sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Os que mandam no Brasil, o que eles desejam e o futuro

É de fazer rir algumas análises sobre a conjuntura brasileira, as quais, na ânsia de mostrarem erudição, caem num pseudo-eruditismo sofrível. Com 'abordagens politicistas', que mais parecem conjecturas de aparelhos políticos, bradem hipóteses sem fundamento pretendendo enquadrar em supostos 'esquemas teóricos' as possibilidades da história. Os seus autores, em verdade, procedem como 'modernos colecionadores de borboletas'. É preciso ter senso, já não digo de proporções, mas do ridículo mesmo, e considerar que, por mais que se queira enquadrar as possibilidades conjunturais e estruturais da história, esta nos torna, a cada momento, dupes de nous-mêmes, e nos surpreende com desdobramentos imprevistos. Digo assim a propósito da avalanche de previsões sobre o que ocorrerá com o Brasil, no curso da atual crise, e os consequentes impactos sobre a vida dos brasileiros. Por exemplo: os financiamentos, feitos e a fazer, continuarão com as mesmas regras? Teremos mais imposto? A expansão da universidade pública - com os seus programas - será contida? Ou mais ainda, neste caso, continuar-se-á sem pagar mensalidade nas universidades públicas ou, em busca de receitas, adotar-se-á uma política de financiamento do ensino superior que pressupõe que os estuantes passem a pagar mensalidades, conforme já tem sido defendido? As indagações/dúvidas são diversas. Que muitos que batem panelas e seus 'papagaios de pirata' não alcancem o significado do que está em jogo, é, até certo ponto, "compreensível", afinal a "cegueira" é o preço pago por se personalizar as questões, fixando-se obsessivamente em nomes/pessoas, bem como também  é o resultado do comportamento bovino: conduzir-se irrefletidamente segundo a direção tomada pelo rebanho. Não é compreensível, porém, que abordagens que reivindicam o estatuto de análise se limitem a embrulhar conjecturas com espuma de palavras. Aí não. Não é dessa forma que a banda deve tocar. Para início de conversa, dever-se-ia prestar mais atenção nos segmentos que efetivamente têm dado as cartas no Brasil, definindo diretrizes, impondo-as ao governo e "programando" o futuro do país. Quase sempre de modo sigiloso, secreto. O texto aí abaixo, de Fernando Rodrigues, é bastante ilustrativo a esse respeito. Vale a pena a leitura. 


Por Fernando Rodrigues 
(Mestre em jornalismo internacional pela City University, Londres)

