A propósito da última postagem (a hipótese de impeachment da Presidente Dilma), recebo de um leitor deste espaço um texto que faz uma espécie de contraposição ao, digamos, libelo de Ives Gandra. Verifico que o mesmo foi publicado em Carta Maior, e é de autoria de Fábio Sá Silva, Ph.D em Direito pela Northeastern University. Mais luz ao debate/análise, agora que sabemos que o parecer que aponta bases para o impeachment da Presidente foi encomendado por um advogado do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (por uma bagatela, segundo a FSP, de R$ 100 mil a R$ 150 mil). O título do artigo de Fábio Sá é 'A Culpa de Dilma e o Dolo de Ives Gandra'. Com o advogado do ex-Presidente Fernando Henrique pelo meio da questão, pode também ser intitulado Impeachment: A culpa de Dilma sob a produção da assessoria jurídica de FHC. Abaixo, o texto.
Ives Gandra e FHC: Assessor do ex-Presidente encomendou parecer para impeachment de Dilma |
A culpa de Dilma e o dolo de Ives Gandra
Por Fábio Sá Silva
Pode ser que com a anunciada demissão de
Graça Foster e a substituição de toda ou quase toda a diretoria da Petrobrás, a
empresa e seus atos de gestão deixem de ser objeto do superficial, mas
corrosivo debate a que foram submetidos nos últimos meses.
Neste cenário, a
saída de Foster seria sucedida pela nomeação de alguém bem visto pelo
“mercado”, a estatal tornaria a contar com “confiança” de investidores e
acionistas, e os olhos da opinião pública se voltariam para o rito mais formal
e procedimentalizado da apuração das responsabilidades, no âmbito da operação
Lava Jato.
O direito, leia-se,
teria melhores condições de desempenhar tarefa que lhe é cara nas sociedades
modernas: produzir juízos sobre condutas de maneira relativamente isolada dos
interesses políticos e econômicos, de modo que a atribuição de sanções,
enquanto exercício da coerção estatal que se pretende legítimo, possa operar
segundo códigos próprios – nos quais se destacam, por exemplo, direitos e
garantias processuais.
Ao produzir e divulgar
“parecer” no qual defende a viabilidade de abertura de processo de impeachment
contra a presidenta Dilma, porém, Ives Gandra parece apostar no contrário.
A tese de Gandra é
de que, ao longo dos últimos oito anos, Dilma teria sido “omissa” na gestão da
companhia.
A prova da
“omissão”, segundo o parecer, é que Dilma, então Presidente do Conselho de
Administração da Petrobras, assinou a compra da refinaria de Pasadena,
argumentando, mais tarde, que não foi alertada sobre a inclusão de cláusulas agora
tidas como geradoras de prejuízo.
Este tipo de
“omissão”, prossegue Gandra, constitui violação do art. 11 da lei 8.429/1992 e,
portanto, caracteriza “improbidade administrativa”. E tal “improbidade” tem
caráter “continuado”, na medida em que Dilma manteve a diretoria da empresa ao
longo dos últimos oito anos – período no qual, hoje se sabe, houve a prática de
diversos ilícitos na empresa.
Satisfeito,
portanto, conclui o parecerista, o requisito de admissibilidade para o processo
de impeachment – cujo início e desfecho, porém, ele ressalta, dependem do
Congresso Nacional.
É preciso apenas
alguma memória – e não o profundo conhecimento da obra de Ives Gandra –para que
o leitor receba estas afirmações com estranhamento e crítica.
Afinal, não faz muito
tempo, o jurista mereceu destaque nas páginas da Folha de São Paulo, ao
demonstrar sua contrariedade em relação aos aspectos jurídicos da ação penal
470, o chamado processo do “mensalão”.
Tratando do tema no
âmbito de entrevista, Gandra foi especialmente virulento em relação à teoria do
“domínio do fato”, a qual dizia “não aceitar”, pois:
– Com ela, eu passo
a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você
tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a
você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela
– e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do
domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos
brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental.
Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria
que sempre prevaleceu no Supremo foi a do “in dubio pro reo”.
Curioso, portanto,
que agora Gandra flerte com uma visão formalista de “culpa”, muito parecida com
a maneira pela qual a teoria do “domínio do fato”, tal como aplicada pelo STF
naquele caso, constrói o vínculo entre o agente e o resultado típico.
Afinal, repita-se,
para Gandra Dilma é “culpada” de “improbidade administrativa” porque – como
presidente do Conselho de Administração da Petrobrás e, depois, da República –,
deveria saber de tudo o que se passava na empresa. Em suma, “como você é a
chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber”.
E, segue Gandra, na
medida em que foram descobertos ilícitos na empresa, Dilma deveria ter demitido
toda a diretoria, pois lhe cabia proceder à “responsabilização de quem conviveu
com os autores dos desvios, durante a gestão comum, no último mandato do presidente
Lula e no seu 1º mandato” (trecho do parecer, sem destaques no original). Em
outras palavras, “todos os executivos (da empresa) correm agora (...) risco. É
uma insegurança jurídica monumental”.
O estranhamento e a
crítica do leitor, no entanto, não o levarão a encontrar no parecer qualquer
solução para a aparente inconsistência nos posicionamentos do signatário.
É que os
fundamentos jurídicos do estudo (sic) se limitam à repetição da literalidade de
textos legais, que não se conectam sistemicamente a não ser pelo voluntarismo
analítico de Gandra.
Neste balaio, por
exemplo, entram normativos que disciplinam matérias absolutamente díspares,
como o dever do Estado de ressarcir danos causados a particular e a Lei das S/A.
Formulações
doutrinárias (e, acima de tudo, contemporâneas) sobre culpa, o tema central do
parecer, cujo exame anima carreiras acadêmicas inteiras na Europa e nos Estados
Unidos, cedem lugar a arroubos argumentativos, como o fato de que a compra de
Pasadena “não se tratava, repito, de um negócio sem expressão, mas de um
negócio relevante, de quase dois bilhões de dólares!!!”
Tampouco se ocupou
Gandra de registrar e rebater a jurisprudência consolidada do STJ sobre
improbidade, que:
... Considera
indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente
seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9o. e 11 da
Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10 (AIA 30/AM,
2010/0157996-6).
Em termos
estritamente jurídicos, portanto, o parecer em questão não deveria merecer
maiores considerações – da mídia, da comunidade jurídica e, ao que tudo indica,
do próprio Gandra, este “velho advogado, com 56 anos de advocacia”.
Mas é possível que
o Gandra que assina o parecer não se importe muito com tais fragilidades.
Afinal, como se sabe, ele está longe de ser um neófito. Ao mesmo tempo em que
reconhece haver limites estruturais entre o direito e a política, ele sabe que
é possível – embora de todo indesejado – contorcer o primeiro para
instrumentalizar a segunda.
No que parece ser
apenas um exercício intelectual desinteressado, Gandra se esforça para indicar
suposta “culpa” de Dilma em relação aos fatos graves e trágicos trazidos à tona
pela Operação Lava Jato. Nós não precisamos de nenhum esforço para perceber
que, afinal, ele age informado pelo bom e velho dolo.
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