sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A derrota do novo desenvolvimentismo e as "pistas" de O Capital

'Na real', ou no real (para pensar nas oscilações da nossa moeda frente ao dólar), falemos sobre economia. Sobretudo agora que o Sr. Ministro da Fazenda anda a anunciar aos altos financistas em Nova Iorque que, pasmem! (mas acreditem), o Brasil está a desmontar as medidas anticíclicas - mais precisamente: 'Brasil deixa medidas anticíclicas para trás'(http://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2015/02/18/levy-diz-que-brasil-deixa-medidas-anticiclicas-para-tras-e-que-confia-em-recuperacao.htm).  
Ora, o que o Ministro está a dizer é que as políticas de estímulo à aquisição de bens, o acesso ao crédito, os juros "mais atraentes", etc. ficarão para trás. E repisa a fraude monetarista de que juro alto garroteia inflação. Se a banda tocasse nesse tom, há muito tempo a lavoura estaria salva em Pindorama. É isso mesmo? Realmente, dentro do governo federal, todos estão de acordo com essa patranha? Não há uma manifestação, um pronunciamento sequer em sentido contrário. Pois bem, e dentro do Palácio do Planalto ocupa um gabinete de destaque alguém que nos acostumamos a ver como um fervoroso defensor do chamado 'novo desenvolvimentismo', com tese de doutorado e tudo mais a respeito, em láureas, na companhia de outros, pelos corredores da Unicamp, a defender exatamente essas políticas que agora se diz que 'vão ficar para trás'. Vá se entender!  Em tempos assim, só mesmo voltando aos clássicos da Economia Política para respirar. Será meu "prato" neste sábado, por convite do amigo-irmão de sempre Alder Júlio: a apreciação do Capítulo IX, do Livro III, de O Capital. A minha interpretação está aí abaixo.



Anotações a propósito da leitura de O Capital, Livro III, Vol. IV, Capítulo IX: ‘Formação da Taxa Geral de Lucro (Taxa Média de Lucro) e a Conversão dos Valores em Preços de Produção’, de Karl Marx (Edição: Civilização Brasileira, tradução de Reginaldo Sant’Aana, 1 ed., 1984).


Por Ivonaldo Leite

Sabendo ser impertinente conceber a obra de Marx acantonando-a em compartimentos ou fazendo inferências a partir de textos isolados, a rigor, em minha perspectiva, devemos tratar do Capítulo IX do Livro III de O Capital, voltando ao Livro I. Fundamentalmente o que está em causa no Capítulo IX do Livro III é a questão da troca de mercadorias, de par com a discussão sobre a formação da taxa geral/média de lucro e a conversão dos valores em preços de produção. Essa volta ao Livro I, relacionada à leitura do Capítulo IX do Livro Terceiro, permite-nos perceber que há, em O Capital, duas concepções sobre o valor de troca das mercadorias. Quais sejam:
a) No Livro I, as mercadorias são trocadas pelos seus valores de custo, que os valores de troca expressam, sendo os valores de custo de produção consubstanciados pela soma dos valores de custo dos fatores produtivos com a mais-valia.
b) No Livro III, no Capítulo IX, a troca das mercadorias passa a ocorrer mediante os seus preços de produção, com eles já não correspondendo aos valores de custo, sendo estes últimos resultantes da soma dos preços de produção dos fatores produtivos como o lucro, decorrente da aplicação de uma taxa geral de lucro - a relação do lucro com a totalidade do capital empregado.  
Ao que parece, a concepção inicial do Marx, acreditando que as mercadorias eram trocadas pelos seus valores de custo e atribuindo a formação dos seus valores de troca à adoção de uma taxa geral de mais-valia, conduzia à obtenção de lucros não proporcionais aos capitais empregados e de taxas de lucro inversamente proporcionais às suas composições orgânicas, talvez, assim, discrepando da realidade. Também, por outro lado, poder-se-á considerar que a nova concepção é justificada como tendo sido formulada como produto de um estado mais avançado do desenvolvimento do capitalismo, a que não se referia a concepção inicial, tendo sido nessa direção então que Engels, a partir dos rascunhos deixados por Marx após a sua morte, encaminhou a edição póstuma dos Livros II e III de O Capital.