Um grupo com 9 dos mais importantes empresários brasileiros recebeu Joaquim Levy na 4ª feira (2.set.2015) à noite em São Paulo. No encontro reservado, quase secreto, apresentaram as condições para continuar a apoiar o governo, a gestão da economia e a própria permanência de Levy no cargo de ministro da Fazenda.
A agenda tem três pontos: 1) fazer todos os esforços para que o Brasil mantenha o grau de investimento dado por agências de classificação de risco; 2) buscar um superávit de 0,7% do PIB na execução das contas de 2016 e 3) promover um forte corte em subsídios e programas governamentais para atingir essa meta.
Estavam na reunião de 4ª feira representados, pelo menos, 8 dos 10 maiores grupos empresariais nacionais. Por volta de 23h30, decidiu-se que era importante, na frente de Joaquim Levy, telefonar para a presidente Dilma Rousseff e relatar o que estava sendo tratado. A missão coube a um dos presentes, um empresário do Rio do de Janeiro.
O telefonema foi realizado, Dilma atendeu e foi informada sobre os temas em discussão.
Todos no encontro estavam preocupados com a proposta de Orçamento para 2016 contendo um déficit de 0,34% do PIB. O empresário ao telefone disse a Dilma que era vital para o país perseguir e obter a meta de superávit de 0,7% em 2016.
Ficou claro na conversa que os empresários brasileiros davam apoio à posição de Joaquim Levy, considerado mais liberal e confiável do que os ministros Nelson Barbosa (Planejamento) e Aloizio Mercadante (Casa Civil).
Os empresários –e isso foi dito a Dilma– avaliam que a perda do grau de investimento terá efeitos catastróficos para o país. Haverá aumento do custo para captar empréstimos. A recessão se aprofundará, produzindo mais desemprego.
A situação política retroalimentará a crise. O país poderá então entrar em território desconhecido e com risco de esgarçamento das instituições.
Na 5ª feira (3.set.2015) pela manhã, o dia seguinte ao encontro de empresários em São Paulo, Dilma chamou Joaquim Levy para uma conversa pessoal em Brasília. Ao final, a presidente ordenou a vários ministros que dessem entrevistas dizendo que o ministro da Fazenda estava mantido no cargo.
A realidade é que a permanência de Levy está diretamente relacionada à capacidade de o governo atender aos 3 pedidos dos empresários reunidos na última 4ª feira em São Paulo.
Durante a reunião com os empresários, Levy chegou a falar sobre a dificuldade de conseguir o superávit de 0,7% apenas cortando gastos –porque há muitas resistências do governo em eliminar programas e subsídios.
Levy perguntou aos presentes: como cortar o Orçamento se existem uma infinidade de despesas obrigatórias e muita pressão de setores do governo para manter certos programas sociais? Foi quando um dos empresários respondeu de maneira bem direta: “Tem de cortar porque não tem dinheiro”.
Os empresários reagiram de maneira difusa à sugestão de criar algum tipo de imposto.
Alguns até disseram ser possível uma nova taxa, na condição de ser temporária. Outros foram mais refratários. “Temporário no Brasil quase sempre vira permanente”, disse um dos presentes. Todos ao final cobraram primeiro os cortes mais duros antes que impostos fossem criados.
Números foram apresentados sobre programas que poderiam ser cortados. Até o relativamente novo vale cultura foi citado como penduricalho que drena recursos do governo e poderia ser extinto. Não houve consenso sobre quais seriam exatamente os cortes.
Dentro de uma semana, o grupo pretende ter uma minuta com sugestões para promover um enxugamento nas despesas da proposta de Orçamento de 2016.
Joaquim Levy em alguns momentos soltou frases enigmáticas. Por exemplo, ao dizer que o cenário estava mudando muito rapidamente. “O futuro é incerto”, disse o ministro. “Será que é com o Temer?”.
A citação a Michel Temer foi interpretada por alguns como uma espécie de incerteza de Levy sobre as condições de o atual vice-presidente da República assumir e melhorar a conjuntura do país.
O ministro da Fazenda disse aos presentes que a presidente da República estava ciente de que o quadro está “mais grave”.
Os empresários saíram do encontro de 4ª feira já na madrugada de 5ª. Alguns só deixaram o local por volta das 2h da madrugada do dia 3.set.2015.
Apesar da seriedade e da dramaticidade que os empresários empregaram às conversas de 4ª feira, a embocadura geral do grupo é a de tentar  ajudar a tirar o país da atual situação de crise política e econômica. É desse mesmo grupo a ideia de fazer uma “lei de responsabilidade gerencial'' para empresas estatais –tema encampado pelos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e Renan Calheiros.
No final do encontro, os presentes não se mostraram seguros de que o governo poderá cumprir as 3 condições apresentadas a Dilma Rousseff. Mas todos têm duas certezas.
Primeiro, que sem o superávit de 0,7% do PIB em 2016 o país está fadado a perder o grau de investimento. Segundo, que se nos próximos 1 ou 2 meses não ficar claro qual será o rumo da economia, a sustentação a Joaquim Levy vai se liquefazer e o ministro da Fazenda poderá deixar o cargo.
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Fonte: http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A última vez

