quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Impeachment: a culpa de Dilma sob a produção da assessoria jurídica de FHC

A propósito da última postagem (a hipótese de impeachment da Presidente Dilma), recebo de um leitor deste espaço um texto que faz uma espécie de contraposição ao, digamos, libelo de Ives Gandra. Verifico que o mesmo foi publicado em Carta Maior, e é de autoria de Fábio Sá Silva, Ph.D em Direito pela Northeastern University. Mais luz ao debate/análise, agora que sabemos que o parecer que aponta bases para o impeachment da Presidente foi encomendado por um advogado do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (por uma bagatela, segundo a FSP, de R$ 100 mil a R$ 150 mil). O título do artigo de Fábio Sá é 'A Culpa de Dilma e o Dolo de Ives Gandra'. Com o advogado do ex-Presidente Fernando Henrique pelo meio da questão, pode também ser intitulado Impeachment: A culpa de Dilma sob a produção da assessoria jurídica de FHC. Abaixo, o texto. 


OAB/RS e TV Cultura
Ives Gandra e FHC: Assessor do ex-Presidente encomendou
 parecer para  impeachment de Dilma


A culpa de Dilma e o dolo de Ives Gandra


Por Fábio Sá Silva 

Pode ser que com a anunciada demissão de Graça Foster e a substituição de toda ou quase toda a diretoria da Petrobrás, a empresa e seus atos de gestão deixem de ser objeto do superficial, mas corrosivo debate a que foram submetidos nos últimos meses. 

Neste cenário, a saída de Foster seria sucedida pela nomeação de alguém bem visto pelo  “mercado”, a estatal tornaria a contar com “confiança” de investidores e acionistas, e os olhos da opinião pública se voltariam para o rito mais formal e procedimentalizado da apuração das responsabilidades, no âmbito da operação Lava Jato. 
O direito, leia-se, teria melhores condições de desempenhar tarefa que lhe é cara nas sociedades modernas: produzir juízos sobre condutas de maneira relativamente isolada dos interesses políticos e econômicos, de modo que a atribuição de sanções, enquanto exercício da coerção estatal que se pretende legítimo, possa operar segundo códigos próprios – nos quais se destacam, por exemplo, direitos e garantias processuais. 
Ao produzir e divulgar “parecer” no qual defende a viabilidade de abertura de processo de impeachment contra a presidenta Dilma, porém, Ives Gandra parece apostar no contrário. 
A tese de Gandra é de que, ao longo dos últimos oito anos, Dilma teria sido “omissa” na gestão da companhia. 
A prova da “omissão”, segundo o parecer, é que Dilma, então Presidente do Conselho de Administração da Petrobras, assinou a compra da refinaria de Pasadena, argumentando, mais tarde, que não foi alertada sobre a inclusão de cláusulas agora tidas como geradoras de prejuízo. 
Este tipo de “omissão”, prossegue Gandra, constitui violação do art. 11 da lei 8.429/1992 e, portanto, caracteriza “improbidade administrativa”. E tal “improbidade” tem caráter “continuado”, na medida em que Dilma manteve a diretoria da empresa ao longo dos últimos oito anos – período no qual, hoje se sabe, houve a prática de diversos ilícitos na empresa. 
Satisfeito, portanto, conclui o parecerista, o requisito de admissibilidade para o processo de impeachment – cujo início e desfecho, porém, ele ressalta, dependem do Congresso Nacional. 
É preciso apenas alguma memória – e não o profundo conhecimento da obra de Ives Gandra –para que o leitor receba estas afirmações com estranhamento e crítica. 
Afinal, não faz muito tempo, o jurista mereceu destaque nas páginas da Folha de São Paulo, ao demonstrar sua contrariedade em relação aos aspectos jurídicos da ação penal 470, o chamado processo do “mensalão”. 
Tratando do tema no âmbito de entrevista, Gandra foi especialmente virulento em relação à teoria do “domínio do fato”, a qual dizia “não aceitar”, pois:
– Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela  – e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do “in dubio pro reo”. 
Curioso, portanto, que agora Gandra flerte com uma visão formalista de “culpa”, muito parecida com a maneira pela qual a teoria do “domínio do fato”, tal como aplicada pelo STF naquele caso, constrói o vínculo entre o agente e o resultado típico. 
Afinal, repita-se, para Gandra Dilma é “culpada” de “improbidade administrativa” porque – como presidente do Conselho de Administração da Petrobrás e, depois, da República –, deveria saber de tudo o que se passava na empresa. Em suma, “como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber”. 
E, segue Gandra, na medida em que foram descobertos ilícitos na empresa, Dilma deveria ter demitido toda a diretoria, pois lhe cabia proceder à “responsabilização de quem conviveu com os autores dos desvios, durante a gestão comum, no último mandato do presidente Lula e no seu 1º mandato” (trecho do parecer, sem destaques no original). Em outras palavras, “todos os executivos (da empresa) correm agora (...) risco. É uma insegurança jurídica monumental”. 
O estranhamento e a crítica do leitor, no entanto, não o levarão a encontrar no parecer qualquer solução para a aparente inconsistência nos posicionamentos do signatário. 
É que os fundamentos jurídicos do estudo (sic) se limitam à repetição da literalidade de textos legais, que não se conectam sistemicamente a não ser pelo voluntarismo analítico de Gandra. 
Neste balaio, por exemplo, entram normativos que disciplinam matérias absolutamente díspares, como o dever do Estado de ressarcir danos causados a particular e a Lei das S/A. 
Formulações doutrinárias (e, acima de tudo, contemporâneas) sobre culpa, o tema central do parecer, cujo exame anima carreiras acadêmicas inteiras na Europa e nos Estados Unidos, cedem lugar a arroubos argumentativos, como o fato de que a compra de Pasadena “não se tratava, repito, de um negócio sem expressão, mas de um negócio relevante, de quase dois bilhões de dólares!!!” 
Tampouco se ocupou Gandra de registrar e rebater a jurisprudência consolidada do STJ sobre improbidade, que: 
... Considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9o. e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10 (AIA 30/AM, 2010/0157996-6). 
Em termos estritamente jurídicos, portanto, o parecer em questão não deveria merecer maiores considerações – da mídia, da comunidade jurídica e, ao que tudo indica, do próprio Gandra, este “velho advogado, com 56 anos de advocacia”. 
Mas é possível que o Gandra que assina o parecer não se importe muito com tais fragilidades. Afinal, como se sabe, ele está longe de ser um neófito. Ao mesmo tempo em que reconhece haver limites estruturais entre o direito e a política, ele sabe que é possível – embora de todo indesejado – contorcer o primeiro para instrumentalizar a segunda. 
No que parece ser apenas um exercício intelectual desinteressado, Gandra se esforça para indicar suposta “culpa” de Dilma em relação aos fatos graves e trágicos trazidos à tona pela Operação Lava Jato. Nós não precisamos de nenhum esforço para perceber que, afinal, ele age informado pelo bom e velho dolo.

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