílias pobres que teriam dificuldade de ter acesso ao crédito educacional de mercado, há programas públicos, como o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), com taxas fortemente subsidiadas.
Além dos impactos orçamentários positivos, a instituição de cobrança de mensalidade para os cursos universitários públicos teria efeito importante sobre a eficiência das universidades. O tempo médio de graduação seria reduzido e a vinculação do aluno ao curso aumentaria. 

sábado, 2 de abril de 2016

Movimento e permanência: tranquilidade da felicidade serena


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Tela de Rob Gonsalves

"Se o método racional e a própria vontade nos conduzissem ao porto do conhecimento, a partir do qual já nos encaminhamos para a região sólida da felicidade, não sei se eu não diria temerariamente que muito menos seres humanos lá chegariam, ainda que, já agora, conforme se vê, são muito raros e poucos os que lá chegam.
De fato, porque fomos lançados para este mundo, como que ao acaso e sem orientação, ou pela natureza, ou pela necessidade ou a nossa vontade, ou pela confluência de algumas ou de todas estas causas – assunto este, decerto, muito obscuro -, quantos saberiam para que local se dirigir ou por onde regressar, a não ser que, um dia, alguma tempestade, considerada pelos ignorantes como algo adverso, contra a nossa vontade e resistência, nos impelisse violentamente, viajantes ignorantes e errantes, para a mais desejada terra.
Ora, parece-me haver três classes, como que de navegantes, entre os seres humanos aos quais o conhecimento pode acolher.
A primeira é a daqueles que, quando a idade da razão se assenhora deles, com um pequeno esforço e a pulso dos remos, se afastam da proximidade e se recolhem à tranquilidade donde levantam um sinal luminoso de alguma sua obra para os outros cidadãos serem advertidos e a ela se acolherem.
A segunda, ao contrário da anterior, compreende aqueles que, desiludidos pelo aspecto muito enganador do mar, optaram por avançar por adentro e atrevem-se a peregrinar longe da pátria, dela se esquecendo muitas vezes. Se – não sei como ou por que modo oculto – lhes bate o vento pela popa, vento que consideram favorável, adentram-se, ufanos e regozijantes, nas profundezas da miséria. Que outra coisa, portanto, se deve desejar para estes humnaos senão alguma contrariedade precisamente nas coisas em que eles, como que lançados, se encontram envolvidos, e se isso não for suficiente, uma tempestade muito feroz e  um vento que sopre em direção contrária e  os conduzam, mesmo gemendo e chorando, até às alegrias certas e sólidas?

Ainda existe, no meio, uma terceira classe, formada por aqueles que, ou no limiar da sua adolescência, ou vagueando pelo mar há já mesmo muito tempo, contemplam, apesar de tudo, alguns sinais que os levam a recordar, ainda no meio das ondas, a sua dulcíssima pátria. Então a ela regressam, sem se desviarem ou demorarem, quer por uma rota adequada, a maior parte das vezes, ou errando pela neblina, ou avistando os astros que as ondas submergem, ou presos por algumas ilusões, deixam passar o tempo para uma boa navegação e erram durante um longo período, e, muitas vezes, arriscam a sua própria vida."

(Agostinho de Hipona - Santo Agostinho. In:  De beata uita' - Diálogo sobre a felicidade', edição bilingue - português e latim -, Coimbra, Edições 70, 2000, p. 21-23).