S. Hood. Sydney embarkation, 13 Settembre 1940.jpg

Por Roberta Simoni 

Se Mariana soubesse que aquela era sua despedida da vida de solteira e que tão logo se entediaria com a vida de casada que tanto sonhava, teria aproveitado melhor aquela noite em que saiu com as amigas. Ela teria enchido a cara, dançado até os pés doerem e voltado pra casa só de manhã, mas, no lugar disso, passou a noite reclamando que estava encalhada e que não aguentava mais ficar sozinha. Naquela mesma semana Mariana conheceu Carlinhos, com quem se casou e nunca mais saiu para se divertir porque o moço gosta mesmo é de ficar em casa. Agora Mariana raramente vê as amigas, raramente sai e raramente consegue ficar sozinha.
Se Paulo soubesse que aquela era a última vez que teria a chance de falar com a mãe, ele teria dito o quanto a ama e teria agradecido por todo o amor que ela lhe dedicou, mas quando ela ligou, no dia anterior, ele estava ocupado demais para falar com ela. E, no dia seguinte, quando atendeu o telefonema dela, só disse: "mãe, já te ligo", mas esqueceu de ligar de volta. Agora, de onde ela está, já não pode atender nenhuma chamada.
Se Antônio soubesse que Joana terminaria o namoro com ele e que aquele seria o último fim de semana deles juntos, não teria comprado uma aliança pra ela, tampouco teria perdido tanto tempo planejando como faria o pedido de casamento e como seria sua vida ao lado dela.
Se Teresa soubesse que aquela era a última manhã que acordava ao lado de Júlio, ela teria ficado abraçada com ele na cama até mais tarde, teria feito amor como nunca, não teria deixado ele sair de casa. Se Júlio soubesse que um carro ia passar por cima da vida dele, atropelando todos os seus planos, teria pedido desculpas à Teresa pelo tempo que desperdiçou com brigas bobas e, sobretudo, não teria saído de casa.
Você pode até saber quando vai ser a última apresentação de uma banda que você gosta, a última chance de assistir a um espetáculo que vai sair de cartaz, o último dia para enviar sua declaração de imposto de renda, o último dia das suas férias, a última vez que você vai ter 18 anos ou as últimas horas para poder participar de uma promoção, mas é possível - e muito provável - que você nunca saiba quando vai ser a última vez que você vai ver um amigo, vai abraçar quem você ama ou vai ter a chance de ver o sol se pôr.
Na maioria das vezes você não receberá aviso prévio, não terá a chance de se despedir das pessoas, dos lugares, nem mesmo das fases da sua vida. Embora tudo seja cíclico, nem sempre dá para enxergar com clareza quando um ciclo está se fechando e outro se iniciando.
Mas e se você fosse avisado que será a última vez? A sua última chance? O que você faria? Se a resposta for: "exatamente a mesma coisa", você tá no caminho e, acredite, você é exceção. Agora, se você disser que aproveitaria para fazer alguma coisa diferente, você é como todo mundo e talvez seja um bom momento para começar a pensar sobre o que anda fazendo com a sua vida, com o seu tempo e, acima de tudo, com os seus afetos.
A vida não costuma alertar quando alguma coisa vai acontecer ou terminar. Não é como se ela tivesse um sensor que apita quando o combustível está acabando, se fosse assim, se chamaria carro e não vida.
Algumas vezes você pode até receber pistas ou sinais, é o que chamamos de intuição. Mas, na maioria esmagadora das vezes, não se iluda, isso não vai acontecer. E quando/se acontecer, você estará distraído ou ocupado demais para perceber.
Sua última chance de ver, ouvir, falar, tocar ou fazer qualquer coisa não será como um anúncio de geladeira pela metade do preço nas Casas Bahia, com letras garrafais dizendo: NÃO PERCA, ÚLTIMA OPORTUNIDADE!
Acho que a vida funciona assim porque, em parte, ela faz questão de manter a espontaneidade e isso nos obriga, diretamente, a sermos espontâneos e, no fundo, isso até que é bom. Se houvesse uma programação para tudo, a gente também deixaria de se surpreender e, acima de tudo, de aprender. 
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/

Quando a imagem da morte é necessária para nos lembrar dos vivos

Por Leonardo Sakamoto 

Li reclamações de leitores de jornais e sites indignados com a veiculação de uma imagem do corpo morto de um pequeno menino sírio, afogado e estirado em uma praia da Turquia após uma tentativa fracassada de sua família de atravessar o mar para fugir da guerra.
Publicadas com cuidado que o tema merece, por mais que doam aos olhos e mexam com o estômago e atrapalhem o jantar ou o café da manhã, imagens têm o poder de trazer a realidade para perto.
É fácil ficar indiferente diante de números de violência, mas com rostos a situação muda de figura. Dizer que milhares de pessoas morrem afogadas na tentativa de fugir do conflito na Síria ou de fome na África é uma coisa. Mas mostrar a morte de uma criança, usando as mesmas roupas e, quiçá, o mesmo corte de cabelo que o filho de qualquer um de nós é outra.


