Sexta-feira, um bom dia para 'contar um conto'. Então eu conto. Logo aí abaixo, um conto do escritor moçambicano Mia Couto. No original, está "batizado" como 'Inundação'. Eu penso que tem mais graça como 'O rio do tempo'.
Por Mia Couto
Há um rio que atravessa a casa. Esse
rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente.
Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver
inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da
noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso?
Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a
voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se
fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos
para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutámos o pranto.
Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão,
ficámos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
– Vosso pai jã não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A
nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos
que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo
para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo
chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha màe
conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se
desbotara.
– Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito.
Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis
enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras,
desleixando todo seu volume.
– Quero perder todas as forças. Assim não tenho
mais esperas.
– Durma na cama, mãe.
– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se
aquela ausência fosse o único trofeu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai
se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava
pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais.
Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto
assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
– Meu pai?
– Seu pai está aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o
lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de
água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
– Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado,
porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E
agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano
que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de
domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra.
Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um
instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da
sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos,
cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se
guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as
cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque
eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe
entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali
me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por
muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante,
escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida
por um rio que tudo inundava.
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Fonte: http://www.contioutra.com/inundacao-um-conto-de-mia-couto/
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