De toda forma, a nova concepção, isto é, a concepção presente no Capítulo IX do Livro III, é apresentada como resultado da conversão de preços representativos dos valores nos denominados preços de produção, realizada mediante a ação do mercado, pelo imperativo da concorrência, em resposta aos interesses dos ‘capitalistas associados’.  O mercado, que inicialmente formava os preços representativos dos valores, determinando por ação da concorrência o trabalho socialmente necessário para a produção de mercadorias, passa a formar então – também por força da concorrência – preços de produção não representativos de valores.   
Seja como for, não me parece que existam rupturas extremas no que é preconizado no Capítulo IX do Livro III, por comparação aos escritos anteriores, conforme, penso eu, uma revista de algumas das premissas básicas do referido Capítulo pode revelar. Vejamos:
- Logo de início é (re)afirmado o que se compreende por composição orgânica do capital: “em qualquer momento, depende [a composição orgânica] de duas circunstâncias: da relação técnica entre a força de trabalho empregada e a quantidade dos meios de produção utilizados, e do preço dos meios de produção” (p. 175). Representando isso, emblematicamente, apresenta-se uma ‘fórmula projetiva’ de composição orgânica do capital expressa nos seguintes termos 80c + 20v, decorrendo a configuração das frações da composição na seguinte ordem 4 /5 de capital constante e 1/5 de capital variável.
- Posto isto, são considerados, de forma suposta, cinco ramos industriais diferentes em que os capitais investidos têm em cada um composição orgânica distinta (p.176), com a mesma taxa de mais-valia (100%), tendo-se então taxas de lucros diversas, como reflexo das diferentes composições orgânicas do capital (cc e cv) em cada ramo. Desenvolve-se, a partir daí, toda uma discussão específica a respeito das variações, com fundamento em base quantitativa.
- As taxas de lucro nos diferentes ramos da produção diferem. Daí elas, por força da concorrência, nivelam-se numa taxa geral de lucro, que é a média de todas elas. “O lucro que, de acordo com essa taxa geral, corresponde a capital grandeza dada, qualquer que seja a composição orgânica, chama-se lucro médio” (p. 179).
- Os capitalistas, de diferentes ramos da produção, ao venderem as mercadorias, recobram os valores de capital consumidos para produzi-las; contudo, a mv que colhem não é gerada no próprio ramo com a respectiva produção de mercadorias, mas sim a que cabe a cada parte alíquota do capital global, numa repartição uniforme da mv global produzida, em dado espaço de tempo, pelo capital global da sociedade em todos os ramos.
- Sobre lucro e mais-valia, mais um raciocínio projetivo, para considerar uma diferença: “sabemos que o preço do produto do capital B, por exemplo, se desvia do valor porque a mais-valia realizada por B pode ser maior ou menor que o lucro incluído no preço dos produtos de B, o que se estende às mercadorias que constituem a parte constante do capital B e às que, indiretamente, como meios de subsistência dos trabalhadores, formam a parte variável” (p.183).
- A propósito da mudança de concepção relativa a preços, antes aludida, pode-se ler na pág. 187: “(...) modificou-se a determinação do preço de custo das mercadorias. No início, admitíamos que o preço de custo de uma mercadoria era igual ao valor  [destacado no texto] das mercadorias consumidas para produzi-la. Mas, para o comprador, o preço de produção de uma mercadoria é o preço de custo, podendo por isso entrar na formação do preço de outra mercadoria como preço de custo. Uma vez que o preço de produção da mercadoria pode desviar-se do valor, também o preço de custo de uma mercadoria, no qual se inclui esse preço de produção de outra mercadoria, está acima ou abaixo da parte do valor global formada pelo dos correspondentes meios de produção consumidos. Em virtude dessa significação modificada do preço de custo, é necessário lembrar que é sempre possível um erro quando num ramo particular de produção se iguala o preço de custo da mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos para produzi-la. Em nossa pesquisa atual, é desnecessário insistir nesse ponto. Entretanto, continua correta a afirmativa de que o preço de custo das mercadorias é menor que o valor”.
- Preços: o preço de custo de uma mercadoria refere-se à quantidade do trabalho pago nela contido; o valor, a totalidade do trabalho nela contido (pago e não pago); o preço de produção, corresponde a soma do trabalho pago, acrescida de determinada quantidade de trabalho não pago.
- No que concerne à diferença quantitativa real entre lucro e mais-valia nos ramos particulares de produção, é de se notar que ela “oculta a verdadeira natureza e a origem do lucro, não apenas para o capitalista que tem aí especial interesse em enganar-se, mas também para o trabalhador. Com a transformação dos valores em preços de produção encobre-se a própria base da determinação do valor. E mais. A simples transformação da mais-valia em lucro leva a parte do valor a qual constitui o lucro a confrontar a outra parte, o preço de custo da mercadoria, já fazendo desaparecer para o capitalista a noção de valor. É que ele não tem diante de si o trabalho total que custa produzir a mercadoria, mas apenas a parte paga desse total, viva ou morta, configurada em meios de produção, aparecendo-lhe desse modo o lucro como algo extrínseco ao valor encerrado na mercadoria” (p.191).





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