Ou trazer o corpo frio de um rapaz, de olhos bonitos, que era marceneiro, e de sua noiva, professora, que gostava de cantar de manhã.
Ou ainda os cadáveres de três adolescentes de uma mesma família, que sempre esperavam até a noite acordadas a chegada do pai que trazia comida para dentro de casa.
Ou de um motorista de uma ambulância, que tinha orgulho do seu trabalho.
O outro deixa de ser estatística, e passa a ser um semelhante, pois é feito de carne e osso e não de números. Nesse momento, há uma aproximação, uma identificação, fundamental para empurrar os espectadores de um conflito para ações, de protesto, de boicote. Seja em uma crise humanitária no Mediterrâneo, em um massacre no Oriente Médio, em uma guerra entre grupos rivais na África, na luta pela independência do Sudeste Asiático ou por conta da violência armada em favelas das grandes cidades do Brasil.
Vivemos em um mundo cuja informação se espalha em tempo real. Mas, mesmo com essa facilidade, muitos se furtam de ter acesso ao mundo.
Ao mesmo tempo, a tecnologia bélica transformou certos conflitos em cenas de videogame, filtrando sangue, suor e vísceras pelas lentes de drones e câmeras de aviões e helicópteros. O que chega, não raro, à tela de uma TV, de um computador ou de um smartphone é algo asséptico, palatável, consumível em doses homeopáticas. Pois não parece humano e sim ficção.
Quando a comunicação é globalizada, cresce a força e a importância de ações globalizadas pela paz. Acertam os veículos de comunicação que divulgaram as imagens, como o UOL, que não configuram sensacionalismo como os programas espreme-que-sai-sangue da TV, que repetem aquilo que já se sabe pelo tesão da audiência. Mas são uma declaração pública contra a barbárie.
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Diante disso, a ignorância do que acontece à nossa volta deixa de ser uma benção e passa a se configurar delinqüência social.

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Fonte: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Num conto sem nome, o surrealismo

Por Audrey de Matos 

Se o Surrealismo é a estética do onírico por excelência, ao se fitar um quadro de Salvador Dalí, por exemplo, tem-se a dimensão do que isso quer dizer. Uma das obras do artista catalão que considero expoentes da estética é o seu "Hombre com la cabeza llena de nubes". Lendo isso, muitos poderão relembrar, exaltados, o seu "Persistência da memória" - os célebres relógios que se derretem ou, os conhecedores mais profundos de seu trabalho poderão argumentar que nada expressa melhor o inconsciente - cerne da estética surrealista - do que o perturbador "El espectro del sex appeal" no qual o homem se vê criança diante da imagem retorcida de si mesmo.

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Hombre com la cabeza llena de nubes, de Salvador Dali

Pois bem, não posso discordar dessas vozes que, porventura, se levantarem. Entretanto, penso que quando uma obra é tão explícita em relação aos seus padrões, ideais ou, mesmo, ao seu manifesto, a ponto de desafiá-lo de algum modo sem, contudo, negá-lo, à tal obra deve ser reconhecido esse valor. O homem com a cabeça cheia de nuvens de Dali é um escancaramento do ideal Surrealista: negação do realismo castrador e da ideia conservadora de que somente as coisas que existem é que são possíveis,ou, como afirmou André Breton no primeiro Manifesto Surrealista: chegar ao que não existia pela via da arte que valoriza da mesma forma os atos executados em sonhos ou em estado de vigília.

Passados mais 100 anos do surgimento das vanguardas artísticas na Europa, a herança legada pelos vanguardistas, da qual o século XXI se farta, é a da estética despida de rótulos, livre. Tão livre que penso ser completamente inadequado falar-se na existência de uma estética. Mas, desse assunto somente poderão assenhorar-se - precariamente, como ocorre com todos os olhares que procuram sistematizar para entender - aqueles que sobre ele debruçarem-se daqui 50 anos, talvez mais. Por ora, talvez nos baste conferir como os novos artistas se valem dessa herança libertária para produzirem peças de arte que atualizam as velhas vanguardas - que se releve o paradoxo - deixando seus observadores em dúvida quanto à origem de seu impulso criador: se reflexo de um olhar atento para aquelas vanguardas ou produto de um completo à vontade instalado após as terapias de choque que os movimentos modernistas representaram no início do século XX.
É nessa tônica que quero apresentar um conto sem nome - "fujamos da mania incurável de reduzir o desconhecido ao conhecido", gritava Breton - em que a jovem contista Bruna Marcheti de Mattos percorre, a exemplo de Dalí, o caminho surrealista empunhando à vista de todos a sua bandeira. Bruna situa entre o sonho e a vigília um narrador inominado e, por instantes, estranho a si mesmo cujas sensações vão sendo descritas como espectros tampouco nomeáveis. Nada parece gratuito nesse conto: da falta de título à quase impossibilidade de situar no plano da realidade empírica o que vai sendo descrito, trata-se de um mergulho no universo difuso onde Breton acreditava esconder-se o puro verdadeiro. No momento em que o leitor pensa ter alcançado alguma lógica, ela se desfaz pela justaposição de uma nova imagem incongruente. O final, surpreendente, mostra como o poeta francês e teórico do Surrealismo, André Breton, tinha razão ao dizer que aquilo que pensamos não existir é o que existe sem que saibamos enxergar.
Abaixo, na íntegra, para deleite dos leitores, o conto sem nome de Bruna Marcheti de Mattos, datado de novembro de 2012.
As imagens difusas com cores opacas ainda desfilavam à minha vista, parecendo aquarela que um sovina botou no papel com a precisão de um bêbado. Os sons eram poucos, o tato já quase nada percebia, mas o sentido e a coerência que o desfile inspirava ainda pairavam na atmosfera que rodeava a minha presença. Ao longe, então, como se eu possuísse o tato de outro corpo, distante de mim, uma pressão fez-se sentir em meu entorno. Seria em minhas costas? Perscrutei com o olhar, mas não enxerguei coisa alguma ao meu redor. Nem conseguia enxergar a mim mesma!
Mas já não estava ali. Minha presença preenchia o espaço, mas meu corpo desaparecera ao mesmo tempo em que a pressão em meu dorso fazia-se mais perceptível, mais intensa. As imagens imergiam em um manto negro e ali paulatinamente começavam a afundar, a se desfazer. Os ruídos débeis misturavam-se a um novo som que perturbava a coesão do que eu vivenciava – mas não o conseguia identificar.
Meu segundo corpo se tornava cada vez mais real e concreto. No entanto, sua visão me era tolhida e já não conseguia me encontrar onde eu de fato estava desde que o primeiro invólucro se dissolvera no ar. As imagens viraram pontos em um breu sem fim, como atores que saem de cena rumo ao longínquo horizonte dos bastidores e concedem seus lugares aos objetos que mimetizam. A temperatura morna da pressão parecia se materializar, e já podia senti-la contra a minha carne, que a acolhia com a hospitalidade com que a relva recebe o sono do animal. Sombras restavam no lugar das imagens que me passavam em frente, e flutuavam no predomínio da escuridão dos olhos fechados. A cada momento, que se prolongava ao infinito, a coerência do que antes eu tão bem compreendera se desvanecia e dava lugar à confusão mental tão lenta, tão atordoada...
O novo som se distinguiu, impondo-se com valentia persistente em meus ouvidos: era o som da quietude. Um rumor ao fundo, um ruído pausado ao lado, um apito agudo esporádico. A pressão morna se solidificava... e se movia. Quando me dei conta, tudo já havia desaparecido: os sons antigos, as imagens fracas. Só restaram os intrusos que meus sentidos haviam passado a captar.
Num disparo contrastante com a anterior lentidão, minha presença se encontrou com meu corpo, adentrou-o. A quietude da manhã entrecortada pelos pios do filhote de joão-de-barro combinava com o baixo e constante rufar do ventilador. Ao lado, a respiração pausada tão melodiosa se interrompeu com um suspiro descansado e acompanhou o carinho da mão que afagava minhas costas. Abri um buraco na escuridão com o olhar, que a atmosfera e a luz não hesitaram em ofuscar. Senti um toque prolongado no que apenas segundos mais tarde descobri ser minha mão direita.
Foi um quase ronronar que me apresentou ao novo dia. Mas que belo despertar.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/




Apotheosis - solar storm

No words. 


Circo sem pão e sem graça: indo além do 'panis et circenses' ou o espetáculo do trágico

O título original do artigo aí abaixo, do jornalista Bernardo Mello Franco, é 'O príncipe e os súditos'. Ou, dizemos nós, de como a vida política brasileira tem se transformado num circo sem pão e sem graça. Já não se trata mais do embuste romano em torno do panis et circenses. Trata-se, sim, do espetáculo somente do trágico pelo trágico, de forma permanente. 

Por Bernardo Mello Franco 

Herdeiro da maior empreiteira do país, o executivo Marcelo Odebrecht é conhecido pelo apelido de príncipe. Nesta terça, ele deixou a prisão para ser cortejado por um diligente grupo de súditos: os deputados da CPI da Petrobras.
O depoimento se transformou em uma ação entre amigos. Os inquisidores pareciam concorrer para ver quem elogiava mais o empresário, que responde a ação penal por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa.
"Senhor Marcelo, é a primeira vez que tenho a oportunidade de estar pessoalmente no mesmo ambiente que o senhor", desmanchou-se Altineu Côrtes (PR-RJ). Depois, ele disse conhecer empregados da Odebrecht que sentem "profundo orgulho" do patrão. Só faltou pedir autógrafo.
Valmir Prascidelli (PT-SP) formulou uma pergunta curiosa ao investigado. "O sr. acha adequada e correta a sua prisão, considerando que sempre se colocou à disposição da Justiça?" Odebrecht retribuiu, sensibilizado: "Agradeço muito as perguntas que o sr. está fazendo, porque elas seriam as minhas respostas".
Delegado Waldir (PSDB-GO), que na véspera chamara José Dirceu de "ladrão", parecia outra pessoa. "Parabéns, eu também me orgulho muito do meu pai", disse, quando o empreiteiro citou o patriarca Emilio.
Outro tucano, Bruno Covas (PSDB-SP), se mostrou compreensivo quando o réu se recusou a responder perguntas: "Não precisa pedir desculpas, até porque é um direito seu".
É elogiável que os deputados façam perguntas em tom educado. Mas o excesso de mesuras ficou constrangedor até para os padrões da CPI, que tem se empenhado em proteger réus e perseguir delatores da Lava Jato.
No fim, Carlos Andrade (PHS-RR) quis saber se o executivo continua a defender o financiamento privado de campanhas. Em 2014, o grupo Odebrecht doou R$ 918 mil a deputados da CPI. "Sou a favor, sempre fui", respondeu o príncipe encarcerado. Os súditos pareceram respirar aliviados.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 02/09/2015


terça-feira, 1 de setembro de 2015

'As noites feitas em estrelas, os dias feitos em nada'


A pessoa certa



Por Fernando Evangelista 
(Jornalista)  

Quando entrei, as duas já estavam no elevador. Cumprimentei a senhora, cumprimentei a adolescente, e me pus no canto, fingindo interesse na luz que pulava de botão em botão: 7º andar, 6º, 5º, 4º... de repente o elevador tremeu, ficou escuro e parou.  

– Droga – eu disse. 

A adolescente resmungou alguma coisa indecifrável e apertou o botão da emergência, o único iluminado. Como não houve resposta, insistiu e ficou nisso por alguns segundos. 
         
Uma voz mal-humorada ecoou pelo interfone. Devia ser o porteiro. 

– Que é?   

– Estamos trancados no elevador – eu disse.   

– Outra vez? Que porcaria. Espera aí, vou ver o que posso fazer.

A luz interna voltou, mas bem fraquinha. Olhei a adolescente – era alta, magra, morena, com dois piercings espetados na sobrancelha esquerda. A senhora, de cabelos brancos, vestida toda de preto, devia ter uns 80 anos.  

Foi nesse tempo, à espera de ajuda, que a neta fez a pergunta, como se as duas estivessem sozinhas: 
– Vó, como a gente reconhece a pessoa certa?  

Vasculhei meus bolsos à procura de alguma bala ou chiclete. Achei só o celular, sem serviço e quase sem bateria. “Pessoa certa? Isso lá é pergunta que se faça, menina? ” 

No elevador, até onde sei, quando vizinhos ou colegas de trabalho se encontram, são bem-vindos cumprimentos formais, frases curtas sobre a chuva da véspera e a previsão do tempo para o fim de semana. Comentários sobre futebol, desde que sem polêmicas ou agressões, também são aceitos. E mesmo entre familiares, não cabem assuntos graves, como esses dilemas amorosos.  
  
Talvez a avó tenha pensado a mesma coisa porque rebateu a questão.  

– Pessoa certa pra que, minha filha? 

– Pra namorar. 

Olhei para o chão, para os botões do painel e outra vez para o celular sem sinal. 

– Só conheço um jeito – disse a senhora.

– E qual é? 

A resposta da velha me surpreendeu: 

– Experimentando. 

Pronto, o papo poderia parar por aí. A neta, porém, queria mais.
– Como a vó soube que o vô Luís era o par ideal, a alma gêmea, o grande amor?

Tinha algo de irreal aquela situação.  

– Isso é complicado, minha filha – disse a mulher.    

As duas ficaram em silêncio por um tempo. Depois a adolescente voltou a perguntar.    


– Como a vó soube que ele era a pessoa certa?


A mulher entendeu que se não desse uma reposta, a neta ficaria insistindo até o fim dos tempos. Então, pensou um pouco e falou: 

– Eu soube que o teu avô era o homem da minha vida porque, desde o começo, ele despertou sentimentos bons em mim. Ele me inspirava, me respeitava, me fazia rir à toa.

O elevador, finalmente, voltou a funcionar e chegamos sãos e salvos ao térreo. Agradeci ao porteiro, plantado em frente à porta, com cara de tédio e de poucos amigos. Avó e neta foram para um lado, eu fui para outro.   

Parei na padaria da esquina, pedi papel, caneta e escrevi: “Ele me inspirava, me respeitava, me fazia rir à toa”. 

Escrevi porque a frase poderia render uma crônica. Escrevi também, e principalmente, para não me esquecer. 

Para nunca mais me esquecer.  
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Fonte: http://www.notaderodape.com.br/


Pés no ar, olhos na terra

Por Jânio de Freitas 

Lula vai voar. De maneira mais terráquea e menos poética, há meses comunica essa decisão de percorrer o país. Mas não decola. Se afinal o fizer, não terá dificuldade em reavivar o entusiasmo de velhos lulistas e de agraciados por melhorias de vida que seu governo proporcionou. Não é imaginável, porém, que obtenha o mesmo resultado na defesa de Dilma e, muito menos, do governo.
A admitir-se que Lula fala com seriedade ao se dizer disposto a "ir para a disputa em 2018, enfrentar a oposição", como fez na conversa com o uruguaio José Mujica (acentua-se o "u", não o "i"), o seu propósito bifurca-se. Reativar os ânimos por sua volta não é o mesmo, e em grande medida é até o contrário, que defender o governo Dilma.
O desemprego já ceifa na ordem dos milhões, a remuneração do trabalho diminui, "o consumo das famílias é o pior desde 2001", as manchetes proclamam a recessão, as greves retornam multiplicadas, o arrocho atinge saúde e educação –é o público de Lula pagando o desajuste neoliberal do governo Dilma. É o público que depositaria em Lula a esperança de reverter a obra do governo Dilma.
Ou uma ou outra: fazer o trabalho preliminar para eventual candidatura ou pregar uma inútil tolerância com o governo. O desastre do governo é desastre do PT, e deste duplo desastre Lula não sai incólume. Criou Dilma, acobertou-a e ao governo, e aceitou, ao menos para todos os efeitos públicos, tanto o que houve no mandato anterior como no atual.
Mas existe uma alternativa para Lula, e não só para ele. Está em uma forte mudança na Fazenda. Não da concepção neoliberal de política, que isso não ocorreria. Mas de atitude. Joaquim Levy não é de fazer as poses de suficiência de Pedro Malan, nem tem a conversa de vendedor de calçada de Antonio Palocci. É tímido, sereno, educado. Fala pouco e baixo: seja lá o que diga, não tem ênfase, nunca. Não demonstra convicção e não convence.
Se Levy não convence, o poder de argumentação de Dilma é ainda mais incapaz de suscitar confiança, sobretudo depois de tantas inversões factuais de suas palavras. O resultado é que ninguém acredita que os desarranjos crescentes levem à arrumação da economia, ou lá do que for, em tempo de evitar uma situação extremada. Isso está nítido até no empresariado identificado ideologicamente com a política de Levy.
Para o governo e para Lula, uma forte mudança de atitude, a ponto mesmo de parecer outro governo, neoliberal embora, convicto e determinado, tudo indica ser a única porta para o futuro. Ainda assim, futuro incerto. O que já será muito bom para eles, se comparado com o futuro dos que a cada dia perdem, e continuarão perdendo, mais do pouco que melhorara as suas vidas.
A não ser assim, a direção dos fatos indica que não tardará a inauguração, no Ministério da Fazendo, de mais um retrato de ex-ministro. Se bem que não poucos, nas proximidades de Lula, considerem que o seu futuro político não dispensará a ruptura com sua criação.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 01/09/2015